Anteu
Ramos da Rocha nunca teve medo de altura. Na verdade, tinha paixão por ela.
Subir ao máximo possível, desafiar o vento, a poderosa gravidade, o limite dos
nervos. Já havia escalado montanhas para contemplar o pôr-do-sol, subido em
torres de telefonia na espera da alvorada, driblado guardas para alcançar o
topo de monumentos e conseguir capturar o melhor motivo fotográfico. Não
existiam obstáculos que o desencorajassem a estar mais perto das nuvens e de
seus devaneios. A segurança não era um critério a ser levado em consideração.
Pra quê? “Com emoção é mais gostoso”.
Mesmo
que não conseguisse amigos, com tempo, coragem ou loucura, para segui-lo no seu
ímpeto, Anteu não desistia de atingir o alto. Sua própria companhia lhe
bastava, podia quase voar. Seu problema começou exatamente neste “quase”.
Apenas escalar não o satisfazia mais, usar pernas e braços não era suficiente,
desejava bater asas, um Ícaro em orgasmo aéreo. Observar o sol que girava ao
seu redor, perdeu a graça. Olhar para baixo e ter a certeza de que todos, para
vê-lo, precisavam elevar os olhos, deixou de despertar interesse. Sentia-se
pequeno, menor que os urubus do céu, que se alimentam do podre, mas planam no
azul arrotando filé-mignon. Invejava os sinuosos morcegos, as moscas sem
preconceito, os cínicos carcarás...
Com
o passar do tempo e o aumento da infelicidade, deixou em páginas viradas suas
aventuras. Porém, morando num grande centro urbano, era impossível fugir da
altura. Apesar de que estar no alto não o alegrasse como outrora, ao olhar por uma
janela, parar numa varanda, sentia uma vontade imensa de pular, na esperança de
que asas brotassem de suas costas. Isto o encantava e amedrontava. Contudo, não
saltava.
Católico,
sempre ia à igreja, geralmente sozinho, em horários em que mais ninguém
estivesse no templo. Não gostava da missa, ritual demais, mas frequentava, por
imposição da esposa, quase todo domingo. Em suas orações clamava a Deus que o
libertasse do chão. Brigava com o Todo-poderoso de forma tão veemente e teatral
que se alguém o visse, julgaria que se tratava de um louco em desvario.
Suplicava que lhe fosse concedido o dom do voo. Jamais pedia qualquer coisa
para outras pessoas, cada um deles já tinha seus anseios: comida, dinheiro,
sexo, sangue. Ele queria somente ser alado. Trocaria as pernas por penas.
Tarde
de terça-feira, igreja de Nossa Senhora da Anunciação. Orou com fé, lubrificou
os olhos com esperança. Subiu a escadaria da torre sineira, 171 degraus. Sem
qualquer cerimônia realizou um sonho de infância: badalou o sino com força,
quase violência. O tinir se misturava à sua gargalhada circense e aos gritos
insanos de prazer. Curiosos, sem entender o que acontecia, juntaram no largo da
igreja. O padre veio em flecha da casa paroquial, cerca de cem metros ou dois
passos. Ao chegar à pequena praça encontrou pessoas com queixos ao chão e olhos
para cima. Com receio do que veria, ergueu a cabeça em câmera lenta. Em pé na
janela do campanário, com a corda do sino entre as mãos, um homem magro, barba
cheia, gravata vermelha e camisa azul com mangas dobradas na altura do
cotovelo, hipnotizado.
Um
menino gritou “pula”, a jovem ruiva rezava o terço, um senhor de bengala
procurava alguém para apostar “cem reais como não se joga”, a moradora de rua
bradou “Jesus te ama” e o artista do semáforo ficou com ciúme.
O
sacerdote entrou no templo e subiu apressado as escadas. Acrofóbico, venceu a
si mesmo e ficou ao lado do suicida.
-
O que faz aqui, meu filho?
-
Vou voar padre! Já pedi a Deus. O melhor lugar para ser atendido é aqui.
-
Entre comigo. Homens não voam!
Anteu
encarou o padre com singeleza e afeto, olhou a pequena multidão, plateia,
acenou para eles, encerrou o toque do sino, sorriu infantil e perguntou:
-
O senhor tem fé?
-
Claro, meu filho. Deus é bom!
-
Que Ele o ajude! – Disse ao empurrar o vigário.
Segundos eternos de queda. Viu o religioso se
espatifar na calçada de mosaicos que formavam imagens de santos martirizados. Anteu
sentou, contemplou sangue e lágrimas lá embaixo, entre anjos pensou: “homens
não voam!”