Quando
iniciei na advocacia sonhava com o glamour dos tribunais, os microfones da imprensa em meu rosto à espera
de uma declaração acerca de uma polêmica e que virasse manchete na primeira
página. Defesas orais transmitidas em tempo real, minha eloquência vista de
perto e ao longe. Quem sabe um caso ou dois (eu queria três, gosto do número) em
que atuei ganhasse tal repercussão que virasse filme, dramas jurídicos sempre
são sucesso. Na película, o jovem advogado defendia com maestria um injustiçado.
Preso, sem perspectiva, o réu passeia entre o conformismo e a revolta, o desejo
de vingança e o anseio pela liberdade, o bacharel sereno, sonhador, tenta orientar
o cliente a fazer o que ele considera melhor para o desfecho do processo. Teria
lágrimas entre grades, risos num parque de grama verde, uma paquera mal
resolvida com a estagiária tímida, o despertar da tese libertadora de defesa
num momento inusitado, talvez sentado depressivo no chão do banheiro chicoteado
pelo chuveiro, ou depois de ouvir um bêbado (personagem sem nome, como na vida
real) despejar sua filosofia etílica na minha cara do “doutor”. Roteiro clichê,
eu sei. E daí?
Mas
não aconteceu assim, o brilho foi apenas nos meus olhos, não houve filme,
apenas algumas novelas, sem final, afinal eles sempre são felizes! Num dos
capítulos, cômicos ou dramáticos, numa manhã de sexta-feira, estávamos, eu e
meu sócio (melhor advogado que eu), em nosso escritório, uma bela e organizada
sala situada no primeiro andar de um edifício sem elevador, quando uma senhora adentrou
direto sem nem mesmo parar na antessala da secretária. Não tínhamos secretária
mesmo. Queria nos contratar para defender seu filho, detido por não pagar pensão
alimentícia. “Tadin não merece tá preso”, dizia ela enxugando as inocentes lágrimas
maternais. Explicamos os procedimentos para resolver a situação. No meio da
conversa o telefone tocou (coisa rara, inclusive), era mais um pedido de
socorro por inadimplência alimentar. A ligação vinha de São Paulo, mas o réu
estava encarcerado na delegacia de São José de Piranhas, no Sertão da Paraíba.
Duas causas num dia, havíamos ganhado na loto, duas numa semana, as vezes num
mês, já era motivo de comemoração: “Vamos conseguir pagar o aluguel”.
Depois
dos fogos, aceitamos as questões. Começou a correria, afinal era sexta e queríamos,
para mostrar serviço, libertar nossos clientes antes do sábado. Traçamos as
estratégias, me empolguei como se as lentes estivessem cobrindo os episódios.
Telefonemas, fax, persuasão, redação, protocolos, espera...
Sem
me ater aqui a detalhes técnicos (pra que, né?) conseguimos que o juiz
liberasse nossos dois constituintes. Lá estou eu, por volta das oito da noite,
feliz e satisfeito, sentado no sofá da delegacia esperando o oficial de justiça
trazer os alvarás de soltura. Gravata vermelha folgada no pescoço, camisa azul
com as mangas dobradas até o cotovelo, pernas cruzadas, me sentia o dono do
mundo, uma vitória contra o tempo. Conversava descontraidamente com o agente e
o delegado, estava finalmente no mundo do direito, a fama e o reconhecimento
não demorariam a vir.
O
oficial de justiça, suado, chateado por trabalhar na sexta a noite, entra na
delegacia, dá um “boa noite” com gosto de “vão se fuder”, trazia nas mãos as
asas para meus dois constituintes. Acontece que nessa sexta o magistrado deve
acordado inspirado e prendeu três cidadãos por inadimplência de pensão. Dois
deles nos contrataram. Foi esse terceiro que viu seus efêmeros companheiros de
cela irem embora sorrindo e me prometendo uma cerveja (opa!)
Eu
estava feliz, sentia que podia fazer qualquer coisa. Parei na frente da
delegacia, ri para mim mesmo. Olhei pros lados, não havia ninguém na rua, mesmo
assim, todos olhavam pra mim. Folguei ainda mais a gravata, puxei a camisa de
dentro da calça, estralei os dedos, subi na minha moto e fui embora: vento na
cara, satisfação no ego, fantasia no futuro...
Fui
para casa de uma amiga, comemoração de aniversário, namorada e amigos me
esperavam. Desfilei ao entrar, deslizei para chegar em nossa mesa. Meu sorriso
vitorioso estava até nas minhas orelhas. Ergui brinde, a mim, claro! Ninguém me
olhava, mas, na minha cabeça, todos falavam o quanto eu fui foda, o primeiro
passo para todos os holofotes advocatícios.
Algum
tempo e muitas cervejas depois o irmão da anfitriã me chama dizendo que há uma
mulher procurando pelo “doutor” lá fora. O álcool me empolga ainda mais, já
imagino que será uma nova causa, algo fantástico, aquele momento em que a
imprensa vai me procurar, se engalfinharão por uma exclusiva. Meu pensamento a
mil, meu sangue a cem, o coração em samba, alma nem sei onde estava.
Fui
encontrar a mulher na calçada da casa, ao chegar, ela estava num pé e noutro,
pra lá e pra cá, nervosa, apertava os próprios dedos, mordia a boca, tropeçava
nela mesma. Cumprimentei, ela não respondeu, foi logo dizendo, ao lançar um
olhar sobre o ombro:
-
Você é o doutor?
-
Acho que sim. – Respondi já perdendo toda a segurança de outrora.
Ela
colocou o dedo no meu nariz, inchou igual cururu no sal e gritou:
-
Quero saber por que você foi na delegacia soltou dois caba que estavam lá e
deixou meu macho preso.
-
Calma, senhora, não tô entendendo o que tá acontecendo. – Eu disse meio
atordoado pelos copos e pelo ouvido.
-
Você foi na delegacia – enfatizou quase furado meu olho como o indicador,
fiquei feliz por não ser o médio – e soltou dois caba que estavam presos. E
deixou meu macho lá. Porque aquela rapariga da mulher dele botou o bichin na
cadeia.
-
E a senhora é o que dele? – perguntei sem saber se aquilo era real ou alucinação.
-
Sou a mulher dele. A mulher assim, no sentido de mulher, porque a mulher no
sentido de esposa é outra. E essa rapariga da mulher dele, pra deixar ele longe
de mim, mandou prender.
O
mundo gira, pra mim, nesse momento, roda ainda mais veloz, fico tonto. Cadê os
flashs? As poses? Ela enche o peito, percebe minha fraqueza, risca o dedo no
chão, na chama me aponta e brada:
-
Por que você soltou os outros e deixou meu macho preso?
-
Porque eles me pagaram. – Eu disse na convicção de que receberia o fiado.
-
E tem que pagar!?
-
Tem.
-
Então tá bom. Os filhos são dele, né? Depois ele sai.
Ela
saiu sem se despedir. Eu? Nunca mais advoguei!