domingo, 3 de novembro de 2019

Morfeu


Manhã de 10 de outubro, sábado, Ícelo desperta. Espreguiça-se confiante. Levanta, vestido apenas com uma cueca branca. Para em frente a ele na porta do guarda-roupa. Admira-se por alguns segundos, músculos definidos, passa mão pelo cabelo volumoso. Na cozinha, lê as mensagens no celular, recostado no balcão do armário enquanto a chama prepara o café. Sorri, responde alguns recados, ignora outros tantos, pode se dar ao luxo de escolher com quem conversar. Agenda encontros. O dia promete!
Banho demorado, chuveiro quente, a água saúda, abraça e se enlaça ao seu corpo. Enquanto a correnteza saboreia sua pele, ele pensa, calcula cada passo do dia, analisa, já fez as escolhas. Veste-se confortavelmente, simples, o reflexo diz que está bonito. É!
Dez horas, sai de casa, dirige ouvindo rock britânico, batuca no volante, canta sem saber inglês, óculos escuros do retrovisor central. Compra água no sinal, nem estava com sede, queria apenas ajudar os estudantes de engenharia na construção de um foguete para visitar os anéis de saturno.
Sua primeira parada é no escritório em que é sócio majoritário, sábado, mas tinha uma rápida reunião de negócios. Conversa, convence, quarenta e dois minutos depois: tudo resolvido, papéis assinados e a certeza de alguns cifrões a mais em sua conta. Já são quase dez horas
Havia combinado de almoçar com amigos, bons companheiros, alguns de infância, outros dos tempos da faculdade. Bar movimentado. Principal ponto da cidade nas tardes sabáticas. Cinco colegas riem, bebem, se divertem, as vezes mentem. Dionísio é quem mais fala, adora erguer brindes, vira copos como se estivessem cheios de água. Violoncelista, admirado e requisitado por orquestras de todas as partes do mundo, vive viajando para encantar plateias em concertos. Hermes, atleta, não bebe, precisa cuidar da saúde, comenta sobre seus títulos, aliás, muitos. Vitórias suadas, fruto de empenho e disciplina. Páris, o mais jovem do grupo, bebe pouco, fala apenas o suficiente, geralmente observa o que há a sua volta, paquera com as mulheres das mesas próximas, mesmo as acompanhadas. Elogia os feitos dos amigos e quando comenta de si, sempre tem uma nova história de conquista, não dá muitos detalhes, mas seus olhos queimam de paixão por todas que passaram por sua vida. Prometeu, herdeiro de um império da indústria, criou e mantém uma fundação assistencial e de pesquisa, gasta fortunas ajudando causas humanitárias, forte candidato ao Nobel da Paz. Ícelo gargalha, brinca, aconselha, aprende...
O garçom entrega um pequeno papel, escrito em tinta rosa um número de telefone. O mensageiro aponta para a remetente: uma morena alta, sentada sozinha ao fundo, sandália amarela, vestido curto preto, batom lilás, cabelo liso, solto com cachos em rabo de cavalo. Acende um cigarro e sopra um beijo em bolha de fumaça. Ele salva o número, pensando na lista de prioridades. Amanhã mandará uma mensagem de bom dia, quem sabe faça um convite. Amanhã, hoje já tem compromisso.
Os amigos passam o resto da tarde juntos. Dionísio fica bêbado, nenhuma novidade. Fala alto, chama a atenção, conta piadas, se mete nas conversas das mesas vizinhas, ninguém se incomoda. Continua com brindes, desta vez em pé, olhando para todos no boteco:
- Proponho uma homenagem às intrigas, para valorizar as amizades; aos desamores, para se agarrar aos amores; à sobriedade, para lembrar da necessidade da embriaguez; ao perdão, para que nunca deixemos de pecar; homenageio cada pessoa desconhecida aqui presente, porque não sentirei falta de vocês, nem vocês de mim, mas este momento ficará gravado nas memórias; ergo meu copo em homenagem à homenagem: saúde!
Alguns riem, outros fingem (apenas fingem) ignorar, copos e taças são levantados, mãos se juntam em aplausos, muitos respondem ao brinde:
- Saúde!
- Tim tim!
- Irruuuuuuu!
- Viraaaaa!
Hermes, empolgado com o discurso, vira uma dose de cana, colocada há cinquenta e sete minutos por Ícelo. Páris brinda com um casal sentado ao lado, troca sorrisos com a mulher enquanto o marido dela, sonolento, tenta se enturmar com os cinco amigos. Mais tarde Páris, solícito, daria uma carona ao casal. O homem cairia bêbado na cama, a esposa subiria ébria no novo colega. Prometeu se diverte enquanto observa tudo ao seu redor, aconselha Páris, abraça Dionísio, convida Hermes a se engajar nas suas causas, faz confidências a Ícelo.
A turma se despede junto com o sol. Flashes, braços, dentes, mãos. Ícelo volta para casa, precisa se preparar para a noite. O repertório é o mesmo, o volume não. Divaga. O carro é um avião cortando o céu vermelho, lentidão-veloz. Casa, água, toalha branca, macarrão, borrifadas, roupa azul, relógio adiantado, quase dez horas.
Marcou de se encontrar com Hebe numa boate. Ela chega dez minutos antes dele, pede um drink verde para abrandar a espera. Balança os ombros no ritmo da música. Ícelo chega iluminado, Hebe cruza sua retina, deslumbrante. Se conheceram num shopping, estavam na mesma festa de aniversário de criança, sobrinha de Hebe, filha de um amigo de Ícelo. Conversaram na fila da pipoca. Festa chata, palhaço sem graça, nem beijinho tinha. Fugiram para um barzinho na praça de alimentação.
Na boate dançam, chamam a atenção, embalos de sábado à noite, entre uma música e outra fazem novas amizades. Ela vai passeando pelas cores dos drinks, ele flutua, paira e observa a todos de cima. Aterrissa nos lábios molhados e vermelhos de Hebe, sozinhos no salão, o brilho frenético das luzes vai se metamorfoseando em suavidade, velas acesas, o pianista toca uma canção, enquanto o garçom traz duas taças e champanhe.
Saem da boate, não cabem mais lá. O destino é o apartamento dele. Vinho no gelo, música no ar, terra longe dos pés, fogo nos lençóis. Quimera, a gatinha, observa de cima da estante, ao lado de um exemplar de Odisseia, todos os movimentos dos humanos, lambe as patas, ronrona, sente ciúme. O casal se devora, suor nos rostos, sangue nas unhas, trombetas e arpas em coro, lento, aceleração, até a total calmaria da respiração.
Na cama. Cobertas bagunçadas, cobrem um homem desnudo. Segundo sábado do mês de outubro, Ícelo quebra o despertador que insiste em tentar acordá-lo.