terça-feira, 10 de novembro de 2020

Saga do acarajé

 

                     Desde pequeno eu sonhava comer acarajé. Via a iguaria baiana ser devorada com prazer pelas personagens nas telas do cinema, da TV e nas páginas de Jorge Amado. Morando em Jatobá, no Alto Sertão Paraibano, nos anos 1990 encontrar acarajé não era uma missão muito fácil. Mas isso não me incomodava, sabia que um dia meu caminho gastronômico se cruzaria com o bolinho de massa de feijão.

Acontece que numa noite de setembro de um ano aí em que minha barba era rala, meus ossos mais expostos e minha cabeça maior, após uma tradicional festa de rua, vem a indefectível fome. Nesses eventos a cidade ficava cheia de barraquinhas, tinha de tudo: tiro ao alvo, sorvete colorido que era mais bonito do que gostoso ou gelado, drinks com nomes sensualmente sugestivos e propagandas melhores ainda, batata frita, pipoca, copos de alumínio com seu ou nome ou da pessoa amada gravado... No final da farra, dominado pela larica pós-festa, eu sempre procurava os carrinhos de cachorro quente, quanto mais recheio melhor. Mas nessa madrugada, passeando entre os canteiros da praça, a procura do sanduíche, me deparo com uma barraca com uma faixa branca com letras vermelhas: ACARAJÉ.

Paralisei. Pensei. Fiquei em dúvida: saciar a vontade de comer hot dog, meu lanche favorito, ou arriscar matar minha curiosidade e me jogar na culinária da Bahia. Sempre fui indeciso! Depois de várias luas de autoquestionamento, parti para o quiosque da mulher de turbante branco.

- Um acarajé.

- Quente ou frio?

- Quente. Claro. – Pensei que ela falava da temperatura.

Antes de satisfazer o paladar, fartei os olhos. Momento histórico precisa ser valorizado a cada instante. Em câmera lenta, suspensão, as pessoas ao redor fora de foco na minha lente. Boca de jacaré, abocanho o alimento com um desejo animal. Olhos fechados para não enganar a língua. Pausa... mordida... pausa... pupilas da esquerda para direita e da direita para esquerda, uma lágrima, não sei se foi a pimenta ou o desapontamento.

Não gostei do acarajé, perdi o cachorro quente, mas realizar sonhos é sempre bom, mesmo que o acordar seja ainda mais agradável que a fantasia. Fui para casa feliz, apesar de triste. Eu, que sempre gostei da ficção, me deparei com uma realidade decepcionante. Tudo bem, tive a experiência, valeu, decidi nunca mais comer acarajé.

O tempo passou, inúmeros calendários gastos. Anos depois fui morar em Campina Grande. Numa manhã qualquer, não lembro o dia, mas vou dizer que foi quarta, gosto da quarta, estava conversando com colegas de trabalho sobre comida, Bráulio fala o quanto ama acarajé, segundo ele: a coisa mais saborosa do mundo. Não resisti, retruquei de imediato, não podia ficar calado. Contei minha experiência, falei mais com as mãos do que com a boca. Ele passou os dedos pelo queijo repetidas vezes, franziu a testa e em pequenos movimentos do dedo indicador disse:

- Você comeu o acarajé de uma baiana? Baiana mesmo. Por aí tá cheio de baiana nascida na Paraíba, em Pernambuco...

- Não sei, não perguntei.

- Você não pode falar que não gosta de acarajé até comer um feito por uma baiana legítima.

Não me convenceu, mesmo assim a pulga despertou por trás do abano protetor de meu ouvido.

Certa vez, após assistir a um show do Roupa Nova na praia de Cabo Branco, em João Pessoa, saindo da orla na tentativa de pegar um táxi, entre barracas e mesas, uma se destaca. Paro, penso, reflito, decido. Vou lá, olho pra a moça e pergunto:

- Você é baiana?

- Do Pelourinho, meu rei.

- Pois me dê um acarajé. – Peço já tomando conta de um tamborete branco de plástico.

Desta vez não houve imagem em quadro a quadro, suspense ou romantismo. Apenas comi na tentativa de aproveitar o momento e o sabor. Tive a certeza de que acertei na cozinheira. Vocês acham que gostei? Não. Detestei.

Voltei pra Campina sedento para encontrar Bráulio e contar que finalmente estive frente a frente com uma baiana verdadeira, provei seu acarajé e apenas comprovei minha primeira impressão. Na primeira oportunidade relatei minha experiência, convicto de minha verdade, meus braços gritavam. Ele balançou a cabeça, olhou pro teto, cruzou as pernas confiante ao exclamar:

- É porque você não comeu o acarajé de Lindete!

- Quem?

- É uma baiana. Nascida e criada em Salvador. Mora lá, mas vem todo São João para Paraíba, passa os trinta dias no Parque do Povo. Quem prova o acarajé dela não esquece. Passo o ano esperando junho só pra comer o melhor acarajé que existe.

Era janeiro, faltavam cinco meses para as festas juninas, eu podia esperar. Controlo minha ansiedade, a não ser quando ela me controla.

Fevereiro... março... abril... maio... junho! Parque do Povo: Maior São João do Mundo. Fui logo na abertura da festa, nem vi os fogos, rodei procurando Lindete, não a encontrei. Gente demais, deve ter sido por isso ou por causa de minha miopia. Passei a ir todas as noites, independente das atrações ou as músicas. Em vão, já estava pra desistir. Quando numa tarde, após um jogo da seleção brasileira, era copa do mundo, vencemos, olho para um vendedor de milho cozido, adoro milho, e vejo uma placa sobre um pequeno quiosque “Acarajé da Lindete”, letras vermelhas de novo. Não pensei duas vezes, na verdade nem pensei. Corri pra lá.

- Quem é Lindete?

- Sou eu. Mande as ordens!

- Quero um acarajé, o melhor que você tiver. Sua especialidade.

 Ele veio recheado, bonito, iluminado, cores em harmonia, fumaça dançando forró. Fechei os olhos, abri as narinas. Finalmente eu provaria o autêntico e legítimo acarajé. A cena cinematográfica voltou a acontecer, a trilha sonora ficou suave, numa crescente, ópera, até o êxtase: minha boca. Vocês acham que gostei? Não! Igual aos outros.

Não demorou a rever Bráulio. Vitorioso, contei a ele que havia chegado à conclusão final, provei a melhor versão do acarajé e reprovei. Encerrado, finalizado, não há mais nada a fazer! Meu amigo coçou a cabeça, olhou pro céu e sentenciou:

- Você só fala isso porque não comeu um acarajé na Bahia.

Pronto! Lascou! Vou ter que ir a Bahia para comprovar o que já sei. Mas como essa viagem não estava em meus planos, parei de pensar no assunto, até porque pra mim estava resolvido, três testes são suficientes.

Acontece que um tempo depois fui conhecer Salvador. Claro, acarajé não estava na minha programação. Sexta-feira a noite fomos ao Rio Vermelho, bares, muita gente, música, tudo muito bom. Mas lá estava ela: a barraca de acarajé! Várias. Perguntei ao garçom se o acarajé dali era bom.

- O melhor que há. E, aqui entre nós, naquela primeira barraca é feito o melhor dos melhores. – disse o jovem abrindo uma cerveja.

Me levantei, fui lá, cruzei quarenta e oito mesas, pedi desculpas três vezes por esbarrar nas pessoas e uma por pisar no pé de um cara bem maior que eu. Relutei uns minutos, tomei coragem, pedi. O acarajé veio que parecia um presente, este momento foi mais teatro que cinema. Acalmei a alma. Preferi degustar na tranquilidade de minha mesa. Fiz o caminho de volta e não me desculpei com ninguém. Sentei, preparei o cenário, incluindo o guardanapo, a caneta e o copo nos ângulos certos, deveria ter fotografado. Apoteose! Vocês acham que gostei? Não! Sendo sincero foi o pior dos quatro.

As consequências vieram algumas horas depois, além de não apreciar o sabor (de novo e de novo e de novo), tive infecção intestinal, pensei que iria morrer. Longe do lar, talvez nem fosse enterrado na minha Paraíba. Me tranquei num quarto de hotel, ar condicionado desligado, paramentado com calça jeans, meias, camisa, casaco com capuz para esquentar as orelhas, encolhido embaixo do edredom, tremendo de frio, às vezes de medo. Quase fui internado e por pouco não perdi o voo de volta pra casa. Em consequência disso tudo, continuo comendo cachorro quente.

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Argueiros alheios


                     Insone, Antenor no escuro olha pro teto. Três e meia da manhã, acordado há quase cinquenta horas. A TV ligada passa um filme repetido inúmeras vezes. Ele, quando fita a imagem, recita as falas dubladas pelos atores na tela. Reflete sobre o que fez no dia: nada. Apesar do cansaço do muito trabalho, planeja o amanhã, mais uma quarta, meio da semana, gosta. Sempre toma uma dose de cana nesse dia. Emblemático!

Lembra do vizinho da frente que vive de reformar o apartamento e chamá-lo para ver o novo piso e a bacia sanitária inteligente. Filho da puta, devia perder um dedo ou dois na furadeira que nem mesmo usa.

Escuta os barulhos da casa de cima, batidas da cama na parede, gemidos. Fora enganado sobre o isolamento acústico. A moradora: solteira, seios empinados, bunda que não cabe na calça, nariz no céu, cabelo no mar, pernas capazes de desconsertar o melhor dos alfaiates na busca das medidas. Cada fim de semana, mesmo hoje sendo terça, um alarido diferente, um convidado ou visita. Antenor, de olhos arregalados e ouvidos curiosos, anseia em matá-la. Na verdade, a deseja no colchão. Como não consegue, e já levou um desritmado e risonho “não” no elevador e outro severo na piscina, sonha contemplá-la no caixão.

Não suportando os gemidos, que não pode sentir em sussurros ao pé da orelha, levanta-se, percorre quilômetros de um pequeno corredor. Seu cachorro, um poodle chamado Cacau, precisa de tosa, corre em sua direção. Lambe seus pés descalços, sem receber a atenção recíproca. Em pé na sala, vestindo uma cueca verde e camiseta, cem por cento algodão, de propaganda da loja de móveis de propriedade de seu melhor amigo, faz uns meses que não o vê, e não lembra há quantos dias está sem contato. Tudo por causa de uma discordância sobre marca de cerveja, coisa que nem gosta muito. Verner ligou para pedir desculpas, escutou apenas o sinal de ocupado, e não teve retorno.

Abre a geladeira, daqui a pouco o sol nasce. Contempla uma garrafa d’água, alguns ovos, vários sachês de maionese e ketchup, resultado das pizzas que pede e nem sempre come. Encontra um pote de requeijão, com certeza vencido. Fecha a porta com o pé, se sente num filme de Hollywood. Passa o requeijão numa fatia de pão de forma. Fome! Mastiga recostado na pia. Fantasia o inferno no andar superior. Ambiciona arder no fogo do pecado. Não é bem-vindo. Volta onipotente ao quarto, as paredes e seus poucos quadros o saúdam. Cacau é barrado, não adiantou se declarar em latidos.

O filme na televisão é substituído por um telejornal matinal. Reprise de ontem, prévia de amanhã. Aprecia mais a apresentadora do que as notícias. Uma manchete policial, violência, seu pensamento se divide entre esquartejar o bandido e comer a repórter.

Os barulhos acima retornam, intensos, às vezes pausados. Fica em pé na cama. Silencia o programa televisivo, insano. Se possui estimulado pelas sensações auditivas vindas do alto, imagina-se protagonista, baba, sua. Saciado, sedento de ódio, cai na cama, corpo sujo, alma imunda. Chora lembrando que é um injustiçado. Ajoelha-se. Cacau grunhe, Antenor clama.

O sol não queria, mas cumpre seu papel, clareia o dia. Um banho. Silêncio no teto, se desespera na tentativa de ouvir o que não há. Inveja o sono que não pode desfrutar, conchinha! Escova os dentes, o espelho o saúda. A espuma em sua boca é muito mais que creme dental.

Veste a melhor roupa de hoje, pior que a de amanhã. Sai de casa. Cabeça erguida, máscara no figurino. “Bons dias” a todos, inclusive ao vizinho da frente e ao rapaz bonito desconhecido que entrou no elevador, que julga ser o homem que atrapalhou seu sono com façanhas sexuais com a vizinha. Seus olhos de ciúme e desdém filmam o jovem magro, enquanto este olha o celular e assobia um forró.


                       Dirige para o trabalho na companhia do rádio, fi
ca indignado com o noticiário. “O mundo está perdido!”, pensa alto ao mudar de estação. A insônia atrapalha seu relógio. Atrasado, cruza o sinal vermelho, atropela um ciclista. Esses caras de duas rodas não olham por onde andam! Para com a ajuda de alguns transeuntes. Chamam uma ambulância. Polícia? Não, não é necessário. Nada grave, a não ser a perda de tempo. Acontece!

No escritório é a mesma coisa de sempre: conversas bobas, críticas ao governo... Esse povo só atrapalha, torce contra! O dia demora a passar, a vida também. No almoço deseja uma coxinha de frango ou um pastel de queijo, come arroz com feijão e um bife mal passado. A garçonete serviu a melhor carne pra Alfredo, deve estar interessada nele.

No final do expediente do sol, volta pra casa. Não há barulhos de obras ou de sexo. Fica aliviado, curioso e consumido de desconfiança. Formula teorias. Cacau, deitado no carpete, com olhos de cachorro, apenas observa.

                      Quarta-feira. Pontualmente às vinte horas chega à igreja. Pleno. Absoluto. Em comunhão. Respira. Finalmente está em seu lar. Fervoroso ora pela conversão da moça de cima, pede que a jornalista da TV mude o tom de voz para não provocar os telespectadores, suplica aos céus para que o rapaz do elevador pague pelo pecado da madrugada e que a garçonete se comporte. Amém?

 

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Borboletas no coração

        Terminei minha primeira graduação aos vinte e três anos, era um dos mais jovens da sala. Ingressei na vida profissional pouco tempo depois, tive muitas alegrias e várias decepções, não apenas por isso, procurei trocar de sapatos e pisar por outras estradas. De olhos fechados bati com a cara na parede, quebrei o nariz, mas também pude mostrar todos os dentes inúmeras vezes nessa jornada. Chorei de sorriso no rosto ou de faca na alma. Numa dessas aventuras, na tentativa de encontrar o que não procurava, resolvi novamente prestar vestibular. Me empolguei como na época do ensino médio, não importa a idade estudante sempre será criança.

Numa tarde qualquer, de um número aleatório no calendário, estou na fila, antes havia fila, pra fazer a inscrição da seleção para a Universidade Estadual da Paraíba. Muita gente, um calor da mulesta! Nessa época o celular só servia pra fazer ligação e brincar no jogo da cobrinha. Meu passatempo foi olhar as pessoas ao meu redor, tentar ouvir as conversas alheias, às vezes contar a quantidade de linhas do piso de mosaico, imaginar desenhos no chão e no teto... Detesto esperar (há quem goste?). Odeio filas, até quando é pra sobremesa! Lá estou eu, me achando estiloso: cabelo longo, barba por fazer, óculos escuros na cabeça (o sol estava lá fora, a temperatura dele cá dentro), brinco de argola na orelha esquerda, camiseta estampada com a capa do álbum The Dark Side of the Moon, do Pink Floyd, short azul, tênis vermelho, mãos nos bolsos, fantasmas na cabeça, borboletas no coração.

Um garoto cheio de espinhas chega apressado, suado, não sabe o que fazer, seu olhar de medo, aflição e timidez procura informações. Não tem coragem de perguntar nada a ninguém. Anda de um lado para outro, uns riem, eu só observo. Já fui Daniel como ele agora é. Um outro cara, mais ou menos da mesma idade, se aproxima, conversam. Juntos vão preencher o formulário do certame. Foi possível ver as toneladas caírem de suas costas, quase um terremoto passivo.

À minha frente duas jovens conversam alto, comentam das pessoas, eu também faço isso, mas infelizmente só tenho a mim para bater papo. Mudam de assunto na mesma velocidade que tentam arrumar o cabelo. Diálogo de pires. Pensei em ir pro final do S que ficava cada vez maior. Não fui! Sabia que aquelas meninas tinham algo a me ensinar.

Atrás de mim uma mãe com seu filho, ela com a mão no pescoço dele, leoa. Olhos de águia vigiam tudo ao redor do seu pimpolho. Ele busca em vão uma toca pra se enfiar. Expressão de briga com o relógio, na sua cabeça os ponteiros estão parados. Imagino que reza, clama a Deus ou a Nossa Senhora Protetora dos Filhos para não encontrar nenhum colega, sobretudo aqueles mais gozadores. Vez por outra a mãe arruma a gola da camisa dele, brinca de ser pente. O moleque respira fundo e alto, espreita mais uma vez na esperança de que seus amigos venham amanhã ou tenham vindo ontem.

Minha ansiedade e o calor sobem exponencialmente. Amarro e solto o cabelo várias vezes, até por fim deixar um rabo de cavalo, não, no máximo, e melhor das hipóteses, consegui um rabo de burro.

Uma moça entra no amplo salão em que as inscrições são feitas. Cabelo roxo, boina vermelha, maquiagem forte, roupa apertada e curta, bota e meia calça pretas, tatuagem de fênix na coxa. Segue confiante, nem olha de lado. Todos, até quem não está lá, a veem, câmeras oculares, com zoons e focos distintos.

Uma das garotas à minha frente comenta, enquanto aponta o dedo disfarçado na palma da outra mão:

- Olha! Tá vendo aquela ali? Acabou de entrar. Com certeza vai fazer Jornalismo. Lá só dá esse povin assim.

A amiga concorda com uma gargalhada discreta e assentir de cabeça. A recém chegada, cantarolando uma canção qualquer, não está nem aí para esse ou quaisquer outros comentários. Deve ter uns dezessete anos de idade e muito a me iluminar sobre a vida.

Não resisto - sou metido, eu sei - peço licença e entro na conversa:

- Vocês vão fazer prova pra que curso?

- Odontologia. – Responde a primeira, sua voz denotava tanto orgulho que fiquei com receio de mostrar meus dentes.

- Direito. – disse a outra. Na convicção de uma ministra do Supremo, completou – Quero ser doutora!

Eu fiz ar de riso e esperei vitorioso na certeza de que a curiosidade gritaria alto em seus ouvidos e uma delas iria me perguntar o óbvio. A demora foi de apenas alguns segundos, sarcasticamente deliciados.

- E você? Vai fazer pra quê? – Questionou a futura dentista.

                            - Jornalismo. Porque lá só dá esse povin assim!

domingo, 19 de julho de 2020

Luke, o gato Jedi


Tenho mantido uma rotina de escrever, sejam contos, crônicas, frases soltas ou apenas bobagem literárias. Mesmo assim não possuo metodologia para colocar as palavras no papel. Há dias em que elas fluem, saem de lugar nenhum e chegam rápido a todo lugar onde eu esteja. O pensamento surge sem aviso, preciso correr, pegá-lo. Ideias são temperamentais e fujonas, se não as agarrarmos na hora certa elas se vão. Em outros momentos os vocábulos se escondem de mim, me esquecem, um abandono das letras. Quando essa solidão se prolonga me sento ao computador numa tentativa de paquera, minutos, às vezes horas, para iniciar um diálogo, nem sempre frutífero.
Hoje, depois de longo vácuo, lancei-me à escrivaninha: meia luz, música clássica, taça de vinho, tudo para criar um clima romântico, pensei em acender velas, achei exagero. Escrevo uma linha, detesto; esfrego os olhos, apago. O vinho me consola, Beethoven me embriaga, o teclado me despreza. Desisto! Desligo a tela. Sinto meus pés descalços serem acariciados. Luke, meu gato, enlaça seu corpo entre minhas canelas. Uma bolinha de pelos amarelos e brancos, na ficha do veterinário está escrito “sem raça definida”, tanto faz! Olhos dilatados a me fitar, lembrei do Gato de Botas, aquele do Shrek. Até a pelugem parece.
- Miau! – diz me pedindo comida.
- Peça à sua mãe.
- Miau. – sempre fala “não” quando discordo dele.
Finjo não ouvir. Suas unhas são mais eficientes que sua fala ou seu enroscar nas pernas.
- Para, Luke!
- Miau.
- Tá bom. Eu vou.
No caminho até o armário, esconderijo da ração, me detenho na geladeira. Abasteço minha taça, pego a latinha de chocolate amargo, oitenta por cento, quase me afogo na minha própria boca, molhada de tesão chocólatra. Abro a tampa, é possível sentir minha barba já embebida. Vazia! Segunda decepção do dia. Num gesto desesperado e sem menor lógica, viro a lata balançando para cima e pra baixo na esperança cega de que caísse lá de dentro uma última barrinha, um coelho da cartola. Em vão!
- Miau.
- Já sei. Tô indo.
Diferentemente do chocolate, a prateleira está cheia de ração, diversos sabores: peixe, atum, carne, peru (gato gosta de peru?)... Escolho um sachê de salmão, só porque aprecio a cor. Coloco na tigelinha vermelha que fica ao lado da máquina de lavar roupa. O bichano esfomeado avança, parece estudante na hora do recreio. Uma pequena pausa, ronrona, me olha feliz.
- Miau.
- De nada.
Há dois anos minha esposa teve a ideia de criar uma gata, ela foi enfática: uma menina! No mês de maio chegou a princesa felina: pequena, fofinha, olhos maiores do que a cara. Fizemos uma enquete em casa pra decidir o nome. Discussões, argumentos, defesas de teses. A gatinha, sem entender nada, apenas tentava se equilibrar sobre o edredom que esquentava o debate. Em homenagem a Star Wars, a pequerrucha passou a se chamar Leia.
Sempre sapeca, amolando as unhas no sofá, deixando sua marca pelo apartamento todo: dona. Demorou a aprender usar a caixinha de areia, na verdade, acho que jamais aprenderá. Leia foi crescendo em tamanho e travessura. Acontece que com o passar do tempo, a mocinha foi ficando diferente e apareceram protuberâncias em sua anatomia que não deveriam estar ali. Veio a revelação: Leia era um menino!
Convocamos uma reunião familiar. O que fazer agora? Devolver a bichinha ou bichinho estava fora de cogitação. Continuamos chamando Leia? Podia ser, não teria problema. Depois das deliberações, perguntamos a opinião do bichano:
- Miau.
Resolvido. Para continuar na mesma saga, o caçula passaria a se chamar Luke. Demoramos um pouco a nos acostumar com o novo nome, espero não o ter traumatizado.
Com passar do tempo, o lado sombrio da Força, ficou forte no jovem Luke, aos poucos ele se tornou o terror do condomínio. Chegava em casa ensanguentado, com as garras cheias de pelos de vários tons. As queixas não demoraram a bater à porta. No ninho do lar ele era tão quietinho, dormia, comia e comia e dormia. Inclusive dormia e dorme se fazendo de morto, bucho pra cima, pescoço esticado, patas abertas dobradas para dentro na altura dos cotovelos e joelhos, cabeça recostada no primeiro livro que encontre sobre a poltrona. Mas na rua era um tigre indiano. Várias vezes tive que ir procurá-lo, o pior dia foi quando inventei de apartar uma briga com um gato cinza, cara chata, patas grossas, pelo curto. Fui o mais arranhado dos três, passei a entender a expressão: “tava brigando com um gato?”. Com medo de que algo mais grave acontecesse com ele e preocupados com os vários ferimentos, finalmente seguimos os conselhos de outros pais de gatos: castração. O que havia sido símbolo da nossa descoberta de Leia ser Luke, seria agora modificado.
Cirurgia feita. Gatinho em casa depois de um dia na clínica veterinária. Remédio na hora marcada, cuidados, atenção, liberdade para brincar com um novelo de lã que estava reservado para bordar a manta de uma sobrinha. Entretanto, no menor descuido o atrevido jedi partia em suas aventuras na galáxia condominial. Não teve jeito, tivemos que colocar telas nas janelas e na varanda do apartamento, o universo dele fora reduzido a um planeta.
Passei um tempo a observar Luke saciar sua fome canina, com perdão da má palavra pra ele. Lembrei do fato de ele ter um paladar estranho pra um felino (será a influência da Força?): come alface, rouba brócolis, adora mamão e quando chego da feira, rasga as sacolas procurando tomate. Sem chocolate me enganei com um cacho de uva.
Voltei à mesa de escritor, sentei próximo a diversos autores moradores de minha estante. Sorriu menino serelepe para eles, o seu silêncio fala tudo. Luke me acompanha, sobe na bancada, se lambe, sua língua percorre todo o corpo, levanta uma pata para lamber a barriga num contorcionismo de fazer inveja, imagino que não tem ossos, é todo feito de borracha! Orelhas em radar giram captando tudo. Deita a cabeça nas teclas, letras aleatórias são digitadas.
- Miau.
- É. Você tem razão. Hoje não tenho uma história pra contar!

sexta-feira, 26 de junho de 2020

Câncer com ascendente em peixes


Sou de câncer. Nasci no final de junho, entre o São João e São Pedro. Adoro as festas juninas, fogos, comidas típicas, bombinhas, pular fogueira, receber afilhados e me tornar madrinha dos amigos em volta das chamas festivas. “São João disse. São Pedro confirmou. Que eu vou ser sua madrinha. E eu seu afilhado. Que São João mandou.” Sou canceriana e gosto disso. Mas a data de nascimento não diz tudo sozinha. Sou câncer com ascendente em peixes, nem preciso falar que sou manteiga derretida. A própria encarnação do drama: em carne, osso, nervos, no rubro apressado nas veias, no silêncio dos gritos e barulho das lágrimas. Todo dramático é tempestade, só acalma com a chegada de arco-íris. Água com ascendente em água, nem quero saber minha lua, vai que é escorpião. Não que eu acredite em signos. Mas e se for verdade?
Meus amigos, aqueles que nem o são, dizem que sou inteligente. Acho que sou caótica, isto não tem nada a ver com inteligência. Não interessa! Quando eu era pequena, adorava tomar banho de chuva. Correr solta enquanto as gotas d’água caídas do céu me golpeavam. Entre a calçada e a rua formavam-se rios, correntezas fortes, nenhum ser humano normal poderia resistir àquelas corredeiras. Eu não tinha medo, enfrentava a mais brava das torrentes. Sandálias como barcos. Quantas vezes cheguei em casa com um pé descalço, dias e dias sem ter com que acomodar os pés. Valia a pena! Embaixo da chuva eu podia ser eu mesma, não havia ninguém a me observar, quem estava lá, estava preocupada apenas em me lavar com a água do celeste. Eu me lavava. Hoje eu queria fugir pra tomar banho de chuva. Todo mundo gosta de se banhar na cachoeira do céu, mas quase ninguém tem coragem de se molhar, deixar a água lavar e levar toda a maquiagem. Eu queria fugir pra tomar banho de chuva!
Meu sonho era ser atriz pornô. A primeira vez que vi um filme de sexo eu já tinha vinte e um anos, e tive que assistir escondida. Minha mãe, tia, avó, não podiam saber. Senão diriam que estava perdida, depravada, com os pés no inferno. O corpo todo. Vi. Uma amiga levou uma fita, fita mesmo, lá pra casa, o nome era pura poesia lasciva “As proezas de vinte centímetros no interior da caverna molhada.” A cada cena, mais meus olhos se arregalavam e minha imaginação se abria. Tinha de tudo, tudo que nunca fiz e sempre quis fazer. Eu nem era mais virgem, claro que não, mesmo assim me achei uma inocente vendo aquilo. Minha vida mudou. Todo mundo teria que ver filme pornô, deveria ser matéria obrigatória no ensino médio. Já pensou as professoras no colégio de freiras discutindo sobre a filosofia existente na dupla penetração? É a mulher no domínio! Ou então um seminário acerca do prazer proporcionado por uma gozada de quatro. Quatro não é a quantidade de pessoas, bem que podia ser. Tudo seria menos hipócrita. De lá pra cá, realizei muitas fantasias e outras estão por realizar, há fantasias sexuais que devem ficar no campo do desejo e não da realização. Existem pensamentos que não tenho coragem de admitir nem pra mim mesma.
Se a imaginação tivesse cor seria rosa. Dizem que o cor-de-rosa combina com minha personalidade. O rosa de todas as flores, não importam se brancas ou amarelas, todas são rosa. O rosa de tantos bebês, o rosa que povoa os contos de fadas a encantar as meninas. Mas das flores as pétalas sempre caem, os bebês se tornam adultos e as fantasias perdem a luta contra a realidade. E eu sempre choro das piadas da vida! Sou câncer com ascendente em peixes...
Tenho um verdadeiro pavor de ficar sozinha com outra pessoa, por mais amiga que seja. Tenho medo de não ter assunto, não saber conversar, é, realmente não sei. Em rodas com muita gente, converso, falo pelos cotovelos, sou uma matraca, mesmo, discuto qualquer assunto. Em dupla, mal consigo abrir a boca. Pânico! Acho que a pessoa vai perceber, pensar que sou chata por não dialogar. Até com amigos íntimos acontece isso. É um tormento. Na minha opinião, o melhor momento para se conversar é quando se está sozinho. Eu converso muito, travo debates gloriosos com o espelho, a imagem me imita, não ligo. Ando gesticulando nas praças, quando alguém me olha, baixo a cabeça. Prefiro no carro, som ligado, vidros fumê, as pessoas do lado não têm como notar que no veículo estou eu e meus anjos, às vezes demônios. Mas, sem dúvida, o melhor lugar para se conversar sozinha é no chuveiro. Meu signo é de água, nada mais natural. Lá eu crio histórias, viagens, fantasias... Nas minhas aventuras tudo sempre dá certo e eu sou a heroína. Sei cantar, dançar, falar francês, bon soir, mon amour. Entendo até de matemática. Não há problema irresolúvel pra mim. Já voei, fiquei invisível, tive a força da Mulher Maravilha, a sensualidade da Mulher Gato, a coragem da Viúva Negra... Conquistei todos os homens que desejei, beijei, abracei, fui o centro das atenções, flashs, pessoas ao meu redor com dentes a mostra a mãos segurando o queixo, a me ouvir, compreender, talvez até seguir...
Mas isso tudo é na minha realidade molhada. Na vida real, por mais que tente andar em direção às pessoas e às prosas, mais meus pés ficam parados ou se movendo para trás. Ando, ando, ando e não chego a destino algum. Em breve não haverá mais tempo para corrigir isso, o tempo trabalha contra nós, quando percebemos isso já é tarde.
Era louca para completar quinze anos. Debutei não vi diferença, a valsa foi a única novidade. Passei a sonhar em completar dezoito. Ficar maior não me aumentou em nada. Então, desejei fazer vinte e dois, não sei por que, gosto desse número. Nada, vinte e três, vinte e quatro... A mesma coisa! Quando me percebi, descobri que não queria mais idades futuras, desejava as do passado. Hoje vejo que as voltas dos ponteiros do relógio são minhas adversárias, nossas.
Quem mais toma vinho, suave, de procedência duvidosa, enquanto monta quebra-cabeça e escuta músicas infantis? Eu choro com “se enamora” do Balão Mágico, molho as peças do jogo, tento enxugar soprando e passando delicadamente na blusa. Prefiro montar réplicas de obras de arte. Me sinto a própria artista criadora da tela. Ontem conclui um Michelangelo, duas mil peças. Vou fazer emoldurar. Quase todo final de semana faço isso, quebro a cabeça, no tabuleiro ou na parede. Muito badaladas minhas tardes de sábado e domingo. Preciso mudar... Quem sabe eu encontro um puzzle da Mona Lisa, cinco mil partes, no mínimo. Passo a tomar vinho seco, é mais chique, e a ouvir Chico Buarque.
Sabe uma coisa engraçada? Meus pais queriam me proteger. Todos os pais tentam preservar suas crias das mazelas do mundo. Só que para se saber o ardor que o vinagre causa ao ser jogado no arranhão, para que o ferimento não inflame, é preciso que se caia. Eles queriam me resguardar das coisas que eles gostavam quando tinham minha idade. Na cabeça deles eu não saberia me defender sozinha, mesmo que eles tenham se defendido. Eu ria e às vezes ficava com raiva desse escudo invulnerável colocado à minha frente. Mas, hoje, sinceramente acho que irei proteger meus filhos das mesmas coisas e com a mesma intensidade de que fui defendida. Irão me desobedecer, eu também não segui as orientações ao pé da risca. Ninguém segue!
Eu estava pensando, não sou de se jogar fora, embora tenha dias que me veja horrível. Mas ultimamente tenho me achado bonita, pelo menos é isso que prefiro acreditar. Nos dias que me encontro linda no espelho, passo horas me contemplando, é muito bom ser bonita. Quando me deparo com uma mulher feia, sofrida, precisando de uma boa dose de auto-estima, uma pitada de maquiagem e uma overdose de charme, simplesmente me intrigo do espelho, não olho pra ele, resolvi que quero ser bonita, e o que o que os olhos não vêem o coração não sente. Logo, já decidi: sou linda. Não interessa o que minhas amigas ou a previsão do meu horóscopo digam.
Que se dane câncer, que se afoguem os peixes. A roleta do zodíaco pode girar, um dia serei leão, no outro sagitário. Acordo virgem e adormeço gêmeos. Serei áries. Não, áries não. Serei libra e me metamorfosearei em escorpião. Com veneno e tudo, afinal, veneno é essencial!

sábado, 30 de maio de 2020

A moça do telemarketing


Tarde de sexta. Quarentena por causa da covid 19, eu na sala do meu apartamento, sentado no sofá, dono do mundo, almoçando um prato de cuscuz com ovo, galinha e graxa, assisto ao jornal na TV. As batidas no chão do meu calcanhar esquerdo demonstram a minha inquietude.  Quase me engasgo com as notícias, culpa delas, jamais do cuscuz. Me revolto, pego a arma superpoderosa: o controle remoto. Procuro músicas, passeio na internet. Escolho um samba, sou um bom sujeito.
O anjinho etílico que me guarda e frequenta meu ombro, sussurra que devo abrir uma cerveja. Levanto decidido, quase um passista na avenida do sofá à geladeira. Abro uma IPA que estava guardada para uma ocasião especial. Há de ser hoje! Coloco suavemente na tulipa. Antes do paladar, sacio a vista com a espuma subindo. Ritual, é assim que deve ser. No momento exato do primeiro gole, quase sentindo o lúpulo descer amargamente saboroso pela minha garganta sedenta, o celular toca. Prefixo de São Paulo. Penso em recusar, o demoninho morador do outro ombro me aconselha a atender.
- Oi.
- Boa tarde! Gostaria de falar com o senhor Júlio.
- Sou eu.
- Olá, seu Júlio. Eu sou a Claudinédia...
- Clau o quê?
- Claudinédia. Sou representante comercial do Banco Vênus. Tudo bem com o senhor?
- Bem, bem, bem mesmo, ninguém tá nesse momento, né?
- Verdade. Eu entendo, mas é a vontade de Deus!
- Acho que não!
- Enfim. Espero que pessoalmente o senhor esteja bem.
- Tô.
- Então. Eu gostaria de estar oferecendo uma ótima oportunidade ao senhor. Eu poderia estar falando agora? (...) Seu Júlio? (...) Seu Júlio? (...) Alô? (...)
- Desculpa, foi o cuscuz. Gosta de cuscuz, Clau? Vou chamar de Clau, é mais fácil!
- Fique à vontade...
 - Gosta de cuscuz? Com ovo e graxa é uma maravilha.
- Na verdade nunca comi.
- Tadinha. Ninguém pode ser feliz sem cuscuz.
- Seu Júlio, como eu disse tenho oferta para o senhor...
- Também tenho: quer cuscuz?
- Obrigada. Fico agradecida. Como eu estava dizendo, o Banco Vênus, devido ao seu bom relacionamento no comércio local...
- Pera. Esse bom relacionamento é meu?
- Sim senhor. Sabemos de sua ótima relação com o mercado de sua região.
- Mais ou menos. Teve uns dois ou três que me colocaram no Serasa, maldade pura. Não acha?
- Tenho certeza que o senhor cumpre seus compromissos.
- Às vezes minha mulher fica com raiva.
- Desculpa, não entendi.
- Ela fica chateada, Clau, porque não cumpro meus tratos. Quer falar com ela?
- Como assim?
- Pra você dizer a ela tudo isso que disse a mim. Por exemplo: honro meus compromissos.
- Seu Júlio, o Banco Vênus está disponibilizando um cartão de crédito para o senhor. Poderia, por gentileza, estar me confirmando seu endereço?
- Clau, tô decepcionado. Você conhece tanto de mim, e não sabe onde moro?
- Preciso do endereço para estar mandando o cartão.
- Oxente! Eu disse que queria?
- Sei que o senhor não vai recusar. É uma ótima oportunidade. Comodidade total. Hoje em dia é perigoso andar com dinheiro...
- Não se anda com o que não se tem, né?
- Como?
- Nada não. Fala aí do cartão mágico.
- Bandeira Veloz, aceito em todo Brasil. Posso estar enviando hoje ainda. Chega em até dez dias úteis.
- Sei... e a anuidade?
- Isento. O senhor só precisa ter uma parcela mínima de cem reais por mês. Por exemplo, na compra de um produto de trezentos reais, dividido em três vezes, já fica garantido o valor mínimo por três meses. Se por acaso em algum mês não atingir esse valor, será debitado um valor simbólico de cinco reais.
- Perfeito! É só gastar cem que não pago cinco!
- Isso. Posso estar finalizando o pedido para enviar?
- Vou querer não, obrigado!
- Mas seu Júlio É uma chance única. Veja bem, a gente remete o cartão, ele vai bloqueado. O senhor só desbloqueia se desejar.
- Desejo não.
- Junto com o cartão vão panfletos explicativos. São para o cliente estar lendo com calma e conhecer melhor no aconchego do seu lar.
- Tomando uma cerveja, né?
- Se o senhor gosta, pode ser. Aí na tranquilidade decide.
- Não. Mande não. Esses panfletos são feitos de papel, papel de celulose, celulose vem das árvores. Vão matar os pés de pau.
- Isso não é problema...
- Matar as árvores não é problema? Tadinhas delas. E o aquecimento global?
- Eu quis dizer que não é um problema pra gente. As árvores são importantes, mas é só um pouco de papel.
- Já perguntei se gosta de cuscuz?
- Já sim, seu Júlio. Voltando ao motivo de minha ligação...
- Quero não!
- Mas por quê?
- Pelas árvores, por mim, pelos cinco reais.
- Seu Júlio, eu estarei encerrando o contato. Obrigado pela atenção. Boa tarde!
A moça desligou sem me deixar dizer tchau. Voltei ao samba e ao meu mundo. O pequeno batedor de asas no meu ombro esquerdo me lembra de meu copo. Vou ávido, um gole grande, maior que a boca. Careta. A cerveja esquentou!

segunda-feira, 11 de maio de 2020

Ele e eu


                       No supermercado. Foi lá. Eu estava na fila da sessão de carnes, em dúvida se comprava picanha ou contrafilé. Já havia decidido levar um quilo de carne moída, suspirei imaginando o sanduíche feito com ela. Levantei a vista, na padaria estava ele, mudei o olhar, não podia ser. Voltei, era sim. Vestindo a camisa vermelha, adoro o encarnado, que comprei em três parcelas na loja de roupas falsificadas, e daí? Ele nunca soube a diferença. Short branco, meio folgado, não permitia ver suas coxas grossas, atléticas, mesmo sem nunca ter praticado esporte algum. Tênis de correr, cores estridentes, continua sem saber combinar as peças. Em cada pulso um relógio, detesta se atrasar. Conversava descontraidamente com a moça do balcão, provavelmente explicava para ele a diferença entre um croissant e um rissole. Eles riem, eu me tremo, a água salgada que cai sobre minhas compras é suor, não lágrimas, estas banham meu peito de fórmula um.
Minha vez, peço um colchão mole, podia até ser cupim. Por um instante tirei o foco, quando voltei para os pães, Anastácio não estava mais lá. Acelerei meu carrinho pelas rodovias do mercado, procurei e procurei. Numa bodega seria tão mais fácil!
Por coincidência, eu o conheci numa loja como esta há seis anos. Eu com pressa, ele cedeu sua vez no caixa. Acabei esquecendo uma barra de chocolate ao leite. No estacionamento, guardando as compras, assobiando um sucesso da época, não lembro qual era, tampouco a banda.
- Você esqueceu isso!
Eu vi o chocolate acompanhado de uma mão grossa, grande, brutalmente delicada, percorri o resto do braço, passei pela barba espeça e mal cuidada, reconheci o rosto viril, sem sorriso, o mesmo que minutos antes gentilmente me deixou passar. Alto, forte, mas não definido, cabelo castanho assanhado. Agradeci, sem graça, ele fechou o porta malas do meu carro.
- Prefiro o amargo. – disse sem me fitar.
- Como assim?
- Chocolate. Esse seu é muito doce, enjoa.
- Penso ser exatamente essa a ideia. Adoçar a vida! Leveza.
Depois desta frase ele sorriu pra mim, um sorriso repetido tantas vezes depois. Sim, foi pra mim, tenho certeza de que por mim. Passamos uma hora em cerca de cinco minutos. O único tema foi gostos e sabores. Meu Deus, tão diferentes! Trocamos telefone. Pediu para eu não ligar, ligaria. Não aguentei a ansiedade. Disquei ao chegar em casa. Convidei para sair. Um chopp amigo para falar de amargos e amarguras, doces e doçuras.
Aquela foi a primeira de muitas noites, que se tornaram tardes e manhãs. Um ano e dois meses depois estávamos morando juntos, em meu apartamento. Redecorei todo por causa dele. A cada mês mudava as fotos nas paredes, hoje entendo o quanto os retratos nunca foram devidamente reparados.
Anos rapidamente eternos. Trabalhávamos muito, por isso aproveitávamos o máximo dos momentos juntos. Dos filmes de ação, assistia por ele, às poesias que ele me ouvia ler mesmo detestando os versos. Nossos banhos juntos, mãos ensaboadas percorrendo cada dobrinha do outro. A melhor parte sempre foi dormir, depois de suar e gemer, eu em pedra e polvo sobre ele. Ele incomodado com meus tentáculos, tentando se desvencilhar sem me acordar. Nunca quis me despertar. Saíamos bastante: boates, bares, festas... Anastácio bebendo muito, ninguém conseguia derrubá-lo, bebia de cachaça a whisky, cerveja era igual água. Dificilmente ficava bêbado, no máximo zuado, como definia. Ele não gostava de carícias em público, achava desnecessário, eu entendia, não insistia. É o jeito dele. Mas às vezes, no momento certo, roubava um beijo, ele ria, vermelho, lindo! Andávamos num chão estrelado!
Tínhamos discordâncias e atritos. Qual casal não tem? Porém a primeira vez que realmente brigamos foi quando eu falei sobre filhos. Me disse ser um absurdo, sem lógica, crianças só atrapalhariam. Pra mim, tanto fazia Maria ou João, ele não queria nenhum. Dias de discussão, noites de brigas, noitadas arruinadas às três da manhã, por causa de comentário acerca de uma criança correndo em casa.
Rapidamente tudo foi desbotando. A velocidade da queda é sempre maior. Maldita gravidade! Algumas palavras ou posturas passaram a ser tacitamente censuradas em casa, até a proibição ser parida sem gritos ou sussurros.
Numa manhã, após um café mudo e sem gosto. Anastácio saiu de casa, não se despediu, não deu tchau ou até logo. Beijo de futura saudade era coisa do passado. Ele foi embora e nunca mais voltou.
No mercado foi a primeira vez que o revi depois do “adeus calado”. Desisti da busca, parei ao lado de um freezer de cerveja. Abri, peguei uma long neck, quase não consigo girar a tampa. Consegui. Em segundos diminuí progressivamente o ângulo da garrafa em minha boca.
Minha visão periférica, ou sexto sentido, me mostrou Anastácio se aproximando. Parei a cerveja e o olhei, ele empurrava seu carrinho, me encarava, sua barba era a mesma e seu cabelo ainda necessitava de pente. Não sorriu, nem eu. Comecei a me afogar. Esperança, medo, saudade, tesão, ternura, raiva, carinho... Todas as expressões do amor passaram pelas minhas artérias, sangue não havia mais lá.
Anastácio, sem parar, emparelhou, mirou em mim e disse o que eu precisava ouvir:
- Adeus, Joaquim!

quarta-feira, 29 de abril de 2020

Dois corpos


Diana entrou exuberante no restaurante. Imponente, sozinha, flutua no salão, câmera lenta. Todos os olhos a acompanham, as conversas cessam, é possível ouvir o barulho do seu longo cabelo negro dançando na calma da ventania. Imensa, maior que seu corpo, mais elevada que sua altura. Mini saia azul, blusa em segunda pele vermelha, decote generoso, botas combinando com a tomara que caia, tom sobre tom. Expectadores laçados, dominados!
Estevão, sentado à mesa 41, hipnotizado com aquela visão paradisíaca. Copo na mão direita, parado no ar, pupilas dilatadas em movimento contínuo à maravilha. Queixo a um quilômetro dos dentes superiores. Na companhia de dois ou três amigos, não sabia mais quantos eram. Samba acelerado e desritmado a torturar suas costelas esquerdas.
Aos poucos, lentamente, o som volta, os movimentos também. Diana chega a uma mesa no fim do hall. Amigas a esperavam, beijos, abraços. Estevão é piloto de avião, conhece o mundo todo. Conta vantagens das várias mulheres que conheceu, exibe como troféu um álbum arquivado no celular. Se vangloria de nunca ter se apaixonado, a não ser por Pietra, uma bela italiana, se esbarraram em Roma, no dia em que assistiu à missa do Papa. E também Baya, pintora argelina, dona de um sorriso de enfraquecer as pernas e brotar borboletas na barriga do mais frio dos homens. Ou Mahara, atleta indiana que conheceu durante a maratona de Nova York, mentiu pra ela dizendo também ser corredor, não resistiu ao primeiro treino de rua. Também teve Fiorella, bailarina argentina, ou será chilena? Disse ser natural do Uruguai. Se encantou por ela em um espetáculo em Montevidéu... Enfim, agora estava apaixonado pela morena que nem mesmo sabia o nome ou de onde houvera saído.
Não conseguia mais se concentrar na conversa. Calculava, pensava, traçava planos de voo na cabeça, na expectativa de descobrir uma forma infalível de se aproximar da moça. Todos no bar a haviam notado, certamente desejado. Nenhuma luz a clarear seus românticos pensamentos. Olhava para a última mesa esperançoso de reciprocidade. Os olhos de Diana finalmente encontram os do piloto. Ela sorri. Estevão baixa a cabeça. Alguns segundo de arrependimento, volta tentar fita-la. Vê a mulher conversando com um cara sentado ao lado. Um rapaz feio, certamente com papo chato. Talvez até tenha mau hálito. Nem tinha!
Estevão tentou mudar o foco, começou a falar de futebol. Os amigos não contiveram os risos, afinal, o homem errara todas as informações dos campeonatos, nem mesmo os nomes dos times conhecia. Ele também gargalhou dando soquinhos na mesa. As risadas vão se esvaindo, quase no fim, como numa sequência ensaiada, a melodia é interrompida:
- Oi, a piada deve ter sido boa! Me contaria?
Olhando para o chão, o piloto viu o rubro de um par de botas ao seu lado. Gelo na espinha, fogo nas mãos, terremoto nos joelhos, Saara na boca. Depois de quase uma semana levanta a vista. O sorriso de Baya não chegava nem perto da divindade vinda daquela boca.
- Você fala, né? Vai me contar a piada? Tenho certeza de que foi a mais engraçada da noite. Meu nome é Diana. – disse a semideusa enquanto se apossava de uma cadeira.
- Ele é a piada! – Comentou Bruno, um dos amigos, ao tentar chamar atenção.
- Não tenho dúvida de que ele é uma graça. – Arrebatou a moça.
Diana é advogada, seu prato preferido são homens acusados de violência doméstica. Sente prazer em ver o medo em seus olhos na sala de audiência. “Não merecem respeito ou perdão!” Advoga casos de divórcio e pensão alimentícia, sempre ao lado das mulheres. Suas ideias trucidam as partes adversárias. Nocaute! Mantém um escritório em sociedade com a amiga Donna, uma dupla admirada e temida tribunais afora. Mulher determinada, jamais teve qualquer receio de como conduzir sua vida.
É clichê e lugar comum dizer que a noite foi pequena, mas realmente foi. Minúscula, frente a tudo vivenciado dali pra frente. Curiosidade, atração, paixão, amor houve todos esses momentos, ódio também, senão não tem graça! A melhor parte das viagens de Estevão, passaram ser o retorno, mais piegas impossível. Todos os casais apaixonados são piegas e bregas. É a vida! Ele, sempre questionador, descobriu que nem toda verdade é absoluta, dois corpos podem sim ocupar o mesmo lugar no espaço.
Todavia, como disse Vinícius, o amor não precisa ser imortal. Nesse caso, apesar do tempo de infinitibilidade, também houve óbito. Diana sepultou o romance, decidida, resolvida, sem arrodeios. Não quis briga, mas foi inevitável. Estevão chorou, esperneou, prometeu, ajoelhou, viajou (dessa vez em terra)... Nada adiantou.
Cada um continuou sua vida. Ou quase. Estevão seguia a de Diana. Cada passo, audiência, bares, internet... Via de longe, não entendia por que tudo havia acabado. Sofreu, caiu do céu que sempre dominou. Pra ele, eles dois eram um só, veio a pior conclusão, separados: é possível um corpo estar em dois lugares ao mesmo tempo.


* Texto escrito a partir de uma ideia sugerida por Pedro Wagner Mota.

segunda-feira, 13 de abril de 2020

O que veio primeiro?


Há um tempo, não sei quanto, faz alguns anos deixei de contar quantas folhas de calendário já rabisquei ou rasguei, houve as que guardei, claro. Enfim, viajei a Curitiba na companhia de meu amigo Evaldo, foi a primeira vez que ele voou, nem teve medo, na verdade não tirou os olhos da janela, a não ser em alguns poucos momentos que se virava pra mim, sem dizer uma só palavra, apenas assentindo com a cabeça enquanto erguia as sobrancelhas e projetava o lábio inferior.
 No trajeto da Paraíba ao Paraná, fizemos conexão em São Paulo. Trinta minutos, que foram transformados em duas horas e meia. Chuva fina. Garoa, né? Enquanto estávamos na zona de embarque a espera do avião, observando os horários no painel eletrônico, nossas barrigas nos avisaram da necessidade de comer. Guarulhos é tão grande (e caro). Fomos andando, não tinha um pirão, muito menos rubacão, nada de arroz de leite, buchada nem pensar (ainda bem, não gosto mesmo). Caminhamos, caminhamos, muitas placas, luzes, gente apressada... Encontramos uma moça, postura ereta, vestida de azul, quepe bonito, cabelo preso, em pé por trás de um pequeno balcão. Paramos na frente dela, eu, apressado, e pra mostrar que era acostumado em aeroportos, me debrucei na bancada, mão no queixo, perguntei onde encontraríamos uma lanchonete. A mulher seriamente sorriu e disse:
- Vocês passaram por algumas. Acima dessa escada que vocês acabaram de descer, à esquerda fica uma praça de alimentação, tem muitas opções. Não viram?
- Vimos. Não, olhamos, mas não vimos... Tudo bem, estamos perto, é subir as escadas. Obrigado, moça! – Disse eu ensaiando um tímido “tchauzinho”.
- Não. Vocês não podem voltar.
- Como assim? A gente tem um avião pra pegar. – Disse Evaldo, lustrando a careca com a mão.
- Estão vendo a faixa aí atrás de vocês? Pois é, ela é clara. Passou, não volta. – Falou ela indicando um traço amarelo no chão, acompanhado da frase “proibido retornar”.
- Amiga, são apenas alguns centímetros! Por exemplo, se tivéssemos perguntado ali, olha só, ali, um passo de distância. Você responderia e nós voltávamos. – Falei, certo de ter convencido a garota azulada.
- Verdade, o único problema é que vocês deram um passo. Que pena. Lamento! – Essa frase foi acompanhada de um leve puxar de lábios e fuzilar de íris.
Voltamos a questionar sobre o voo. Se não podíamos voltar, como chegaríamos ao nosso destino? Ela foi didática, quase soletrou as palavras, fiquei pensando se eu ainda entendia português. Disse que teríamos que dar a volta completa, ir para o portão de embarque, passar pelo detetor de metais, etc, etc. Resultado: andamos, andamos, andamos muito, não comemos, rimos bastante e não perdemos a aeronave rumo à capital paranaense.
Chegamos à noite em Curitiba, fomos direto pro hotel. Para matar a fome comemos uns sanduíches, pelo menos ela morreu. Judiou, mas faleceu, as velas foram garrafas de cerveja.
Na manhã seguinte, acordamos cedo, dia cheio, evento sindical: palestras, debates (brigas também), crachás pra cima, batidas nas mesas, gritos em microfones, argumentos delicados, paciência, falta dela, votos, ideias... muitas... um universo num canto só! Intervalo pro almoço. Eu e Evaldo aproveitamos as duas horas de descanso para dar umas voltas na cidade. Muitas flores, artistas de rua, gente, o melhor de cada lugar é o povo. Mesmo assim, chega uma hora em que o estômago ofusca a vista. A partir daí nossos olhos só se voltam para anúncios de comida. Não tínhamos muito dinheiro, comer barato era o objetivo.
Então, eureca! Vimos um cara numa esquina, encostado num poste, olhar perdido, não estava lá. Pé direito em cruz com a canela esquerda. Calça jeans, camisa de botões branca, mangas longas, barba cheia, cabelo ralo e assanhado. Nas mãos uma placa com a inscrição: “Almoço livre por R$4,99, suba a escada.”
- Que escada? – Indagou meu bucho.
O homem da propaganda, sem mudar a vista, apontou com a mão esquerda. Gostei do relógio dele! Subimos todos os mais de trezentos degraus até o primeiro andar. Na primeira mudança de lance, lemos uma folha de ofício com os dizeres: “Buffet livre R$ 4,99, com direito a uma carne. Cada carne extra custa R$ 1,50”. Calculei junto com as lombrigas: “Cinco reais, mais uma carne e um suco, gasto menos de dez conto”.
Ao chegar ao topo do castelo, vimos umas mesas, muitas, inclusive, tinha mais do que cabia, feitiçaria, só podia ser, naqueles poucos metros havia quilômetros de gente esfomeada. Uma mesa de self-service colorida: verde, marrom, amarelo, vermelho, branco, lilás, azul piscina, rosa choque... Fomos colocando os nossos pratos, Evaldo sorria, devia, igual a mim, pensar na nota de dez, duas de cinco também servia. No final do balcão, uma moça de branco, luvas, toca plástica um garfo numa mão e na outra uma faca (aquilo era peixeira), tomava conta das carnes, afinal, cada cliente tinha direito a um pedaço, pro segundo ou terceiro era preciso desembolsar um pouco mais.
Depois de pratos cheios, chegamos à guardiã das proteínas. Havia três cubas à sua frente: uma com frango, outra com linguiça e a última cheia de ovo frito. Já estava no meu orçamento gastar um real e cinquenta a mais, parei durante uns segundos, vi as opções e questionei:
- O ovo conta como carne?
- Claro. É como diz a cozinheira daqui: um ovo vale uma galinha inteira!