domingo, 2 de junho de 2019

Aos outros!

- Seis meses!
Foi a frase do doutor Graciliano Alfredo, médico renomado, fama de nunca ter errado um diagnóstico. Frio, metódico, dedicado ao ponto de se preocupar muito mais com a doença do que com o paciente. Gostava de curar, mas preferia uma descoberta, dava alta com a mesma carranca de quando desacreditava um doente. “O melhor de todos!” diziam alguns parentes de quem superou males graças à sua competência. “É chato, um porre, mas não quero para amigo.” Alardeavam outros justificando a procura por uma consulta.
Augusto, o homem sentado a frente do médico, sentenciado com meia dúzia de meses antes de beijar a morte. Há mais tempo que isso perambula de clínica, em hospital; de raio x, em tomografia; de agulhas, em gotas... nas imensas filas ou nos fundos sofás de sala de espera, ouviu tantas histórias, lamúrias, choros e vitórias, que não sabia mais diferenciar as lágrimas.
O médico olhou todos os exames, uma pilha, releu suas anotações, subiu e desceu na tela do computador, óculos na testa, outros no jaleco, nenhum nos olhos, não teve dúvida, nem receio. Nunca foi homem de medir palavras, pra ele “a verdade é a verdade” mesmo que doa. Ligou a contagem regressiva, cada minuto a passar significava a aproximação do fim.
Augusto não questionou, nenhuma pergunta, observou o movimento nos dedos do doutor, nervosos, viu seu semblante mudar, decepção pela falta de pranto, drama, na visão de Graciliano.
- Tenho recomendações, exigências para você poder viver melhor. – Disse, limpando os óculos, que não usara, num lenço verde.
- Por seis meses?
- Sim.
- Não morrerei se cumprir sua lista?
- Não se trata disso, falo de saúde.
- Eu de vida. Esqueça doutor, não vou fazer regime pra minhas botas estarem mais limpas quando as bater.
- Seis meses é máximo, deixe de ser burro, se não se cuidar será menos!
- Tenho quarenta e um anos, de abril a setembro, tanto faz se em julho. Escuta, sabia que me diria isso, sempre soube, antes mesmo dos incômodos, sonhei com esse dia. Trouxe uma garrafa...
- Garrafa?
- Vinho, chileno, dos baratos é o melhor. Tinto. Tá aqui na mochila.
- Você não pode beber, muito menos aqui.
- Chame a polícia ou o enfermeiro, mas eu só trouxe duas taças. – Disse colocando os cálices sobre a mesa.
Rosca o saca-rolha, o médico não acredita no que vê. Augusto fala sobre o processo de produção do vinho, já foi sommelier, garçom, produtor de uvas... Abastece lentamente as taças, coloca a garrafa próximo à réplica de um crânio humano, ergue seu copo em movimentos cilíndricos.
-  Aos outros!
O líquido é entornado com sabor, Graciliano dá um tímido gole, perplexo.
- Já sabia – fala o paciente – Vim comemorar, não a notícia de hoje, mas as de ontem, anteontem, desde quando não tinha agenda ou relógio, ou quando fiz questão de rasgar as páginas e parar os ponteiros. O que importa não é se vou morrer, mas se eu vivi!
Augusto se levanta, taça na mão, observa os diplomas e quadros nas paredes. O médico relaxa na cadeira vermelha, coça o queixo, dá outro gole, maior. Havia um estudo enrustido, quase telepático, entre cientista e cobaia. Mais gole, copo seca. O paciente volta pra próximo à mesa, levanta a garrafa, quase seca, finaliza na taça de Graciliano.
- Tenho outro, argentino. – diz Augusto abrindo a bolsa.
                       - Talvez um ano!