Cá estou eu novamente
nesta rodoviária fedorenta, suja, feia, cara de saudade, cheiro de despedida,
barulho de lágrimas, sabor de partidas. Luzes brancas ou amarelas, sem muito
brilho ou força, denotam ainda mais clima de depressão. Não consigo sentir nela
nenhum gosto de chegada ou de retorno. Abraços? Só de adeus. Só eu não parto,
nem daqui, nem de mim. Não posso! Na verdade, não quero. Mesmo desejando que
isso acontecesse. Talvez quando eu me aposentar. Engraçado, antes eu dizia
“quando eu arrumar um emprego”. Eu não trabalho na rodoviária. Sou consultora
financeira e dou aula em duas faculdades particulares. Não tenho tempo pra
nada, a não ser vir à rodoviária, quase todos os dias. Detesto este lugar! Mas,
não consigo viver sem ele. Talvez porque os únicos amigos que tenho atualmente
também frequentem o mesmo terminal. Não são muitos. Um bêbado, que todas as
vezes mostra um sorriso ao me ver, sorrir de olhos cheios. Diz que sou bonita, entre um
gole e outro, elogia meus cabelos, cor de ouro, e meus olhos, cor de terra. Fala que casaria comigo. Claro que eu, mesmo que fosse solteira, não casaria com
ele. Meu marido não fede a cachaça, cheira a perfume francês, usa o mesmo desde
os tempos da universidade, quando nos conhecemos, forte, muito forte, insuportável,
mal consigo respirar com aquele odor permanente em sua pele, em suas roupas, no
meu nariz. Mesmo na hora do sexo, que acontece toda sexta-feira, quando ele
chega do trabalho, é “a comemoração pelo final de semana”, diz ele. Se eu
estiver menstruada, ele entende, afinal, sempre terá uma sexta-feira, mesmo que
treze. Nas sextas não venho à rodoviária. Meu marido, que só toma vinho, e aos
sábados, pontualmente da hora do almoço ao entardecer, de duas a quatro taças,
jamais ficou de porre. Eu já. Queria ficar hoje. Ele gosta que o tratem por Dr.
João Carlos de Melo Porto, coitado do porteiro do prédio, que é gago, demora
uma eternidade pra conseguir atracar no Porto. Já o bêbado, gosta que o chamem
de Galego Filó, e ele nem é loiro. Aqui eu leio os jornais, de qualquer dia,
não importa, as notícias são sempre as mesmas, mudam apenas os personagens.
Mas, não compro os diários, leio nas bancas, às vezes segurando, em outras, apenas os vendo girar naqueles suportes de plástico transparente em que são
colocados. Eu gosto, o movimento, mesmo que do vento, faz com que as manchetes
fiquem mais agitadas, quentes, reais, se o jornal for sensacionalista melhor
ainda. Leio tudo, até os classificados. Vejo do caderno de política às colunas
sociais. Só não gosto da seção policial. Mas ontem, uma notícia me chamou a
atenção. A manchete dizia “Mulher mata marido por falta de sexo”. Li três
vezes. Não sei como ela teve coragem. Sempre me sinto tão covarde. Fiquei
íntima de uma prostituta velha, velha é exagero, tem 52 anos, mas, parece ter
80. Tantas rugas, marcas, cicatrizes no corpo e no espírito. A coitada faz
tempo que não consegue um cliente, ninguém mais quer. Ela me disse que agora se
tornou mercadoria vencida. Seu último cliente foi o Galego, que quis um boquete,
faz umas duas semanas, e deixou fiado. Ela sustenta, a custa de esmolas e não
mais sexo, três filhos e deixou outros tantos espalhados pela vida e pelas
ruas. Uma noite dessas com os olhos afogados de dor e sal, me disse: “há um
pedaço de mim espalhado por cada canto desta cidade.” Ela é a única pessoa que
me entende. Acho que é única que sabe o que se passa num
coração feminino. Ela, de vestido cintilante curto, bolsa vermelha com alças de
metal dourado, sapato salto alto. Dia desses quebrou, andou mancando, dei um
dos meus, tenho poucos, toda mulher tem pouco sapato, mas dei um. Doze
centímetros, amarelo, lindo, perfeito, só usei uma vez, meu marido disse que
era coisa de puta, agora é. Seu cabelo maltratado e mal pintado reflete sua
vida que tenta maquiar. Pobre mulher. Podia ter escolhido outra vida. Podia?
Quando a vejo, não sei por que, me recordo dos meus tempos de colégio. Na
quinta série havia um menino, o mais estudioso da turma, só tirava dez, quando,
por um deslize, vinha uma prova com nove, era uma semana de choro. O futuro
gênio. Talvez um desembargador, médico renomado, cientista que possivelmente criaria
o futuro. Soube que ele engravidou uma menina aos dezessete anos, abandonou os
estudos no último ano do ensino médio. Foi trabalhar de peão numa fábrica de
cimento. Hoje ele vende coco. Trabalha na praia, sorrindo, e pelo que ouvi
falar ganha mais dinheiro que eu, apesar do meu doutorado em comércio
internacional. Tinha outro, Paulo César, magrelo, esquelético, sardento,
joelhos ossudos que dava pra perceber mesmo sob as calças, orelhas de abano que
ornamentavam a cabeça grande e os cabelos assanhados, dentes imensos, que
quando sorriam apresentavam rugas na face, não pela idade, mas pelo excesso de
pele sem preenchimento no rosto, lábios carnudos, porém sempre rachados, às
vezes sangrado, que o menino cabisbaixo, escondia com a mão esquerda, enquanto
a outra usava a caneta. Era apaixonado por mim. Eu tinha era vergonha daquele
sentimento, pena talvez. As meninas me perturbavam por causa disso, eu
preferia evitá-lo. Sentar perto dele na sala? Nem pensar. Fomos colegas três ou
quatro anos, não lembro direito. Ele chegou a me pedir em namoro através de uma
amiga, fingi que não recebi o recado. Eu era tão bonita! Sempre fui. Raquel, minha
vizinha de infância, mal-amada! Me disse que ele hoje trabalha como modelo
fotográfico, cai mais dinheiro no seu bolso do que todas as folhas no outono.
Tudo graças à sua beleza. Um deus nórdico. Com sardas e tudo! Semana passada o
Galego me deu flores. Não era um buquê, apenas um molho de rosas e violetas,
umas duas tulipas brancas, todas já murchas. Roubou dos jardins das casas
próximas à rodoviária. Ele me entregou com olhos de álcool e desejo, as mãos
trêmulas não escondiam os arranhões causados pelos espinhos. Havia sangue
também em sua perna, foi mordido por um vira-lata, fiquei feliz por não ter sido
um pit bull. O cachorro guarda um convento carmelita que fica a uns dois
quarteirões daqui. Muros altos, amarelos, escondem as freiras e um jardim lindo,
flores de todas as cores, belas. É sempre assim, as mais lindas e puras flores
estão escondidas atrás de muralhas. Só não sabem eles que todo muro é
transponível. João Carlos já me mandou flores, entregues por um motoboy, cartão
impresso: “com amor”, assinatura com a caligrafia da secretária. Guardei num
jarro de cristal que tinha ganhado no último dia das mães, queria jogá-lo
janela abaixo, quem sabe caísse na cabeça dele quando voltasse pra casa, em
uma tarde-noite de sexta-feira. Toda rodoviária tem pelo menos um bar. O bar
faz parte das viagens, sobretudo daqueles que permanecem no mesmo lugar. Sou
amiga do dono de um boteco desses. Um libanês com cara de alemão e jeito de
argentino. O botequim fica ao lado dos banheiros, um balcão grande separa o dono
dos clientes, sobre o mármore branco e frio que lembra um túmulo, uma estufa com
salgados, coxinhas e pastéis de ontem. Uma bacia verde cheia de cocadas e
moscas fica ao lado dos copos americanos, emborcados sobre uma bandeja prata.
Na parede prateleiras com todas as bebidas do mundo, tem até garrafa azul. Acho
que quem beber aquilo deve ver o céu, com todas as estrelas e vários sóis. Seu Samir,
sempre com uma rodilha no ombro, onde limpa as mãos e enxuga os copos, me diz
que sou muito burocrática até pra pedir uma coxinha. Ele nunca sorrir, mas, me
manda rir da vida. Ele diz: “Menina, a vida é um chocolate no calor, se você
não comer, ele derrete.” Meu marido jamais me deixaria frequentar um ambiente
como esse bar, contaminado de gente. Perigo. Vou sempre, ele nunca pergunta
onde estive, diz que confia em mim. Um pouco de desconfiança seria tão
excitante. Ciúme lascivo. Raiva luxuriosa. Um trincar de dentes que se
converteria em mordidas de ódio e tesão. Pedaços de pele entre unhas, minhas
unhas. Cabelos entre dedos, seus dedos. No domingo ou talvez na quarta, podia
até ser na sexta. Parede azul claro, cama com edredom lilás, travesseiros no
chão, roupas no teto, nós no inferno, queimando no fogo do pecado da carne. Um
céu! Música, sem letra, só sussurros. Jogo de vai e vem. Molejo de quadril. Uma
fome tão grande, que após saciada, só queremos dormir e sonhar. Mas, isso é sonho.
Nem nas melhores sextas! Queria conversar com uma senhora que vejo sempre que venho
ao terminal. Sentada no mesmo lugar. Canteiro central da avenida em frente à
rodoviária, fumando um cigarro de palha, olhando para o mesmo lado, paisagem
urbana mutável e sempre igual. Faça chuva ou sol, uma pequena sombra que a
acolhe. Tirei uma foto sua. Nunca mostrei o retrato, não tenho coragem. Meu
desejo é de fazer perguntas, mas tenho medo das respostas. Talvez ela seja
igual a mim. Tão cheia de pensamentos. Inundada de todas que me compõem. Ela é
muito eu para que eu me aproxime. Hoje vim de vermelho, cor do amor, da paixão, do
coração. Ele é vivo, vibrante. Me lembra vinho, sexo... sangue, violência e um
desbotado esquecimento. Ouvi sons de sirenes, ambulâncias, deve ter sido algum
acidente, mortos talvez. Alguém passa correndo gritando que o caminhão do lixo
atropelou um bêbado. O asfalto foi pintado de sangue e conhaque barato. Não me
interessa. Hoje é sexta, estou esperando pelo Galego, nesta hora ele sempre
está aqui, nunca falhou. Por que não chegou ainda? Talvez esteja catando
flores. Vou trepar com ele, dentro do banheiro masculino, naquele fedor, cheiro
de homem, se alguém ver será melhor, ficarei excitada com excitação de quem nos
flagrar. Quero saborear seu hálito de cana, sentir o seu suor. Farei sexo pela
primeira vez. Uma virgem deflorada.