sábado, 17 de julho de 2021

O mercador de sombrinhas

                      Tenho certeza de que se tentasse ganhar a vida no mundo empresarial iria à falência mais ligeiro que carreira de gente com dor de barriga em busca de banheiro. Não tenho tino para os negócios, não sei vender e, às vezes, nem comprar. Mesmo assim, admiro aquelas pessoas que conseguem sucesso no comércio. Conheço sujeitos capazes de vender gelo na Sibéria, areia no Saara e camisa do Palmeiras dentro da quadra da Gaviões da Fiel.

Como não sou um bom negociador, nutro a esperança de ficar rico ganhando na loteria, nem penso na Mega Sena acumulada, é dinheiro demais, não saberia o que fazer com ele. Um dia desses, lá estava eu na fila da casa lotérica aguardando minha vez para fazer uma fezinha, os mesmos números de sempre. Detesto filas (há alguém que goste?). Na minha impaciência: bato com os dedos na face, agito o calcanhar enquanto me apoio sobre o peito do pé; mexo no celular, curio a vida alheia pelas redes sociais, todo mundo feliz; mando mensagens para pessoas que nem quero conversar... vale tudo na tentativa de assassinar o tempo. Observo o movimento no calçadão. Pessoas num constante vai-e-vem. Pressas e preguiças, sonhos e medos, desejos e desprezos, uns cospem, outros sugam. Tudo se movimenta, eu, sonar, capturo cada detalhe.

Vejo um apóstolo de Cristo, vestido numa calça preta de linho, camisa branca amarrotada, sob um paletó cinza, gravata em forca, o suor escorre pelo seu rosto com a mesma velocidade que sua boca prega a conversão dos pecadores. Na mão esquerda a bíblia empunhada feito espada, erguida a acima de sua cabeça, em movimentos de vai e vem. Megafone em punho anuncia, entre chiados, o fim do mundo e a morte dos ímpios. Um palhaço sem óculos, faz propaganda de uma ótica. Cara branca, na verdade borrada, nariz vermelho, peruca lilás, camiseta da empresa e suspensórios amarelos. Moças sem sorrisos entregam panfletos de financeiras oferecendo empréstimos, não parecem se preocupar com os juros ou com a propaganda, querem apenas se livrar dos papeizinhos. Nesses momentos sou solidário, pego todos os folhetos, nunca li nenhum, olho as figurinhas quando tem. Engraxates enfileirados ao lado de um canteiro, aproveitando a sombra de uma viçosa árvore, disputam sapatos e sandálias. Um deles, com flanela no ombro, cigarro entre dedos e sangue nos olhos, garante que deu brilho nos sapatinhos da Cinderela.

Num café do outro lado, senhores alinhados brindam o passado com chopp, saudosos de quando contavam moedas para tomar uma cachaça. Em outra mesa, jovens dividem lentamente uma cerveja, enquanto, sobre livros, sonham. Invejam os idosos do lado, desejosos de ter cédulas para comprar mais uma garrafa ou duas.

Muitos ambulantes vendem de DVD’s piratas, a carregadores de celulares, barbeadores, espetinhos esfumaçados e até mágicas reais. Um deles, com várias sombrinhas penduradas no braço e uma aberta sobre a cabeça faz seu comercial:

- Olha a sombrinha! Não fique no sol, se proteja contra o câncer de pele. Pra não suar e preservar seu perfume. Olha a sombrinha!

Meus olhos, antes rebeldes, se detêm naquela figura. A fila, estática, não anda, ao contrário do negociante, que se movimenta de um lado pro outro, dança com um poste, sobe numa mureta, aborda transeuntes, grita, canta, pula... Ator no palco de um teatro lotado. Vende uma sombrinha estampada com flores a uma senhora sisuda que, com elegância floral, abre o objeto e sai desfilando.

Impaciente, verifico os ponteiros do relógio, estou atrasado! O cara no caixa lambe o dedo para contar dinheiro, depois de conferir se uma nota de cem era falsa. A pregação do apóstolo começa a me incomodar. Meus tênis apressados sem sair do lugar, não podem ser engraxados.

De repente, um vento frio, o céu fecha, nuvens carregadas aparecem do nada. O sol, holofote do vendedor, se esconde. Timidez? A voz no megafone avisa que aquilo é apenas o primeiro sinal. “Arrependam-se!”, grita ele, procurando abrigo. Cai um toró. As pessoas correm em busca de refúgio. Alguns tentam proteger os penteados, maquiagens borram faces. Uma criança, de mais ou menos 70 anos, brinca na água, feliz, tranca os olhos comendo a chuva.

Olho pro mercador de sombrinhas, penso alto: “e agora?”. O camelô, ensopado, relâmpagos em flash, trovões como bateria, sorriso solar no rosto, samba nos pés, e Gene Kelly na alma, continua seu ofício:

                          - Olha o guarda-chuva...