sábado, 30 de maio de 2020

A moça do telemarketing


Tarde de sexta. Quarentena por causa da covid 19, eu na sala do meu apartamento, sentado no sofá, dono do mundo, almoçando um prato de cuscuz com ovo, galinha e graxa, assisto ao jornal na TV. As batidas no chão do meu calcanhar esquerdo demonstram a minha inquietude.  Quase me engasgo com as notícias, culpa delas, jamais do cuscuz. Me revolto, pego a arma superpoderosa: o controle remoto. Procuro músicas, passeio na internet. Escolho um samba, sou um bom sujeito.
O anjinho etílico que me guarda e frequenta meu ombro, sussurra que devo abrir uma cerveja. Levanto decidido, quase um passista na avenida do sofá à geladeira. Abro uma IPA que estava guardada para uma ocasião especial. Há de ser hoje! Coloco suavemente na tulipa. Antes do paladar, sacio a vista com a espuma subindo. Ritual, é assim que deve ser. No momento exato do primeiro gole, quase sentindo o lúpulo descer amargamente saboroso pela minha garganta sedenta, o celular toca. Prefixo de São Paulo. Penso em recusar, o demoninho morador do outro ombro me aconselha a atender.
- Oi.
- Boa tarde! Gostaria de falar com o senhor Júlio.
- Sou eu.
- Olá, seu Júlio. Eu sou a Claudinédia...
- Clau o quê?
- Claudinédia. Sou representante comercial do Banco Vênus. Tudo bem com o senhor?
- Bem, bem, bem mesmo, ninguém tá nesse momento, né?
- Verdade. Eu entendo, mas é a vontade de Deus!
- Acho que não!
- Enfim. Espero que pessoalmente o senhor esteja bem.
- Tô.
- Então. Eu gostaria de estar oferecendo uma ótima oportunidade ao senhor. Eu poderia estar falando agora? (...) Seu Júlio? (...) Seu Júlio? (...) Alô? (...)
- Desculpa, foi o cuscuz. Gosta de cuscuz, Clau? Vou chamar de Clau, é mais fácil!
- Fique à vontade...
 - Gosta de cuscuz? Com ovo e graxa é uma maravilha.
- Na verdade nunca comi.
- Tadinha. Ninguém pode ser feliz sem cuscuz.
- Seu Júlio, como eu disse tenho oferta para o senhor...
- Também tenho: quer cuscuz?
- Obrigada. Fico agradecida. Como eu estava dizendo, o Banco Vênus, devido ao seu bom relacionamento no comércio local...
- Pera. Esse bom relacionamento é meu?
- Sim senhor. Sabemos de sua ótima relação com o mercado de sua região.
- Mais ou menos. Teve uns dois ou três que me colocaram no Serasa, maldade pura. Não acha?
- Tenho certeza que o senhor cumpre seus compromissos.
- Às vezes minha mulher fica com raiva.
- Desculpa, não entendi.
- Ela fica chateada, Clau, porque não cumpro meus tratos. Quer falar com ela?
- Como assim?
- Pra você dizer a ela tudo isso que disse a mim. Por exemplo: honro meus compromissos.
- Seu Júlio, o Banco Vênus está disponibilizando um cartão de crédito para o senhor. Poderia, por gentileza, estar me confirmando seu endereço?
- Clau, tô decepcionado. Você conhece tanto de mim, e não sabe onde moro?
- Preciso do endereço para estar mandando o cartão.
- Oxente! Eu disse que queria?
- Sei que o senhor não vai recusar. É uma ótima oportunidade. Comodidade total. Hoje em dia é perigoso andar com dinheiro...
- Não se anda com o que não se tem, né?
- Como?
- Nada não. Fala aí do cartão mágico.
- Bandeira Veloz, aceito em todo Brasil. Posso estar enviando hoje ainda. Chega em até dez dias úteis.
- Sei... e a anuidade?
- Isento. O senhor só precisa ter uma parcela mínima de cem reais por mês. Por exemplo, na compra de um produto de trezentos reais, dividido em três vezes, já fica garantido o valor mínimo por três meses. Se por acaso em algum mês não atingir esse valor, será debitado um valor simbólico de cinco reais.
- Perfeito! É só gastar cem que não pago cinco!
- Isso. Posso estar finalizando o pedido para enviar?
- Vou querer não, obrigado!
- Mas seu Júlio É uma chance única. Veja bem, a gente remete o cartão, ele vai bloqueado. O senhor só desbloqueia se desejar.
- Desejo não.
- Junto com o cartão vão panfletos explicativos. São para o cliente estar lendo com calma e conhecer melhor no aconchego do seu lar.
- Tomando uma cerveja, né?
- Se o senhor gosta, pode ser. Aí na tranquilidade decide.
- Não. Mande não. Esses panfletos são feitos de papel, papel de celulose, celulose vem das árvores. Vão matar os pés de pau.
- Isso não é problema...
- Matar as árvores não é problema? Tadinhas delas. E o aquecimento global?
- Eu quis dizer que não é um problema pra gente. As árvores são importantes, mas é só um pouco de papel.
- Já perguntei se gosta de cuscuz?
- Já sim, seu Júlio. Voltando ao motivo de minha ligação...
- Quero não!
- Mas por quê?
- Pelas árvores, por mim, pelos cinco reais.
- Seu Júlio, eu estarei encerrando o contato. Obrigado pela atenção. Boa tarde!
A moça desligou sem me deixar dizer tchau. Voltei ao samba e ao meu mundo. O pequeno batedor de asas no meu ombro esquerdo me lembra de meu copo. Vou ávido, um gole grande, maior que a boca. Careta. A cerveja esquentou!

segunda-feira, 11 de maio de 2020

Ele e eu


                       No supermercado. Foi lá. Eu estava na fila da sessão de carnes, em dúvida se comprava picanha ou contrafilé. Já havia decidido levar um quilo de carne moída, suspirei imaginando o sanduíche feito com ela. Levantei a vista, na padaria estava ele, mudei o olhar, não podia ser. Voltei, era sim. Vestindo a camisa vermelha, adoro o encarnado, que comprei em três parcelas na loja de roupas falsificadas, e daí? Ele nunca soube a diferença. Short branco, meio folgado, não permitia ver suas coxas grossas, atléticas, mesmo sem nunca ter praticado esporte algum. Tênis de correr, cores estridentes, continua sem saber combinar as peças. Em cada pulso um relógio, detesta se atrasar. Conversava descontraidamente com a moça do balcão, provavelmente explicava para ele a diferença entre um croissant e um rissole. Eles riem, eu me tremo, a água salgada que cai sobre minhas compras é suor, não lágrimas, estas banham meu peito de fórmula um.
Minha vez, peço um colchão mole, podia até ser cupim. Por um instante tirei o foco, quando voltei para os pães, Anastácio não estava mais lá. Acelerei meu carrinho pelas rodovias do mercado, procurei e procurei. Numa bodega seria tão mais fácil!
Por coincidência, eu o conheci numa loja como esta há seis anos. Eu com pressa, ele cedeu sua vez no caixa. Acabei esquecendo uma barra de chocolate ao leite. No estacionamento, guardando as compras, assobiando um sucesso da época, não lembro qual era, tampouco a banda.
- Você esqueceu isso!
Eu vi o chocolate acompanhado de uma mão grossa, grande, brutalmente delicada, percorri o resto do braço, passei pela barba espeça e mal cuidada, reconheci o rosto viril, sem sorriso, o mesmo que minutos antes gentilmente me deixou passar. Alto, forte, mas não definido, cabelo castanho assanhado. Agradeci, sem graça, ele fechou o porta malas do meu carro.
- Prefiro o amargo. – disse sem me fitar.
- Como assim?
- Chocolate. Esse seu é muito doce, enjoa.
- Penso ser exatamente essa a ideia. Adoçar a vida! Leveza.
Depois desta frase ele sorriu pra mim, um sorriso repetido tantas vezes depois. Sim, foi pra mim, tenho certeza de que por mim. Passamos uma hora em cerca de cinco minutos. O único tema foi gostos e sabores. Meu Deus, tão diferentes! Trocamos telefone. Pediu para eu não ligar, ligaria. Não aguentei a ansiedade. Disquei ao chegar em casa. Convidei para sair. Um chopp amigo para falar de amargos e amarguras, doces e doçuras.
Aquela foi a primeira de muitas noites, que se tornaram tardes e manhãs. Um ano e dois meses depois estávamos morando juntos, em meu apartamento. Redecorei todo por causa dele. A cada mês mudava as fotos nas paredes, hoje entendo o quanto os retratos nunca foram devidamente reparados.
Anos rapidamente eternos. Trabalhávamos muito, por isso aproveitávamos o máximo dos momentos juntos. Dos filmes de ação, assistia por ele, às poesias que ele me ouvia ler mesmo detestando os versos. Nossos banhos juntos, mãos ensaboadas percorrendo cada dobrinha do outro. A melhor parte sempre foi dormir, depois de suar e gemer, eu em pedra e polvo sobre ele. Ele incomodado com meus tentáculos, tentando se desvencilhar sem me acordar. Nunca quis me despertar. Saíamos bastante: boates, bares, festas... Anastácio bebendo muito, ninguém conseguia derrubá-lo, bebia de cachaça a whisky, cerveja era igual água. Dificilmente ficava bêbado, no máximo zuado, como definia. Ele não gostava de carícias em público, achava desnecessário, eu entendia, não insistia. É o jeito dele. Mas às vezes, no momento certo, roubava um beijo, ele ria, vermelho, lindo! Andávamos num chão estrelado!
Tínhamos discordâncias e atritos. Qual casal não tem? Porém a primeira vez que realmente brigamos foi quando eu falei sobre filhos. Me disse ser um absurdo, sem lógica, crianças só atrapalhariam. Pra mim, tanto fazia Maria ou João, ele não queria nenhum. Dias de discussão, noites de brigas, noitadas arruinadas às três da manhã, por causa de comentário acerca de uma criança correndo em casa.
Rapidamente tudo foi desbotando. A velocidade da queda é sempre maior. Maldita gravidade! Algumas palavras ou posturas passaram a ser tacitamente censuradas em casa, até a proibição ser parida sem gritos ou sussurros.
Numa manhã, após um café mudo e sem gosto. Anastácio saiu de casa, não se despediu, não deu tchau ou até logo. Beijo de futura saudade era coisa do passado. Ele foi embora e nunca mais voltou.
No mercado foi a primeira vez que o revi depois do “adeus calado”. Desisti da busca, parei ao lado de um freezer de cerveja. Abri, peguei uma long neck, quase não consigo girar a tampa. Consegui. Em segundos diminuí progressivamente o ângulo da garrafa em minha boca.
Minha visão periférica, ou sexto sentido, me mostrou Anastácio se aproximando. Parei a cerveja e o olhei, ele empurrava seu carrinho, me encarava, sua barba era a mesma e seu cabelo ainda necessitava de pente. Não sorriu, nem eu. Comecei a me afogar. Esperança, medo, saudade, tesão, ternura, raiva, carinho... Todas as expressões do amor passaram pelas minhas artérias, sangue não havia mais lá.
Anastácio, sem parar, emparelhou, mirou em mim e disse o que eu precisava ouvir:
- Adeus, Joaquim!