quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Borboletas no coração

        Terminei minha primeira graduação aos vinte e três anos, era um dos mais jovens da sala. Ingressei na vida profissional pouco tempo depois, tive muitas alegrias e várias decepções, não apenas por isso, procurei trocar de sapatos e pisar por outras estradas. De olhos fechados bati com a cara na parede, quebrei o nariz, mas também pude mostrar todos os dentes inúmeras vezes nessa jornada. Chorei de sorriso no rosto ou de faca na alma. Numa dessas aventuras, na tentativa de encontrar o que não procurava, resolvi novamente prestar vestibular. Me empolguei como na época do ensino médio, não importa a idade estudante sempre será criança.

Numa tarde qualquer, de um número aleatório no calendário, estou na fila, antes havia fila, pra fazer a inscrição da seleção para a Universidade Estadual da Paraíba. Muita gente, um calor da mulesta! Nessa época o celular só servia pra fazer ligação e brincar no jogo da cobrinha. Meu passatempo foi olhar as pessoas ao meu redor, tentar ouvir as conversas alheias, às vezes contar a quantidade de linhas do piso de mosaico, imaginar desenhos no chão e no teto... Detesto esperar (há quem goste?). Odeio filas, até quando é pra sobremesa! Lá estou eu, me achando estiloso: cabelo longo, barba por fazer, óculos escuros na cabeça (o sol estava lá fora, a temperatura dele cá dentro), brinco de argola na orelha esquerda, camiseta estampada com a capa do álbum The Dark Side of the Moon, do Pink Floyd, short azul, tênis vermelho, mãos nos bolsos, fantasmas na cabeça, borboletas no coração.

Um garoto cheio de espinhas chega apressado, suado, não sabe o que fazer, seu olhar de medo, aflição e timidez procura informações. Não tem coragem de perguntar nada a ninguém. Anda de um lado para outro, uns riem, eu só observo. Já fui Daniel como ele agora é. Um outro cara, mais ou menos da mesma idade, se aproxima, conversam. Juntos vão preencher o formulário do certame. Foi possível ver as toneladas caírem de suas costas, quase um terremoto passivo.

À minha frente duas jovens conversam alto, comentam das pessoas, eu também faço isso, mas infelizmente só tenho a mim para bater papo. Mudam de assunto na mesma velocidade que tentam arrumar o cabelo. Diálogo de pires. Pensei em ir pro final do S que ficava cada vez maior. Não fui! Sabia que aquelas meninas tinham algo a me ensinar.

Atrás de mim uma mãe com seu filho, ela com a mão no pescoço dele, leoa. Olhos de águia vigiam tudo ao redor do seu pimpolho. Ele busca em vão uma toca pra se enfiar. Expressão de briga com o relógio, na sua cabeça os ponteiros estão parados. Imagino que reza, clama a Deus ou a Nossa Senhora Protetora dos Filhos para não encontrar nenhum colega, sobretudo aqueles mais gozadores. Vez por outra a mãe arruma a gola da camisa dele, brinca de ser pente. O moleque respira fundo e alto, espreita mais uma vez na esperança de que seus amigos venham amanhã ou tenham vindo ontem.

Minha ansiedade e o calor sobem exponencialmente. Amarro e solto o cabelo várias vezes, até por fim deixar um rabo de cavalo, não, no máximo, e melhor das hipóteses, consegui um rabo de burro.

Uma moça entra no amplo salão em que as inscrições são feitas. Cabelo roxo, boina vermelha, maquiagem forte, roupa apertada e curta, bota e meia calça pretas, tatuagem de fênix na coxa. Segue confiante, nem olha de lado. Todos, até quem não está lá, a veem, câmeras oculares, com zoons e focos distintos.

Uma das garotas à minha frente comenta, enquanto aponta o dedo disfarçado na palma da outra mão:

- Olha! Tá vendo aquela ali? Acabou de entrar. Com certeza vai fazer Jornalismo. Lá só dá esse povin assim.

A amiga concorda com uma gargalhada discreta e assentir de cabeça. A recém chegada, cantarolando uma canção qualquer, não está nem aí para esse ou quaisquer outros comentários. Deve ter uns dezessete anos de idade e muito a me iluminar sobre a vida.

Não resisto - sou metido, eu sei - peço licença e entro na conversa:

- Vocês vão fazer prova pra que curso?

- Odontologia. – Responde a primeira, sua voz denotava tanto orgulho que fiquei com receio de mostrar meus dentes.

- Direito. – disse a outra. Na convicção de uma ministra do Supremo, completou – Quero ser doutora!

Eu fiz ar de riso e esperei vitorioso na certeza de que a curiosidade gritaria alto em seus ouvidos e uma delas iria me perguntar o óbvio. A demora foi de apenas alguns segundos, sarcasticamente deliciados.

- E você? Vai fazer pra quê? – Questionou a futura dentista.

                            - Jornalismo. Porque lá só dá esse povin assim!