sexta-feira, 17 de maio de 2019

Afrodite e eu


Caneta e papel, ideias e reflexões, a ficção cria realidade, da verdade surge a mentira... caneta e papel... a brancura vai sendo coberta de azul, palavras, emoções, lágrimas, risos.
Afrodite, depois de uma noite de insônia, acorda. Afrodite, nome clichê, mas foi assim que a batizei. Levanta sonolenta, duas toneladas, quarta-feira, não podia contestar os ponteiros. Marido em sono de porco, filha como um anjo. Mais tarde, antes do café esfriar os acordaria. Penso se a mulher é loira ou morena, deve ser ruiva, não natural, vermelho nos fios, queria vinho no sangue. Toma leite olhando a água ferver, encostada no balcão do armário pensa como seria excitante a diferença se pudesse tê-la. Pão, queijo, ovos mexidos, todo dia, nem a textura dos ovos muda, a padaria também não “é muito boa!”.
Sai de casa, pés firmes, passos indecisos. Óculos escuros para amenizar a luz e alumiar o charme. Descrevo seus passos, cada letra um pé, um olhar. Para de frente a uma lanchonete, observa os clientes no café da manhã: saboreio um pão com mortadela e um suco de cajá, sem leite. Ela me olha, paro os dentes. Paquera? Não. Talvez revolta: o que você fez comigo? Sem tirar os olhos pego um guardanapo e rabisco algo, quem sabe um futuro texto. Ela sorri, quero chorar, um aceno, finjo não ser comigo, mordo o sanduba, ela some, engasgo, tapas nas costas, lápis borra a ideia.
A moça continua, parece sonhar, ou prevê, como será seu futuro. Para na faixa de pedestres, a luz acende, seus olhos castanhos ficam verdes, desliza no asfalto. Parado no sinal, buzino, grito uma cantada infame qualquer, não fui ouvido (ou ignorado mesmo), ela segue imponente. Deveria ter escrito um atropelamento, seria mais interessante. Antes da ambulância chegar, um homem qualquer, talvez eu, correria em seu socorro, acudiria ela na tentativa de sufocar sua dor, sangue na pista, uma paixão brusca que se iniciaria. No hospital, próxima a alta, um beijo suave após um sublime tocar de mãos. Mas não foi assim, deixei ela passar.
Prossegui a caminhada, parei numa banca de revistas, encantada com as capas dos gibis de super-heróis, mais mágico que as adaptações do cinema. Lembrei do idiota que buzinou me chamando de gostosa, carro vermelho, nem olhei, mas vi sua aliança ao acenar. Não interessa, prefiro saber se o Flash ganha uma corrida contra o Superman.
Afrodite olha o relógio, sete e trinta e quatro, percebe que não pode se demorar nos quadrinhos. Sacode o cabelo e sai apressada. Não me contenho, prometi a mim mesmo que não faria isso, fiz. Liguei. Ela vê meu nome na tela do celular. Não atende. Insisto. Duas, três, na quarta ela atende:
- O que você quer?
- Você! Nós.
- Não há nós!
- Não há eu sem você. Somos um!
- Não somos. Nunca fomos. Vá se foder!
Não fui! Também não escreverei todos os desaforos que ela disse antes de desligar. Moça ignorante, culpa minha, sou o criador! Neste momento quase abandono a pena, esqueço as linhas, não consegui. Preciso saber o destino de Afrodite, não parei por ciúme, possessividade. Minha mulher solta na rua, sem mim.
Um homem baixinho, barrigudo, cabelo bem cortado, barba desenhada, camisa amarela, bermuda branca, sandálias de dedo, filho da puta, finge olhar o telefone para esbarrar nela. Desculpas, cumprimentos. Não precisava ela dar o número, mesmo assim permiti. Após sorrisos se despedem, ele olha para trás, ela não. Imponente. Dou outra mordida no sanduíche de mortadela.
Minha caneta se perde, não alcança Afrodite, ela é superior à minha criatividade, tento controla-la, não posso, ninguém pode. Não a tenho, queria possui-la, num quarto ou canto de rua, câmeras de segurança em flagras de uma masturbação explícita.
Sua jornada não cessa, há uma continuação mecânica, cênica, do dia a dia. Só eu não sou constate em sua vida, mesmo sendo a única realidade que ela conhece. Passa por um grupo de idosos, assusta pombos, gargalha pra mim, choro para ela, enquanto engraço os sapatos e olho o bailar do seu quadril.
Não sei usar a tinta para matá-la. Impotente, incompetente. Ela é linda. Narciso. Mesmo assim, ao pensar sobre um crime, desfilo na rua exibindo meu cabelo vermelho ao vento.