quinta-feira, 29 de março de 2018

Uma virgem deflorada

Cá estou eu novamente nesta rodoviária fedorenta, suja, feia, cara de saudade, cheiro de despedida, barulho de lágrimas, sabor de partidas. Luzes brancas ou amarelas, sem muito brilho ou força, denotam ainda mais clima de depressão. Não consigo sentir nela nenhum gosto de chegada ou de retorno. Abraços? Só de adeus. Só eu não parto, nem daqui, nem de mim. Não posso! Na verdade, não quero. Mesmo desejando que isso acontecesse. Talvez quando eu me aposentar. Engraçado, antes eu dizia “quando eu arrumar um emprego”. Eu não trabalho na rodoviária. Sou consultora financeira e dou aula em duas faculdades particulares. Não tenho tempo pra nada, a não ser vir à rodoviária, quase todos os dias. Detesto este lugar! Mas, não consigo viver sem ele. Talvez porque os únicos amigos que tenho atualmente também frequentem o mesmo terminal. Não são muitos. Um bêbado, que todas as vezes mostra um sorriso ao me ver, sorrir de olhos cheios. Diz que sou bonita, entre um gole e outro, elogia meus cabelos, cor de ouro, e meus olhos, cor de terra. Fala que casaria comigo. Claro que eu, mesmo que fosse solteira, não casaria com ele. Meu marido não fede a cachaça, cheira a perfume francês, usa o mesmo desde os tempos da universidade, quando nos conhecemos, forte, muito forte, insuportável, mal consigo respirar com aquele odor permanente em sua pele, em suas roupas, no meu nariz. Mesmo na hora do sexo, que acontece toda sexta-feira, quando ele chega do trabalho, é “a comemoração pelo final de semana”, diz ele. Se eu estiver menstruada, ele entende, afinal, sempre terá uma sexta-feira, mesmo que treze. Nas sextas não venho à rodoviária. Meu marido, que só toma vinho, e aos sábados, pontualmente da hora do almoço ao entardecer, de duas a quatro taças, jamais ficou de porre. Eu já. Queria ficar hoje. Ele gosta que o tratem por Dr. João Carlos de Melo Porto, coitado do porteiro do prédio, que é gago, demora uma eternidade pra conseguir atracar no Porto. Já o bêbado, gosta que o chamem de Galego Filó, e ele nem é loiro. Aqui eu leio os jornais, de qualquer dia, não importa, as notícias são sempre as mesmas, mudam apenas os personagens. Mas, não compro os diários, leio nas bancas, às vezes segurando, em outras, apenas os vendo girar naqueles suportes de plástico transparente em que são colocados. Eu gosto, o movimento, mesmo que do vento, faz com que as manchetes fiquem mais agitadas, quentes, reais, se o jornal for sensacionalista melhor ainda. Leio tudo, até os classificados. Vejo do caderno de política às colunas sociais. Só não gosto da seção policial. Mas ontem, uma notícia me chamou a atenção. A manchete dizia “Mulher mata marido por falta de sexo”. Li três vezes. Não sei como ela teve coragem. Sempre me sinto tão covarde. Fiquei íntima de uma prostituta velha, velha é exagero, tem 52 anos, mas, parece ter 80. Tantas rugas, marcas, cicatrizes no corpo e no espírito. A coitada faz tempo que não consegue um cliente, ninguém mais quer. Ela me disse que agora se tornou mercadoria vencida. Seu último cliente foi o Galego, que quis um boquete, faz umas duas semanas, e deixou fiado. Ela sustenta, a custa de esmolas e não mais sexo, três filhos e deixou outros tantos espalhados pela vida e pelas ruas. Uma noite dessas com os olhos afogados de dor e sal, me disse: “há um pedaço de mim espalhado por cada canto desta cidade.” Ela é a única pessoa que me entende. Acho que é única que sabe o que se passa num coração feminino. Ela, de vestido cintilante curto, bolsa vermelha com alças de metal dourado, sapato salto alto. Dia desses quebrou, andou mancando, dei um dos meus, tenho poucos, toda mulher tem pouco sapato, mas dei um. Doze centímetros, amarelo, lindo, perfeito, só usei uma vez, meu marido disse que era coisa de puta, agora é. Seu cabelo maltratado e mal pintado reflete sua vida que tenta maquiar. Pobre mulher. Podia ter escolhido outra vida. Podia? Quando a vejo, não sei por que, me recordo dos meus tempos de colégio. Na quinta série havia um menino, o mais estudioso da turma, só tirava dez, quando, por um deslize, vinha uma prova com nove, era uma semana de choro. O futuro gênio. Talvez um desembargador, médico renomado, cientista que possivelmente criaria o futuro. Soube que ele engravidou uma menina aos dezessete anos, abandonou os estudos no último ano do ensino médio. Foi trabalhar de peão numa fábrica de cimento. Hoje ele vende coco. Trabalha na praia, sorrindo, e pelo que ouvi falar ganha mais dinheiro que eu, apesar do meu doutorado em comércio internacional. Tinha outro, Paulo César, magrelo, esquelético, sardento, joelhos ossudos que dava pra perceber mesmo sob as calças, orelhas de abano que ornamentavam a cabeça grande e os cabelos assanhados, dentes imensos, que quando sorriam apresentavam rugas na face, não pela idade, mas pelo excesso de pele sem preenchimento no rosto, lábios carnudos, porém sempre rachados, às vezes sangrado, que o menino cabisbaixo, escondia com a mão esquerda, enquanto a outra usava a caneta. Era apaixonado por mim. Eu tinha era vergonha daquele sentimento, pena talvez. As meninas me perturbavam por causa disso, eu preferia evitá-lo. Sentar perto dele na sala? Nem pensar. Fomos colegas três ou quatro anos, não lembro direito. Ele chegou a me pedir em namoro através de uma amiga, fingi que não recebi o recado. Eu era tão bonita! Sempre fui. Raquel, minha vizinha de infância, mal-amada! Me disse que ele hoje trabalha como modelo fotográfico, cai mais dinheiro no seu bolso do que todas as folhas no outono. Tudo graças à sua beleza. Um deus nórdico. Com sardas e tudo! Semana passada o Galego me deu flores. Não era um buquê, apenas um molho de rosas e violetas, umas duas tulipas brancas, todas já murchas. Roubou dos jardins das casas próximas à rodoviária. Ele me entregou com olhos de álcool e desejo, as mãos trêmulas não escondiam os arranhões causados pelos espinhos. Havia sangue também em sua perna, foi mordido por um vira-lata, fiquei feliz por não ter sido um pit bull. O cachorro guarda um convento carmelita que fica a uns dois quarteirões daqui. Muros altos, amarelos, escondem as freiras e um jardim lindo, flores de todas as cores, belas. É sempre assim, as mais lindas e puras flores estão escondidas atrás de muralhas. Só não sabem eles que todo muro é transponível. João Carlos já me mandou flores, entregues por um motoboy, cartão impresso: “com amor”, assinatura com a caligrafia da secretária. Guardei num jarro de cristal que tinha ganhado no último dia das mães, queria jogá-lo janela abaixo, quem sabe caísse na cabeça dele quando voltasse pra casa, em uma tarde-noite de sexta-feira. Toda rodoviária tem pelo menos um bar. O bar faz parte das viagens, sobretudo daqueles que permanecem no mesmo lugar. Sou amiga do dono de um boteco desses. Um libanês com cara de alemão e jeito de argentino. O botequim fica ao lado dos banheiros, um balcão grande separa o dono dos clientes, sobre o mármore branco e frio que lembra um túmulo, uma estufa com salgados, coxinhas e pastéis de ontem. Uma bacia verde cheia de cocadas e moscas fica ao lado dos copos americanos, emborcados sobre uma bandeja prata. Na parede prateleiras com todas as bebidas do mundo, tem até garrafa azul. Acho que quem beber aquilo deve ver o céu, com todas as estrelas e vários sóis. Seu Samir, sempre com uma rodilha no ombro, onde limpa as mãos e enxuga os copos, me diz que sou muito burocrática até pra pedir uma coxinha. Ele nunca sorrir, mas, me manda rir da vida. Ele diz: “Menina, a vida é um chocolate no calor, se você não comer, ele derrete.” Meu marido jamais me deixaria frequentar um ambiente como esse bar, contaminado de gente. Perigo. Vou sempre, ele nunca pergunta onde estive, diz que confia em mim. Um pouco de desconfiança seria tão excitante. Ciúme lascivo. Raiva luxuriosa. Um trincar de dentes que se converteria em mordidas de ódio e tesão. Pedaços de pele entre unhas, minhas unhas. Cabelos entre dedos, seus dedos. No domingo ou talvez na quarta, podia até ser na sexta. Parede azul claro, cama com edredom lilás, travesseiros no chão, roupas no teto, nós no inferno, queimando no fogo do pecado da carne. Um céu! Música, sem letra, só sussurros. Jogo de vai e vem. Molejo de quadril. Uma fome tão grande, que após saciada, só queremos dormir e sonhar. Mas, isso é sonho. Nem nas melhores sextas! Queria conversar com uma senhora que vejo sempre que venho ao terminal. Sentada no mesmo lugar. Canteiro central da avenida em frente à rodoviária, fumando um cigarro de palha, olhando para o mesmo lado, paisagem urbana mutável e sempre igual. Faça chuva ou sol, uma pequena sombra que a acolhe. Tirei uma foto sua. Nunca mostrei o retrato, não tenho coragem. Meu desejo é de fazer perguntas, mas tenho medo das respostas. Talvez ela seja igual a mim. Tão cheia de pensamentos. Inundada de todas que me compõem. Ela é muito eu para que eu me aproxime. Hoje vim de vermelho, cor do amor, da paixão, do coração. Ele é vivo, vibrante. Me lembra vinho, sexo... sangue, violência e um desbotado esquecimento. Ouvi sons de sirenes, ambulâncias, deve ter sido algum acidente, mortos talvez. Alguém passa correndo gritando que o caminhão do lixo atropelou um bêbado. O asfalto foi pintado de sangue e conhaque barato. Não me interessa. Hoje é sexta, estou esperando pelo Galego, nesta hora ele sempre está aqui, nunca falhou. Por que não chegou ainda? Talvez esteja catando flores. Vou trepar com ele, dentro do banheiro masculino, naquele fedor, cheiro de homem, se alguém ver será melhor, ficarei excitada com excitação de quem nos flagrar. Quero saborear seu hálito de cana, sentir o seu suor. Farei sexo pela primeira vez. Uma virgem deflorada.