terça-feira, 10 de novembro de 2020

Saga do acarajé

 

                     Desde pequeno eu sonhava comer acarajé. Via a iguaria baiana ser devorada com prazer pelas personagens nas telas do cinema, da TV e nas páginas de Jorge Amado. Morando em Jatobá, no Alto Sertão Paraibano, nos anos 1990 encontrar acarajé não era uma missão muito fácil. Mas isso não me incomodava, sabia que um dia meu caminho gastronômico se cruzaria com o bolinho de massa de feijão.

Acontece que numa noite de setembro de um ano aí em que minha barba era rala, meus ossos mais expostos e minha cabeça maior, após uma tradicional festa de rua, vem a indefectível fome. Nesses eventos a cidade ficava cheia de barraquinhas, tinha de tudo: tiro ao alvo, sorvete colorido que era mais bonito do que gostoso ou gelado, drinks com nomes sensualmente sugestivos e propagandas melhores ainda, batata frita, pipoca, copos de alumínio com seu ou nome ou da pessoa amada gravado... No final da farra, dominado pela larica pós-festa, eu sempre procurava os carrinhos de cachorro quente, quanto mais recheio melhor. Mas nessa madrugada, passeando entre os canteiros da praça, a procura do sanduíche, me deparo com uma barraca com uma faixa branca com letras vermelhas: ACARAJÉ.

Paralisei. Pensei. Fiquei em dúvida: saciar a vontade de comer hot dog, meu lanche favorito, ou arriscar matar minha curiosidade e me jogar na culinária da Bahia. Sempre fui indeciso! Depois de várias luas de autoquestionamento, parti para o quiosque da mulher de turbante branco.

- Um acarajé.

- Quente ou frio?

- Quente. Claro. – Pensei que ela falava da temperatura.

Antes de satisfazer o paladar, fartei os olhos. Momento histórico precisa ser valorizado a cada instante. Em câmera lenta, suspensão, as pessoas ao redor fora de foco na minha lente. Boca de jacaré, abocanho o alimento com um desejo animal. Olhos fechados para não enganar a língua. Pausa... mordida... pausa... pupilas da esquerda para direita e da direita para esquerda, uma lágrima, não sei se foi a pimenta ou o desapontamento.

Não gostei do acarajé, perdi o cachorro quente, mas realizar sonhos é sempre bom, mesmo que o acordar seja ainda mais agradável que a fantasia. Fui para casa feliz, apesar de triste. Eu, que sempre gostei da ficção, me deparei com uma realidade decepcionante. Tudo bem, tive a experiência, valeu, decidi nunca mais comer acarajé.

O tempo passou, inúmeros calendários gastos. Anos depois fui morar em Campina Grande. Numa manhã qualquer, não lembro o dia, mas vou dizer que foi quarta, gosto da quarta, estava conversando com colegas de trabalho sobre comida, Bráulio fala o quanto ama acarajé, segundo ele: a coisa mais saborosa do mundo. Não resisti, retruquei de imediato, não podia ficar calado. Contei minha experiência, falei mais com as mãos do que com a boca. Ele passou os dedos pelo queijo repetidas vezes, franziu a testa e em pequenos movimentos do dedo indicador disse:

- Você comeu o acarajé de uma baiana? Baiana mesmo. Por aí tá cheio de baiana nascida na Paraíba, em Pernambuco...

- Não sei, não perguntei.

- Você não pode falar que não gosta de acarajé até comer um feito por uma baiana legítima.

Não me convenceu, mesmo assim a pulga despertou por trás do abano protetor de meu ouvido.

Certa vez, após assistir a um show do Roupa Nova na praia de Cabo Branco, em João Pessoa, saindo da orla na tentativa de pegar um táxi, entre barracas e mesas, uma se destaca. Paro, penso, reflito, decido. Vou lá, olho pra a moça e pergunto:

- Você é baiana?

- Do Pelourinho, meu rei.

- Pois me dê um acarajé. – Peço já tomando conta de um tamborete branco de plástico.

Desta vez não houve imagem em quadro a quadro, suspense ou romantismo. Apenas comi na tentativa de aproveitar o momento e o sabor. Tive a certeza de que acertei na cozinheira. Vocês acham que gostei? Não. Detestei.

Voltei pra Campina sedento para encontrar Bráulio e contar que finalmente estive frente a frente com uma baiana verdadeira, provei seu acarajé e apenas comprovei minha primeira impressão. Na primeira oportunidade relatei minha experiência, convicto de minha verdade, meus braços gritavam. Ele balançou a cabeça, olhou pro teto, cruzou as pernas confiante ao exclamar:

- É porque você não comeu o acarajé de Lindete!

- Quem?

- É uma baiana. Nascida e criada em Salvador. Mora lá, mas vem todo São João para Paraíba, passa os trinta dias no Parque do Povo. Quem prova o acarajé dela não esquece. Passo o ano esperando junho só pra comer o melhor acarajé que existe.

Era janeiro, faltavam cinco meses para as festas juninas, eu podia esperar. Controlo minha ansiedade, a não ser quando ela me controla.

Fevereiro... março... abril... maio... junho! Parque do Povo: Maior São João do Mundo. Fui logo na abertura da festa, nem vi os fogos, rodei procurando Lindete, não a encontrei. Gente demais, deve ter sido por isso ou por causa de minha miopia. Passei a ir todas as noites, independente das atrações ou as músicas. Em vão, já estava pra desistir. Quando numa tarde, após um jogo da seleção brasileira, era copa do mundo, vencemos, olho para um vendedor de milho cozido, adoro milho, e vejo uma placa sobre um pequeno quiosque “Acarajé da Lindete”, letras vermelhas de novo. Não pensei duas vezes, na verdade nem pensei. Corri pra lá.

- Quem é Lindete?

- Sou eu. Mande as ordens!

- Quero um acarajé, o melhor que você tiver. Sua especialidade.

 Ele veio recheado, bonito, iluminado, cores em harmonia, fumaça dançando forró. Fechei os olhos, abri as narinas. Finalmente eu provaria o autêntico e legítimo acarajé. A cena cinematográfica voltou a acontecer, a trilha sonora ficou suave, numa crescente, ópera, até o êxtase: minha boca. Vocês acham que gostei? Não! Igual aos outros.

Não demorou a rever Bráulio. Vitorioso, contei a ele que havia chegado à conclusão final, provei a melhor versão do acarajé e reprovei. Encerrado, finalizado, não há mais nada a fazer! Meu amigo coçou a cabeça, olhou pro céu e sentenciou:

- Você só fala isso porque não comeu um acarajé na Bahia.

Pronto! Lascou! Vou ter que ir a Bahia para comprovar o que já sei. Mas como essa viagem não estava em meus planos, parei de pensar no assunto, até porque pra mim estava resolvido, três testes são suficientes.

Acontece que um tempo depois fui conhecer Salvador. Claro, acarajé não estava na minha programação. Sexta-feira a noite fomos ao Rio Vermelho, bares, muita gente, música, tudo muito bom. Mas lá estava ela: a barraca de acarajé! Várias. Perguntei ao garçom se o acarajé dali era bom.

- O melhor que há. E, aqui entre nós, naquela primeira barraca é feito o melhor dos melhores. – disse o jovem abrindo uma cerveja.

Me levantei, fui lá, cruzei quarenta e oito mesas, pedi desculpas três vezes por esbarrar nas pessoas e uma por pisar no pé de um cara bem maior que eu. Relutei uns minutos, tomei coragem, pedi. O acarajé veio que parecia um presente, este momento foi mais teatro que cinema. Acalmei a alma. Preferi degustar na tranquilidade de minha mesa. Fiz o caminho de volta e não me desculpei com ninguém. Sentei, preparei o cenário, incluindo o guardanapo, a caneta e o copo nos ângulos certos, deveria ter fotografado. Apoteose! Vocês acham que gostei? Não! Sendo sincero foi o pior dos quatro.

As consequências vieram algumas horas depois, além de não apreciar o sabor (de novo e de novo e de novo), tive infecção intestinal, pensei que iria morrer. Longe do lar, talvez nem fosse enterrado na minha Paraíba. Me tranquei num quarto de hotel, ar condicionado desligado, paramentado com calça jeans, meias, camisa, casaco com capuz para esquentar as orelhas, encolhido embaixo do edredom, tremendo de frio, às vezes de medo. Quase fui internado e por pouco não perdi o voo de volta pra casa. Em consequência disso tudo, continuo comendo cachorro quente.