quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Argueiros alheios


                     Insone, Antenor no escuro olha pro teto. Três e meia da manhã, acordado há quase cinquenta horas. A TV ligada passa um filme repetido inúmeras vezes. Ele, quando fita a imagem, recita as falas dubladas pelos atores na tela. Reflete sobre o que fez no dia: nada. Apesar do cansaço do muito trabalho, planeja o amanhã, mais uma quarta, meio da semana, gosta. Sempre toma uma dose de cana nesse dia. Emblemático!

Lembra do vizinho da frente que vive de reformar o apartamento e chamá-lo para ver o novo piso e a bacia sanitária inteligente. Filho da puta, devia perder um dedo ou dois na furadeira que nem mesmo usa.

Escuta os barulhos da casa de cima, batidas da cama na parede, gemidos. Fora enganado sobre o isolamento acústico. A moradora: solteira, seios empinados, bunda que não cabe na calça, nariz no céu, cabelo no mar, pernas capazes de desconsertar o melhor dos alfaiates na busca das medidas. Cada fim de semana, mesmo hoje sendo terça, um alarido diferente, um convidado ou visita. Antenor, de olhos arregalados e ouvidos curiosos, anseia em matá-la. Na verdade, a deseja no colchão. Como não consegue, e já levou um desritmado e risonho “não” no elevador e outro severo na piscina, sonha contemplá-la no caixão.

Não suportando os gemidos, que não pode sentir em sussurros ao pé da orelha, levanta-se, percorre quilômetros de um pequeno corredor. Seu cachorro, um poodle chamado Cacau, precisa de tosa, corre em sua direção. Lambe seus pés descalços, sem receber a atenção recíproca. Em pé na sala, vestindo uma cueca verde e camiseta, cem por cento algodão, de propaganda da loja de móveis de propriedade de seu melhor amigo, faz uns meses que não o vê, e não lembra há quantos dias está sem contato. Tudo por causa de uma discordância sobre marca de cerveja, coisa que nem gosta muito. Verner ligou para pedir desculpas, escutou apenas o sinal de ocupado, e não teve retorno.

Abre a geladeira, daqui a pouco o sol nasce. Contempla uma garrafa d’água, alguns ovos, vários sachês de maionese e ketchup, resultado das pizzas que pede e nem sempre come. Encontra um pote de requeijão, com certeza vencido. Fecha a porta com o pé, se sente num filme de Hollywood. Passa o requeijão numa fatia de pão de forma. Fome! Mastiga recostado na pia. Fantasia o inferno no andar superior. Ambiciona arder no fogo do pecado. Não é bem-vindo. Volta onipotente ao quarto, as paredes e seus poucos quadros o saúdam. Cacau é barrado, não adiantou se declarar em latidos.

O filme na televisão é substituído por um telejornal matinal. Reprise de ontem, prévia de amanhã. Aprecia mais a apresentadora do que as notícias. Uma manchete policial, violência, seu pensamento se divide entre esquartejar o bandido e comer a repórter.

Os barulhos acima retornam, intensos, às vezes pausados. Fica em pé na cama. Silencia o programa televisivo, insano. Se possui estimulado pelas sensações auditivas vindas do alto, imagina-se protagonista, baba, sua. Saciado, sedento de ódio, cai na cama, corpo sujo, alma imunda. Chora lembrando que é um injustiçado. Ajoelha-se. Cacau grunhe, Antenor clama.

O sol não queria, mas cumpre seu papel, clareia o dia. Um banho. Silêncio no teto, se desespera na tentativa de ouvir o que não há. Inveja o sono que não pode desfrutar, conchinha! Escova os dentes, o espelho o saúda. A espuma em sua boca é muito mais que creme dental.

Veste a melhor roupa de hoje, pior que a de amanhã. Sai de casa. Cabeça erguida, máscara no figurino. “Bons dias” a todos, inclusive ao vizinho da frente e ao rapaz bonito desconhecido que entrou no elevador, que julga ser o homem que atrapalhou seu sono com façanhas sexuais com a vizinha. Seus olhos de ciúme e desdém filmam o jovem magro, enquanto este olha o celular e assobia um forró.


                       Dirige para o trabalho na companhia do rádio, fi
ca indignado com o noticiário. “O mundo está perdido!”, pensa alto ao mudar de estação. A insônia atrapalha seu relógio. Atrasado, cruza o sinal vermelho, atropela um ciclista. Esses caras de duas rodas não olham por onde andam! Para com a ajuda de alguns transeuntes. Chamam uma ambulância. Polícia? Não, não é necessário. Nada grave, a não ser a perda de tempo. Acontece!

No escritório é a mesma coisa de sempre: conversas bobas, críticas ao governo... Esse povo só atrapalha, torce contra! O dia demora a passar, a vida também. No almoço deseja uma coxinha de frango ou um pastel de queijo, come arroz com feijão e um bife mal passado. A garçonete serviu a melhor carne pra Alfredo, deve estar interessada nele.

No final do expediente do sol, volta pra casa. Não há barulhos de obras ou de sexo. Fica aliviado, curioso e consumido de desconfiança. Formula teorias. Cacau, deitado no carpete, com olhos de cachorro, apenas observa.

                      Quarta-feira. Pontualmente às vinte horas chega à igreja. Pleno. Absoluto. Em comunhão. Respira. Finalmente está em seu lar. Fervoroso ora pela conversão da moça de cima, pede que a jornalista da TV mude o tom de voz para não provocar os telespectadores, suplica aos céus para que o rapaz do elevador pague pelo pecado da madrugada e que a garçonete se comporte. Amém?