domingo, 29 de setembro de 2019

Data venia


Quando iniciei na advocacia sonhava com o glamour dos tribunais, os  microfones da imprensa em meu rosto à espera de uma declaração acerca de uma polêmica e que virasse manchete na primeira página. Defesas orais transmitidas em tempo real, minha eloquência vista de perto e ao longe. Quem sabe um caso ou dois (eu queria três, gosto do número) em que atuei ganhasse tal repercussão que virasse filme, dramas jurídicos sempre são sucesso. Na película, o jovem advogado defendia com maestria um injustiçado. Preso, sem perspectiva, o réu passeia entre o conformismo e a revolta, o desejo de vingança e o anseio pela liberdade, o bacharel sereno, sonhador, tenta orientar o cliente a fazer o que ele considera melhor para o desfecho do processo. Teria lágrimas entre grades, risos num parque de grama verde, uma paquera mal resolvida com a estagiária tímida, o despertar da tese libertadora de defesa num momento inusitado, talvez sentado depressivo no chão do banheiro chicoteado pelo chuveiro, ou depois de ouvir um bêbado (personagem sem nome, como na vida real) despejar sua filosofia etílica na minha cara do “doutor”. Roteiro clichê, eu sei. E daí?
Mas não aconteceu assim, o brilho foi apenas nos meus olhos, não houve filme, apenas algumas novelas, sem final, afinal eles sempre são felizes! Num dos capítulos, cômicos ou dramáticos, numa manhã de sexta-feira, estávamos, eu e meu sócio (melhor advogado que eu), em nosso escritório, uma bela e organizada sala situada no primeiro andar de um edifício sem elevador, quando uma senhora adentrou direto sem nem mesmo parar na antessala da secretária. Não tínhamos secretária mesmo. Queria nos contratar para defender seu filho, detido por não pagar pensão alimentícia. “Tadin não merece tá preso”, dizia ela enxugando as inocentes lágrimas maternais. Explicamos os procedimentos para resolver a situação. No meio da conversa o telefone tocou (coisa rara, inclusive), era mais um pedido de socorro por inadimplência alimentar. A ligação vinha de São Paulo, mas o réu estava encarcerado na delegacia de São José de Piranhas, no Sertão da Paraíba. Duas causas num dia, havíamos ganhado na loto, duas numa semana, as vezes num mês, já era motivo de comemoração: “Vamos conseguir pagar o aluguel”.
Depois dos fogos, aceitamos as questões. Começou a correria, afinal era sexta e queríamos, para mostrar serviço, libertar nossos clientes antes do sábado. Traçamos as estratégias, me empolguei como se as lentes estivessem cobrindo os episódios. Telefonemas, fax, persuasão, redação, protocolos, espera...
Sem me ater aqui a detalhes técnicos (pra que, né?) conseguimos que o juiz liberasse nossos dois constituintes. Lá estou eu, por volta das oito da noite, feliz e satisfeito, sentado no sofá da delegacia esperando o oficial de justiça trazer os alvarás de soltura. Gravata vermelha folgada no pescoço, camisa azul com as mangas dobradas até o cotovelo, pernas cruzadas, me sentia o dono do mundo, uma vitória contra o tempo. Conversava descontraidamente com o agente e o delegado, estava finalmente no mundo do direito, a fama e o reconhecimento não demorariam a vir.
O oficial de justiça, suado, chateado por trabalhar na sexta a noite, entra na delegacia, dá um “boa noite” com gosto de “vão se fuder”, trazia nas mãos as asas para meus dois constituintes. Acontece que nessa sexta o magistrado deve acordado inspirado e prendeu três cidadãos por inadimplência de pensão. Dois deles nos contrataram. Foi esse terceiro que viu seus efêmeros companheiros de cela irem embora sorrindo e me prometendo uma cerveja (opa!)
Eu estava feliz, sentia que podia fazer qualquer coisa. Parei na frente da delegacia, ri para mim mesmo. Olhei pros lados, não havia ninguém na rua, mesmo assim, todos olhavam pra mim. Folguei ainda mais a gravata, puxei a camisa de dentro da calça, estralei os dedos, subi na minha moto e fui embora: vento na cara, satisfação no ego, fantasia no futuro...
Fui para casa de uma amiga, comemoração de aniversário, namorada e amigos me esperavam. Desfilei ao entrar, deslizei para chegar em nossa mesa. Meu sorriso vitorioso estava até nas minhas orelhas. Ergui brinde, a mim, claro! Ninguém me olhava, mas, na minha cabeça, todos falavam o quanto eu fui foda, o primeiro passo para todos os holofotes advocatícios.
Algum tempo e muitas cervejas depois o irmão da anfitriã me chama dizendo que há uma mulher procurando pelo “doutor” lá fora. O álcool me empolga ainda mais, já imagino que será uma nova causa, algo fantástico, aquele momento em que a imprensa vai me procurar, se engalfinharão por uma exclusiva. Meu pensamento a mil, meu sangue a cem, o coração em samba, alma nem sei onde estava.
Fui encontrar a mulher na calçada da casa, ao chegar, ela estava num pé e noutro, pra lá e pra cá, nervosa, apertava os próprios dedos, mordia a boca, tropeçava nela mesma. Cumprimentei, ela não respondeu, foi logo dizendo, ao lançar um olhar sobre o ombro:
- Você é o doutor?
- Acho que sim. – Respondi já perdendo toda a segurança de outrora.
Ela colocou o dedo no meu nariz, inchou igual cururu no sal e gritou:
- Quero saber por que você foi na delegacia soltou dois caba que estavam lá e deixou meu macho preso.
- Calma, senhora, não tô entendendo o que tá acontecendo. – Eu disse meio atordoado pelos copos e pelo ouvido.
- Você foi na delegacia – enfatizou quase furado meu olho como o indicador, fiquei feliz por não ser o médio – e soltou dois caba que estavam presos. E deixou meu macho lá. Porque aquela rapariga da mulher dele botou o bichin na cadeia.
- E a senhora é o que dele? – perguntei sem saber se aquilo era real ou alucinação.
- Sou a mulher dele. A mulher assim, no sentido de mulher, porque a mulher no sentido de esposa é outra. E essa rapariga da mulher dele, pra deixar ele longe de mim, mandou prender.
O mundo gira, pra mim, nesse momento, roda ainda mais veloz, fico tonto. Cadê os flashs? As poses? Ela enche o peito, percebe minha fraqueza, risca o dedo no chão, na chama me aponta e brada:
- Por que você soltou os outros e deixou meu macho preso?
- Porque eles me pagaram. – Eu disse na convicção de que receberia o fiado.
- E tem que pagar!?
- Tem.
- Então tá bom. Os filhos são dele, né? Depois ele sai.
Ela saiu sem se despedir. Eu? Nunca mais advoguei!