Sozinho
em casa. Apartamento no décimo segundo andar de um condomínio classe média. Oito
horas da noite, o frio adentra pela janela escancarada, a cortina azul claro
baila com a brisa, paredes brancas, algumas fotos e várias pinturas penduradas
por todos os lados. Quadros abstratos,
desenhos que, para olhos desatentos, parecem não ter sentido; duas ou três
naturezas mortas, misturam cores reais e imaginárias; retratos pintados a óleo, pessoas que posaram ou foram criadas pela mente divagante do artista.
Todas as obras tem a mesma assinatura, a do homem sentado num banquinho de madeira
no meio da sala, de frente ao cavalete que acolhe uma tela branca retangular,
pincel na mão esquerda, tubos coloridos colocados aleatoriamente sobre uma
mesinha vermelha de plástico, um copo de whisky na mão direita, nenhuma ideia
na cabeça.
Vicente,
de camisa branca de mangas, arregaçadas até a altura do cotovelo, cueca verde, meias
pretas e sapatos precisando de graxa, está há tempos no mesmo lugar, apenas
seus olhos passeiam pelo ambiente. Olha o lustre de cristais falsos comprado
numa promoção de sexta-feira, a mesa redonda marrom com quatro cadeiras acolchoadas
na mesma cor, observa a TV desligada, nunca liga, nem antena tem, o controle
remoto não sabe onde guardou. Uma radiola toca um disco dos Beatles. A garrafa,
já quase vazia, senta-se ao seu lado. A mão esquerda ansiosa, nervosa, passeia,
brinca de maestro. O artista queria pintar algo inédito, novidade pelo menos
pra ele, coisa que nunca tivesse visto, nada predefinido.
Um
gole no cowboy, batidos de pés no chão, movimentos negativos com a cabeça,
cobre o lábio superior com o inferior, desilusão, faz redemoinho com o pincel
no copo e salpica whisky na tela. Sorri timidamente, outro gole, passa a língua
pelos dentes, enquanto cerra o punho canhoto, gargalha, pensa em esmurrar o
quadro que ainda nem existe. Pensamento interrompido pela agulha da vitrola: é
fim do lado B do vinil.
Levanta-se,
escolhe outro LP, fica em dúvida entre Jackson do Pandeiro e Carlos Gardel,
resolve tocar Raul. Fecha os olhos para ouvir melhor o chiado antes da primeira
canção. Dança como se ninguém estivesse vendo (mas eu vejo), canta usando um
pincel como microfone. Sobe no sofá, aquele que sua ex-noiva sentia ciúme até
das bundas que sentavam nele. Sapateia. Delira concentrado na música, quase
chora lembrando da pintura.
O
pintor é um homem de quarenta e cinco anos ou talvez trinta e oito, dependendo
do estado de espírito, dia desses teve vinte e sete. Fez faculdade de arquitetura
porque acreditava que o curso ajudaria no seu talento nato para o desenho. Vive
de vender seus quadros (maravilha!) e fazer projetos de móveis projetados (chatice!).
Tadeu, seu amigo de infância, hoje engenheiro civil, dono de construtora, quando
o encontra pra tomar um chopp, fala de uma nova obra: edifícios, viadutos,
mansões... sempre pede para Vicente fazer o projeto, diz que colocará “os
traços únicos do amigo à vista do mundo”. Os desenhos, assim como as promessas,
são feitos por amizade, não por vontade. Nenhum deles virou concreto, isso não
incomoda qualquer um dos dois, cada qual cumpre seu papel na mentira.
Vicente
vai até a varanda, desistiu de conseguir naquela noite a ideia que o inspiraria
a pintar algo que jamais viu, tem consciência de que a arte nem sempre pode ser
forçada. Olha pra baixo, na avenida as luzes passam e param. Tira do bolso da
blusa uma moeda que recebeu de troco ao comprar uma água mineral no sinal. Arremessa
lá de cima, se questiona se ela afundará a cabeça de um transeunte, quebrará o para-brisa
de um carro e o mais importante: será cara ou coroa?
Volta
para a sala, o LP engancha, deixa ele gaguejar. Pega o copo, agora vazio, pensa
em quebra-lo na parede, mas seria muito clichê, prefere leva-lo à pia e lavá-lo
com detergente sabor limão. A espuma na esponja lembra um quadro seu, feito há sete
anos, dois meses e treze dias, deu de presente à sua então namorada, ela acabou
o romance no dia seguinte. Depois soube do caso dela com um pintor de paredes,
o quadro fora vendido para comprar as alianças do casal.
Sem copo agarra-se à garrafa, vai até o banheiro,
bebe o resto do destilado de frente ao espelho, encara-se com todos os olhos. No
fim do líquido, bêbado, sem tela ou pincel, encontra seu quadro.