sexta-feira, 29 de junho de 2018

Errante solitário


O homem saiu de casa, manhã de segunda-feira, não vai trabalhar, não naquele dia, quer apenas andar. Logo na porta de casa encontra a moradora do lado regando algumas flores, brancas, vermelhas, violetas, não importa a cor ou sua suposta beleza, todas têm espinhos. Não gosta de flores, não pode se agradar de uma coisa que serve para declarações de amor e desejos de pêsames. A mulher cantarola uma canção, pra ele não interessa qual, não via motivos pra cantar. Não a olhou, mas percebeu que sorria. Nunca a cumprimentou. Por que ela insiste em falar com todas as pessoas que passam na rua?
- Bom dia! Está fazendo uma bela manhã. – Disse ela
- É. – responde secamente.
Seguiu se afastando, por um tempo ainda ouvia o barulho da água banhando as flores. Caminhou, pensativo, cabisbaixo, as únicas coisas que enxergava eram o chão irregular, sujo e seus sapatos, que, aliás, precisavam de graxa. Pensou em parar num mercado e procurar um daqueles garotos com caixas de madeira, pedir para dar uma lustrada nos seus pés. Depois pagaria com uma nota graúda e deixaria o troco, sairia sorrindo enquanto o moleque pulava de alegria. Mas ponderou, estava precisando do dinheiro talvez até mais do que qualquer engraxate. Não poliu os sapatos, nem lavou a alma.
Um pouco mais adiante, sei lá, devia ter andando uns dois ou três quarteirões, cruzou com um amigo que não encontrava há quase um ano. Um bom amigo, se viam pouco, mas isso não importa, o vai e vem da vida faz com que as pessoas também vão e venham.
- E aí cara? Que prazer encontrar contigo. – falou o colega ao preparar um abraço.
- O prazer é meu. – respondeu, sem parar ou levantar a cabeça. Pra quê? Para ver que o amigo não entendeu nada, que ficou congelado, de braços abertos, Cristo Redentor?
Continuou sua jornada solitária. Passou por um parquinho, desses que montam nos lugares públicos, com brinquedos de madeira, escorregos, balanços, gangorras, escadinhas, grama, bolas... Dezenas de crianças brincavam, corriam, gritavam, e gritavam muito. Ali próximo várias mães, babás e alguns pais observavam os pequerruchos e suas peripécias. Uma menina de oito ou nove anos veio em carreira olhando para trás, seus cabelos cacheados soltos ao vento parecem impulsionar sua velocidade. Esbarra no homem, cai sentada no chão, assustada. Com os olhos arregalados em lágrimas e brilhando de medo a pequena diz:
- Desculpe, senhor.
Não é sentimental. A queda ou o pedido de perdão foram indiferentes. Não precisou responder. Uma jovem mulher, veio correndo, pegou a menina no colo e o fitou como se ele a tivesse derrubado, olhar de reprovação, penalização. Não se sentiu culpado, mas teve pena de si. Avançou em seu caminho, sem ao menos saber para onde ir.
Após o parquinho, havia uma praça, com flores (elas de novo) grandes árvores com casinhas de pombos, bancos de madeira onde sentam senhores com saquinhos de pipoca para alimentar as aves. No canteiro central um coreto, construído nos moldes da arquitetura do inicio do século XX. Lá se reúne um grupo de saudosistas senhores, que há décadas formou uma banda musical. Hoje em dia, todas as sextas-feiras eles estão tocando na praça. Cada um traz seu instrumento, alguns reluzindo como se novos fossem. Há um senhor que nos anos sessenta tocava trombone de vara, mas um câncer na garganta o afastou dos sopros musicais, porém, a doença não o impediu de musicar. Vem todas as semanas, não falta mesmo que chova, traz um reco-reco e fica fazendo zuada, tem até quem o aplauda. Toda sexta se encontram, mas é segunda, o coreto está vazio.
Um pequeno grupo começa a se formar sob a sombra de uma mangueira. Um palhaço grita: “Senhoras e senhores, distinta e educada platéia, meu cordial bom dia! Venham ver o maior espetáculo da terra, o incrível circo mambembe, saltimbanco, imaginativo de um homem só.” O humorista faz falsos truques de mágica, tira um coelho de pelúcia de uma cartola, acrobacias, malabarismo com três bolinhas coloridas, azul, vermelha e amarela. Faz números que ele classifica como perigosos, equilibrando-se sobre uma corda estirada no chão, finge que está a metros de altura, anuncia um domador de animais em que, pateticamente, transforma-se, ele grita num megafone: “Senhoras e senhores, com vocês o maior domador que qualquer picadeiro já viu, ele já enfrentou as mais terríveis feras: leões africanos, ursos americanos; já esteve cara-a-cara com as mais inacreditáveis criaturas: o monstro Lago Ness e o Jacaré do Açude Velho; domou as mais traiçoeiras criaturas: a naja indiana e os políticos brasileiros. Peço, então, silêncio na platéia porque apresentarei a vocês a insana criatura que será domesticada...” com um rufar de tambores tira um tigre de brinquedo de dentro de alforje. Ele arranca aplausos e alguns trocados do público. Ao ver aquela figura melancólica que vai passando indiferente ao show, o comediante brinca:
- Senhoras e senhores, aquele ali também já foi palhaço, mas deixou de pintar a cara. Vejam bem a sua tromba de defunto, seus olhos de finado! Para que vocês não morram em vida é bom usar tinta no rosto de vez em quando, usar nariz vermelho, rir da vida e dos viventes. E para que este palhaço não morra de fome é bom que aumentem o meu cachê.
Dito isso, uma chuva de palmas e moedas cai sobre o artista que curva seu corpo em sinal de reverência e agradecimento. O homem nem se quer captou que foi a deixa para o pedido de dinheiro.
Um pé, depois o outro, passo a passo, foi andando. No seu horizonte não existem palhaços, amigos, conhecidos ou estranhos, apenas seus pensamentos. O que ele pensa?
 Mais à frente, um grupo joga dominó num calçadão. O barulho das pedras sobre a mesa o incomoda. Eles riem alto, não tem como não ouvir. Tenta passar despercebido, mesmo assim, um deles o vê e, acenando, grita:

- Ei! Levanta a cabeça. Ei, tudo em ordem?
- Presta atenção no jogo, é a sua vez. – falou outro em tom de reprovação.
O homem não percebeu o chamado, ou se notou, não deu importância. Prosseguiu, sem muito objetivo. Pessoas passam, olha algumas, rostos desconhecidos ou não, não importa, são todos iguais. “Bons dias”, “ois”, “olás”, alguns esbarrões... muitas coisas. Pra ele: nada.
Depois de muito andar, parou próximo a uma feira popular. Várias bancas, todo tipo de mercadoria e de pessoas. Gente comprando, vendendo, gritando, rindo, discutindo, apenas olhando os outros ou os produtos... Genteando. Finalmente levanta a cabeça, olha ao redor, vê o movimento intenso. Senta-se no meio-fio e percebe: está só.

domingo, 10 de junho de 2018

Ruptura


- Acabou, Larissa.
Me disse Celestino, entre goles. Fiquei muda, não consegui entender aquilo. Busquei em mim um motivo para o rompimento, procurei na luz sem brilho daqueles olhos azuis uma fagulha que clareasse meus pensamentos. Tentei enxergar em sua voz alguma tonalidade de mentira. Não encontrei, falava sério. Mas, não podia ser. Como poderia terminar nossa história? Ele permaneceu ali, olhar fixo em mim, enquanto segurava seu copo de curaçau blue. Eu é que não consegui ficar inteira na sua frente.

Nos conhecemos em um parque de diversões, desses bem grandes, com muitos brinquedos e atrações. Rodas-gigantes, montanhas-russas, carrosséis, mágicos, palhaços. Eu estava com algumas colegas da faculdade, marcamos para fazer um trabalho de Direito Processual Civil, uma chatice, preferimos ir brincar. Ele sozinho, com as mãos nos bolsos, passeando entre as máquinas, encantado com o que via ao mesmo tempo distante de tudo aquilo. Vez por outra, chutava o vento. Achei engraçado. Não tive como não reparar nele. Amor à primeira vista. Sinceramente, nem acredito que exista esse tipo de coisa! Mostrei às meninas aquela interessante figura desinteressante. “É bonitinho”. Disse uma delas, já me puxando para o trem-fantasma. Claro que eu não queria ir. Fui.
Fila, todos olhando para frente, menos eu. Inutilmente tentava encontrar o jovem com camisa azul caixão-de-anjo. Que mau gosto pra se vestir!
Fantasmas, monstros, vampiros, várias imagens assustadoras, que em nada me assustavam.
Sai do brinquedo novamente procurando, naquele momento não entendi por que tanta obstinação.
- Vamos ao labirinto de espelhos! – Gritou Madalena empolgada como criança. Ali todos deveriam ser infantis. Apenas eu preocupada em permanecer adulta.
Espelhos, reflexos, várias de mim. Nosso grupo se dividiu tentando se perder. Quando finalmente me perdi, encontrei Celestino. Sem dúvida o sorriso mais cândido e puro, um pouco de céu, que já vi. Ficamos juntos no labirinto, caçando a saída, sem querer sair.
Comemos pipoca e algodão-doce. Esqueci completamente das companheiras. Gentil, me levou em casa. Esperei ser beijada, mas, não houve beijo, tímido. Achei aquela atitude, ou falta dela, fascinante.
Dois dias depois, ligou. Convite para ir ao cinema. Fiz charme, disse que estava indisposta. Celestino, compreensivo, aceitou. Tive que retornar a ligação.
Cheguei antes dele, ansiosa. Nos encontramos em frente à sala, próximo aos cartazes. Eu de vestido longo e salto quinze, ele de jeans e camiseta polo azul-marinho, estava lindo! Assistimos Trois Couleurs: Bleu. Não foi escolha minha.
Depois da sessão fomos a uma boate. Dançamos, bebemos, conversamos. Soube tudo de sua vida: onde morava, Rua das Violetas; em que trabalhava, oceanógrafo; o time que torcia, Cruzeiro; que adora o Super-Homem. Naquela mesma noite começamos nosso namoro. Amor, tesão, festas, viagens, sempre nós...
Minhas mãos, trêmulas, batiam na mesa do restaurante, remexendo explicações para um ponto final tão brusco, bruto, seco. Na tentativa de encontrar respostas me deparo com mais perguntas: Por que me convidou para esse jantar? Por que dessa forma tão cinza? Sinto algo surgir dentro de mim. Mas, não é vontade de chorar. Olho pra aquele rosto revoltada. Ele pega minha mão, me entrega um anel de safira, seus lábios docemente cínicos me dizem:
- Eu estava brincando!
Em uma mistura de raiva e alívio, meus olhos rachados o encaram enquanto me levanto e grito:
- Odeio azul!