Manhã
de 10 de outubro, sábado, Ícelo desperta. Espreguiça-se confiante. Levanta,
vestido apenas com uma cueca branca. Para em frente a ele na porta do guarda-roupa.
Admira-se por alguns segundos, músculos definidos, passa mão pelo cabelo
volumoso. Na cozinha, lê as mensagens no celular, recostado no balcão do
armário enquanto a chama prepara o café. Sorri, responde alguns recados, ignora
outros tantos, pode se dar ao luxo de escolher com quem conversar. Agenda
encontros. O dia promete!
Banho
demorado, chuveiro quente, a água saúda, abraça e se enlaça ao seu corpo.
Enquanto a correnteza saboreia sua pele, ele pensa, calcula cada passo do dia,
analisa, já fez as escolhas. Veste-se confortavelmente, simples, o reflexo diz
que está bonito. É!
Dez
horas, sai de casa, dirige ouvindo rock britânico, batuca no volante, canta sem
saber inglês, óculos escuros do retrovisor central. Compra água no sinal, nem
estava com sede, queria apenas ajudar os estudantes de engenharia na construção
de um foguete para visitar os anéis de saturno.
Sua
primeira parada é no escritório em que é sócio majoritário, sábado, mas tinha
uma rápida reunião de negócios. Conversa, convence, quarenta e dois minutos
depois: tudo resolvido, papéis assinados e a certeza de alguns cifrões a mais
em sua conta. Já são quase dez horas
Havia
combinado de almoçar com amigos, bons companheiros, alguns de infância, outros
dos tempos da faculdade. Bar movimentado. Principal ponto da cidade nas tardes sabáticas.
Cinco colegas riem, bebem, se divertem, as vezes mentem. Dionísio é quem mais
fala, adora erguer brindes, vira copos como se estivessem cheios de água.
Violoncelista, admirado e requisitado por orquestras de todas as partes do
mundo, vive viajando para encantar plateias em concertos. Hermes, atleta, não
bebe, precisa cuidar da saúde, comenta sobre seus títulos, aliás, muitos.
Vitórias suadas, fruto de empenho e disciplina. Páris, o mais jovem do grupo,
bebe pouco, fala apenas o suficiente, geralmente observa o que há a sua volta,
paquera com as mulheres das mesas próximas, mesmo as acompanhadas. Elogia os
feitos dos amigos e quando comenta de si, sempre tem uma nova história de
conquista, não dá muitos detalhes, mas seus olhos queimam de paixão por todas
que passaram por sua vida. Prometeu, herdeiro de um império da indústria, criou
e mantém uma fundação assistencial e de pesquisa, gasta fortunas ajudando
causas humanitárias, forte candidato ao Nobel da Paz. Ícelo gargalha, brinca,
aconselha, aprende...
O
garçom entrega um pequeno papel, escrito em tinta rosa um número de telefone. O
mensageiro aponta para a remetente: uma morena alta, sentada sozinha ao fundo,
sandália amarela, vestido curto preto, batom lilás, cabelo liso, solto com
cachos em rabo de cavalo. Acende um cigarro e sopra um beijo em bolha de
fumaça. Ele salva o número, pensando na lista de prioridades. Amanhã mandará
uma mensagem de bom dia, quem sabe faça um convite. Amanhã, hoje já tem
compromisso.
Os
amigos passam o resto da tarde juntos. Dionísio fica bêbado, nenhuma novidade.
Fala alto, chama a atenção, conta piadas, se mete nas conversas das mesas
vizinhas, ninguém se incomoda. Continua com brindes, desta vez em pé, olhando
para todos no boteco:
-
Proponho uma homenagem às intrigas, para valorizar as amizades; aos desamores,
para se agarrar aos amores; à sobriedade, para lembrar da necessidade da
embriaguez; ao perdão, para que nunca deixemos de pecar; homenageio cada pessoa
desconhecida aqui presente, porque não sentirei falta de vocês, nem vocês de
mim, mas este momento ficará gravado nas memórias; ergo meu copo em homenagem à
homenagem: saúde!
Alguns
riem, outros fingem (apenas fingem) ignorar, copos e taças são levantados, mãos
se juntam em aplausos, muitos respondem ao brinde:
-
Saúde!
-
Tim tim!
-
Irruuuuuuu!
-
Viraaaaa!
Hermes,
empolgado com o discurso, vira uma dose de cana, colocada há cinquenta e sete
minutos por Ícelo. Páris brinda com um casal sentado ao lado, troca sorrisos
com a mulher enquanto o marido dela, sonolento, tenta se enturmar com os cinco
amigos. Mais tarde Páris, solícito, daria uma carona ao casal. O homem cairia
bêbado na cama, a esposa subiria ébria no novo colega. Prometeu se diverte
enquanto observa tudo ao seu redor, aconselha Páris, abraça Dionísio, convida
Hermes a se engajar nas suas causas, faz confidências a Ícelo.
A
turma se despede junto com o sol. Flashes, braços, dentes, mãos. Ícelo volta
para casa, precisa se preparar para a noite. O repertório é o mesmo, o volume
não. Divaga. O carro é um avião cortando o céu vermelho, lentidão-veloz. Casa,
água, toalha branca, macarrão, borrifadas, roupa azul, relógio adiantado, quase
dez horas.
Marcou
de se encontrar com Hebe numa boate. Ela chega dez minutos antes dele, pede um
drink verde para abrandar a espera. Balança os ombros no ritmo da música. Ícelo
chega iluminado, Hebe cruza sua retina, deslumbrante. Se conheceram num
shopping, estavam na mesma festa de aniversário de criança, sobrinha de Hebe, filha
de um amigo de Ícelo. Conversaram na fila da pipoca. Festa chata, palhaço sem
graça, nem beijinho tinha. Fugiram para um barzinho na praça de alimentação.
Na
boate dançam, chamam a atenção, embalos de sábado à noite, entre uma música e
outra fazem novas amizades. Ela vai passeando pelas cores dos drinks, ele
flutua, paira e observa a todos de cima. Aterrissa nos lábios molhados e
vermelhos de Hebe, sozinhos no salão, o brilho frenético das luzes vai se
metamorfoseando em suavidade, velas acesas, o pianista toca uma canção,
enquanto o garçom traz duas taças e champanhe.
Saem
da boate, não cabem mais lá. O destino é o apartamento dele. Vinho no gelo,
música no ar, terra longe dos pés, fogo nos lençóis. Quimera, a gatinha,
observa de cima da estante, ao lado de um exemplar de Odisseia, todos os
movimentos dos humanos, lambe as patas, ronrona, sente ciúme. O casal se
devora, suor nos rostos, sangue nas unhas, trombetas e arpas em coro, lento,
aceleração, até a total calmaria da respiração.
Na
cama. Cobertas bagunçadas, cobrem um homem desnudo. Segundo sábado do mês de
outubro, Ícelo quebra o despertador que insiste em tentar acordá-lo.