segunda-feira, 10 de setembro de 2018

A bela

Na verdade, eu não confio em nenhum de vocês. Mesmo assim, vou falar de mim. Talvez vocês saiam por aí tecendo comentário a meu respeito. Certamente irão aumentar o que eu disse, omitir o que não os interessa. Acrescentarão algumas vírgulas, substituirão interrogações por ferozes pontos de exclamação. Se alguém gostar de mim, banhará minhas frases com açúcar, ou adoçante, as mais frescas. Mas, quem não gosta, ah, quem não gosta! Esses colocarão mais amargor nas minhas palavras do que a minha língua é capaz de sentir.
Em primeiro lugar, não sei vocês, mas, eu sou e sempre fui linda. Está certo que depois que parei de fumar perdi uma das armas do meu charme. Afinal, cigarro pode até fazer mal ao pulmão, mas, faz um bem incrível à aparência. Fumar é charmoso demais! Admitam. Sentar à mesa de um restaurante, entre taças de vinho branco, seco, por favor, porque doce ou suave só parece refrigerante. Passar a perna, exibir aquela sandália da última coleção, de preferência vermelha, que compramos pensando na inveja que vamos causar nas amigas, nada no mundo é mais invejosa do que amiga. E acender um cigarro. Olhar as pessoas enquanto sopro nicotina. Alguns fazem careta por causa da fumaça, povo mal-amado! Mas, aí, para satisfazer um bando de puritanos que na infância não deve ter aproveitado bem a fase oral - adoro Freud! – praticamente criminalizaram o fumo. Todo lugar é cheio de placa “proibido fumar”. Por isso parei. Não suporto a ideia de ter que me levantar do meu lugar para poder exercer a minha liberdade tabagista. Mas, quer saber? Hoje vou fumar. Não estou nem aí se vão chamar a polícia. Qualquer dia desses vão proibir comer chocolate em público, alegando que causa diabetes, engorda, dá espinha. Ora espinha. Se tudo que dizem que provoca espinhas realmente fizer aparecer erupções no rosto, eu fui a causa de muita marca na cara dos meus colegas de colégio. Eu adorava ser a fonte de inspiração em suas diversões solitárias. Há alguém que não goste? 
Sexta à noite, eu, antes de sair, acendia o primeiro cigarro e fumava em frente ao espelho. Instantes eternos de contemplação narcisista. Hoje, mesmo sem cigarro, caiu na farra, aproveito a vida pra caralho! Ah, desculpem, falei um palavrão, mulher não fala palavrão. Que se foda! E que se foda você, que acha que não vou falar “nome feio” porque dói nos seus ouvidos. Não sinto dor nenhuma nisso. Porra! Ninguém está preocupado com que os outros gostam ou se sentem bem.
Embora, haja uma censura pessoal de cada um, poucas pessoas admitem do que realmente gostam. Eu, além de fumar, de sair à noite, amo encher a cara. É bom encher a cara! O povo diz “Meu Deus, uma mulher bêbada!” Como se o fato de ter uma buceta me diminuísse frente às rolas que existem por aí. Faço o que gosto e o que quero. Por que não faria? Por ser mulher? Uma coisa podem ter certeza, não serei uma velha ressentida por não ter vivido. Lamentando um passado que não tive, sentada numa cadeira de balanço, com mãos trêmulas tentando ocupá-las com alguma coisa. Meus olhos cinza do tempo, escondidos por óculos fora de moda, lançando da janela olhares gélidos de cobiça enrustida sobre as molecas que vem da escola, e sobem a blusa para mostrar a barriga aos meninos e aos homens, olhos de inveja e raiva, resmungando que “no meu tempo não era assim”. Pelo contrário, serei uma senhora bela, ativa, mesmo que por isso me tachem de velha ridícula, ostentarei esse título com todo prazer e orgulho. Farei festas da velharada em meu apartamento, músicas de hoje, que serão de ontem, reminiscências que molham nossos olhos, afloram as memórias mais escondidas, já posso até imaginar alguns mentindo para tentar consolar suas vidas sem emoção, sem vida. Comigo não, vivo e pronto. Faço o que gosto, quando quero. Por exemplo, vou revelar um segredo, alguns amigos dizem que sou louca. Mas, e daí? Não vivo pra eles, nem pra vocês. Eu adoro sabão. Sabão de verdade. Não que eu seja a pessoa mais asseada do mundo. Longe disso. É que eu gosto de comer sabão. Sabonete também pode ser, mas, tem química demais, não me agrada muito. Prefiro o sabor, e cheiro, mais rústicos. Não resisto a uma barra de sabão neutro, glicerinado. Adoro. Seguro entre os dedos, apertando com força, e lambo, me delicio com aquilo. Pastilha de sanitário? Meu Deus! Me sento de frente ao espelho do banheiro, enquanto chupo uma daquelas pastilhas, as minhas preferidas são as vermelhas. No supermercado as pessoas deliram com as prateleiras de chocolate, eu prefiro as de detergente. Talvez seja por isso que sou tão gostosa. Semana passada me peguei sentada no chão da cozinha, piso de cerâmica, recostada nas portas brancas do armário projetado, uma caixa de sabão em pó e uma colher de chá, melhor que doce de leite.
Dizem que beleza não é tudo, que existem outras coisas mais importantes na vida, que é melhor ter caráter, inteligência, bondade, que o que realmente importa é a beleza interior... Conversa de gente feia. Que fica tentando convencer os outros que, mesmo não sendo bonita, pode ser feliz. Não existe felicidade na feiura. Interior só se for designe de interiores. Outra coisa, nem perco tempo em sair com gente feia, feiura pega. Meus namorados, todos lindos, até porque cheguei à conclusão de que feios podem se apaixonar pelos bonitos, porém, ninguém bonito se atrai pela feiura. Só os feios se encantam pelos sem beleza. Sou bela! Bem-sucedida, quase rica! Às vezes, como toda mulher, no meu caso, muito raramente, minha autoestima vai lá pra baixo. Nos dias que me deparo comigo feia, sofrida, simplesmente me intrigo do espelho, não olho pra ele, é como dizem: o que os olhos não veem o coração não sente. Mas, não vou me martirizar e chorar pelos cantos, vou ao salão e de lá para o shopping. Quem tem cartão de crédito só não é linda se não quiser.
Há anos tive um namorado, não era lá muito bonito, um metro e setenta, magro, mas com uma barriguinha saliente, barba rala, que ele preferia não tirar, óculos redondos, que escondiam um par de olhos de caixão, cabelos poucos e lisos, ombros retos em tábua, dentes brancos, perfeitos, sobretudo nas poucas vezes em que ria deslumbrando enquanto me contava coisas das estrelas do céu, do mar e do cinema. Mãos macias, quase femininas, que demonstravam toda sua masculinidade quando me pegava com uma força inexistente em outros momentos. Não quis que ele entrasse comigo na minha formatura, seu rosto era desproporcional à minha face angelical, meu álbum não merecia um golpe desses. Expliquei a situação, ele disse que entendia, mas, não foi ao baile. Nem apareceu mais em minha sala. Casou com Sara, tão feia quanto ele. Não recebi convite para a cerimônia, mas fui, de táxi. Fiquei na frente da capela de Nossa Senhora das Graças. Vi a noiva chegar, 32 minutos atrasada, véu e grinalda, nas mãos margaridas e violetas naturais. Ele de paletó branco, gravata combinando com o buquê. Brega! Disseram que ela casou grávida, não acho, aquela barriguinha devia ser só falta de exercício. Na saída, arroz, sorrisos, latas amarradas no para-choque do chevette. “Felizes para sempre!” Mentira, claro que é mentira! Nunca mais os vi. Ainda bem. Como eu disse, não confio em vocês, só estou contando minha história porque não tenho ninguém que me ouça.