sexta-feira, 27 de agosto de 2010

...apenas trabalho.


Lá estava eu, dirigindo no trânsito de Campina Grande. Ruas estreitas, motoristas apressados buzinando sem necessidade, motoqueiros ultrapassando pela direita (também já fiz isso, mas agora ando sobre quatro rodas). Guiando na companhia de Chico Buarque, meus polegares batem no volante tentando acompanhar o ritmo do Samba de Orly. Balbucio pequenos versos, sem me preocupar com afinação ou entonação. Sinal fechado. Paro atrás de um carro branco, automaticamente meus olhos lêem a filosofia de para-choque de caminhão escrita no vidro traseiro do Chevrolet: “não sinta inveja de mim, não sou rico, apenas trabalho.” A poesia musicada foge da minha cabeça, minha concentração é total na sabedoria da frase à minha frente.
Já havia lido a máxima em outros lugares, pregada nas paredes de muitas salas de estar, colocada sobre cofres em bodegas, escrita com pincel atômico nas portas dos banheiros públicos. Mas, desta vez foi diferente, a sentença me fez perder a atenção no tráfego ou em qualquer outra coisa, incluindo Chico Buarque que ficou falando sozinho, coitado.
A oração não é um lema contra a inveja, nem mesmo a condena em seus muitos aspectos, afinal ela não dizia: não sinta inveja de mim ou simplesmente: não sinta inveja, podendo até ser acrescida de: isso é feio, ofende. Em sua profundidade a frase não censura o pecado capital, repudia, apenas, que o sentimento seja contra um cidadão desafortunado. Meditei. Cheguei à conclusão de que, tomando por base o texto, alguém pode ser invejoso, desde que a pessoa foco desse desejo “pecaminoso” seja abastado financeiramente, não somente um mero e esforçado trabalhador. Isto é, o dito poderia ser re-escrito mais ou menos assim: De mim você não pode sentir inveja, não sou rico. Mas do Sílvio Santos pode.
Sou metido a escritor, gostaria que meus rabiscos (mesmo tortos) causassem alguma reflexão, positiva ou não, nos leitores. Acho que fiquei com inveja do autor da frase.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Bibliografia



Na minha infância, quando ainda era um menino de engenho, conheci a moreninha que mudou minha vida, Lucíola, fiquei doidinho. Foi na tarde da terceira feira de agosto que nós começamos na libertinagem. Perdemos a inocência em cinco minuto. Éramos a mão e a luva. Ela era minha estrela da tarde. Eu tinha com ela sonhos d’ouro. Eu a chamava de negrinha e ela me chamava de o anjo. Mas ela começou a descoberta do mundo, fez uma viagem para não mais voltar. Azedou meu riacho doce. Sem dúvida me foi armada uma tocaia grande. Lucíola era bonitinha, mas ordinária. Passei a viver em angústia.
Resolvi, então, ser padre, me tornei o seminarista. Um dia em uma casa de pensão encontrei uma senhora, Clara dos Anjos, diziam que ela era uma mulher obscura, um demônio familiar, para mim, porém, foi a ressurreição. Tivemos bonitas histórias da meia-noite. Os espectros do passado se tornaram fogo morto. Mas infelizmente nosso romance foi apenas um sonho de domingo.
Com isso, sai do seminário. O bispo, Dom Casmurro, não gostou da ideia, quis saber o porquê, fez várias perguntas, foi o santo inquérito, mas nada adiantou, estava decidido.
Voltei para o ateneu em que estudava antes. Algum tempo depois, junto com alguns amigos, éramos seis, formamos os pastores da noite, uma turma que gostava de curtir a vida noturna. Às vezes me lembrava de os dois amores que tive, mas minha vida agora era outra, minha mãe dizia que era a bagaceira. Nós adorávamos usar as máscaras de carnaval. Alguns hipócritas preconceituosos cochichavam quando nos viam “eles não usam black-tie”, mas nós não ligávamos e continuávamos com nossas sinfonias feitas com cavaquinho e saxofone.
Em uma noite na taverna conheci uma mulher casada, Marília de Dirceu, começamos a ter um caso, nossos encontros eram em o cortiço que havia no bairro e em um motel chamado tenda dos milagres. Acontece que Dirceu descobriu nosso romance. Na hora o que passou pela minha cabeça foi fugir da Via Láctea. O marido enfurecido me encontrou, tive que me defender. Marília se tornou a viuvinha e eu o prisioneiro.
Na cadeia conheci muita gente: Quincas Borba, um homem que se intitulava de o pagador de promessas, um lunático que dizia ser o homem que matou Getúlio Vargas e até uma drag queen que usava um indefectível vestido de noiva e que gritava ser a mulher que matou os peixes, não entendi nada.
A pior coisa na penitenciária era que lá eu não conseguia sentir duas coisas que aprendi a observar: o tempo e o vento. As primaveras que passei não tinham flores, só espinhos, mas não reclamava, sabia que estava passando por o castigo da soberba.
Certa vez, encontramos um colega de cela pendurado nas grades, se enforcou com um lençol, em sua camisa estava escrito “a morte e a morte de Quincas Berro D’água”, ele gostava desse apelido, alguém ao meu lado gritou: “o que é isso companheiro?”, aí eu disse: “isto é o triste fim de Policarpo Quaresma, espero que tenha melhor sorte em outra encarnação”.
Quando sai da prisão, tentando esquecer o passado, pensei em entrar para a legião estrangeira, mas tudo que via ou ouvia me trazia de volta as velhas memórias do cárcere. Bom, pelo menos consegui um emprego, entrei para uma equipe de vendas chamada de capitães da areia, andávamos pelo país do carnaval vendendo tudo que é bugiganga. Minha função era vender relíquias de uma casa velha, objetos que ninguém queria comprar. Não fiquei rico, mas vivi boas aventuras: descobri as mentiras que os homens contam, conheci os sertões e o grande Sertão: veredas, vi pessoas e suas vidas secas, passei por cidades mortas, me encontrei com cangaceiros, ouvi as vozes da América e a música do Brasil, consegui até, acreditem, ver o sorriso do lagarto. Numa dessas viagens, quando passávamos por uma cidade chamada Pedra Bonita, observei uma dupla de repentistas fazendo desafios, primeiro cantaram as memórias de um sargento de milícias, depois duelaram rimando com as memórias póstumas de Brás Cubas. Ali fiquei alguns minutos e conheci Helena, a filha do diretor do circo, que estava na cidade, ela era linda, tinha um brilho que eu jamais havia visto, parecia uma mulher vestida de sol. Nos conhecemos e iniciamos um romance. Sai das vendas e entrei para o circo, me tornei palhaço, meu nome era Caramuru.
O pai de Helena era um péssimo patrão, morava num grande trailer, enquanto os outros artistas se amontoavam em pequenas barracas. Parecia a divisão casa grande e senzala. Helena também sofria com as atitudes do pai, coitada, era uma pobre menina rica.
Em uma manhã fui informado que Helena tinha sido mandada pelo pai para uma cidade grande a fim de estudar. Novamente fui abandonado. Sai do circo e nas margens do rio piedra eu sentei e chorei. Descobri que há uma gota de sangue em cada poema e que amar, verbo intransitivo.
Depois de ter passado pelas torturas de um coração, hoje, sento na minha cadeira de balanço, fico lembrando minhas histórias sem data, e agora sei que querendo um lugar ao sol vivi o verso e reverso da moeda. Mas não perdi a esperança, afinal, não adianta chorar o leite derramado, sei que para todos existe a hora da estrela, a minha ainda vai chegar, nem que para isso eu tenha que ir viver aventuras em outro solo, sei lá, talvez em Budapeste.
Júlio César Rolim