Sou
de câncer. Nasci no final de junho, entre o São João e São Pedro. Adoro as
festas juninas, fogos, comidas típicas, bombinhas, pular fogueira, receber
afilhados e me tornar madrinha dos amigos em volta das chamas festivas. “São
João disse. São Pedro confirmou. Que eu vou ser sua madrinha. E eu seu
afilhado. Que São João mandou.” Sou canceriana e gosto disso. Mas a data de
nascimento não diz tudo sozinha. Sou câncer com ascendente em peixes, nem
preciso falar que sou manteiga derretida. A própria encarnação do drama: em
carne, osso, nervos, no rubro apressado nas veias, no silêncio dos gritos e barulho
das lágrimas. Todo dramático é tempestade, só acalma com a chegada de arco-íris.
Água com ascendente em água, nem quero saber minha lua, vai que é escorpião.
Não que eu acredite em signos. Mas e se for verdade?
Meus
amigos, aqueles que nem o são, dizem que sou inteligente. Acho que sou caótica,
isto não tem nada a ver com inteligência. Não interessa! Quando eu era pequena,
adorava tomar banho de chuva. Correr solta enquanto as gotas d’água caídas do
céu me golpeavam. Entre a calçada e a rua formavam-se rios, correntezas fortes,
nenhum ser humano normal poderia resistir àquelas corredeiras. Eu não tinha medo,
enfrentava a mais brava das torrentes. Sandálias como barcos. Quantas vezes
cheguei em casa com um pé descalço, dias e dias sem ter com que acomodar os pés.
Valia a pena! Embaixo da chuva eu podia ser eu mesma, não havia ninguém a me
observar, quem estava lá, estava preocupada apenas em me lavar com a água do celeste.
Eu me lavava. Hoje eu queria fugir pra tomar banho de chuva. Todo mundo gosta
de se banhar na cachoeira do céu, mas quase ninguém tem coragem de se molhar, deixar
a água lavar e levar toda a maquiagem. Eu queria fugir pra tomar banho de chuva!
Meu
sonho era ser atriz pornô. A primeira vez que vi um filme de sexo eu já tinha
vinte e um anos, e tive que assistir escondida. Minha mãe, tia, avó, não podiam
saber. Senão diriam que estava perdida, depravada, com os pés no inferno. O corpo
todo. Vi. Uma amiga levou uma fita, fita mesmo, lá pra casa, o nome era pura
poesia lasciva “As proezas de vinte centímetros no interior da caverna
molhada.” A cada cena, mais meus olhos se arregalavam e minha imaginação se
abria. Tinha de tudo, tudo que nunca fiz e sempre quis fazer. Eu nem era mais
virgem, claro que não, mesmo assim me achei uma inocente vendo aquilo. Minha
vida mudou. Todo mundo teria que ver filme pornô, deveria ser matéria obrigatória
no ensino médio. Já pensou as professoras no colégio de freiras discutindo
sobre a filosofia existente na dupla penetração? É a mulher no domínio! Ou
então um seminário acerca do prazer proporcionado por uma gozada de quatro.
Quatro não é a quantidade de pessoas, bem que podia ser. Tudo seria menos
hipócrita. De lá pra cá, realizei muitas fantasias e outras estão por realizar,
há fantasias sexuais que devem ficar no campo do desejo e não da realização.
Existem pensamentos que não tenho coragem de admitir nem pra mim mesma.
Se
a imaginação tivesse cor seria rosa. Dizem que o cor-de-rosa combina com minha
personalidade. O rosa de todas as flores, não importam se brancas ou amarelas,
todas são rosa. O rosa de tantos bebês, o rosa que povoa os contos de fadas a
encantar as meninas. Mas das flores as pétalas sempre caem, os bebês se tornam
adultos e as fantasias perdem a luta contra a realidade. E eu sempre choro das
piadas da vida! Sou câncer com ascendente em peixes...
Tenho
um verdadeiro pavor de ficar sozinha com outra pessoa, por mais amiga que seja.
Tenho medo de não ter assunto, não saber conversar, é, realmente não sei. Em
rodas com muita gente, converso, falo pelos cotovelos, sou uma matraca, mesmo,
discuto qualquer assunto. Em dupla, mal consigo abrir a boca. Pânico! Acho que
a pessoa vai perceber, pensar que sou chata por não dialogar. Até com amigos
íntimos acontece isso. É um tormento. Na minha opinião, o melhor momento para
se conversar é quando se está sozinho. Eu converso muito, travo debates
gloriosos com o espelho, a imagem me imita, não ligo. Ando gesticulando nas
praças, quando alguém me olha, baixo a cabeça. Prefiro no carro, som ligado,
vidros fumê, as pessoas do lado não têm como notar que no veículo estou eu e
meus anjos, às vezes demônios. Mas, sem dúvida, o melhor lugar para se
conversar sozinha é no chuveiro. Meu signo é de água, nada mais natural. Lá eu
crio histórias, viagens, fantasias... Nas minhas aventuras tudo sempre dá certo
e eu sou a heroína. Sei cantar, dançar, falar francês, bon soir, mon amour. Entendo até de matemática.
Não há problema irresolúvel pra mim. Já voei, fiquei invisível, tive a força da
Mulher Maravilha, a sensualidade da Mulher Gato, a coragem da Viúva Negra... Conquistei
todos os homens que desejei, beijei, abracei, fui o centro das atenções,
flashs, pessoas ao meu redor com dentes a mostra a mãos segurando o queixo, a
me ouvir, compreender, talvez até seguir...
Mas
isso tudo é na minha realidade molhada. Na vida real, por mais que tente andar
em direção às pessoas e às prosas, mais meus pés ficam parados ou se movendo
para trás. Ando, ando, ando e não chego a destino algum. Em breve não haverá
mais tempo para corrigir isso, o tempo trabalha contra nós, quando percebemos
isso já é tarde.
Era
louca para completar quinze anos. Debutei não vi diferença, a valsa foi a única
novidade. Passei a sonhar em completar dezoito. Ficar maior não me aumentou em
nada. Então, desejei fazer vinte e dois, não sei por que, gosto desse número.
Nada, vinte e três, vinte e quatro... A mesma coisa! Quando me percebi,
descobri que não queria mais idades futuras, desejava as do passado. Hoje vejo
que as voltas dos ponteiros do relógio são minhas adversárias, nossas.
Quem
mais toma vinho, suave, de procedência duvidosa, enquanto monta quebra-cabeça e
escuta músicas infantis? Eu choro com “se enamora” do Balão Mágico, molho as
peças do jogo, tento enxugar soprando e passando delicadamente na blusa.
Prefiro montar réplicas de obras de arte. Me sinto a própria artista criadora
da tela. Ontem conclui um Michelangelo, duas mil peças. Vou fazer emoldurar.
Quase todo final de semana faço isso, quebro a cabeça, no tabuleiro ou na
parede. Muito badaladas minhas tardes de sábado e domingo. Preciso mudar...
Quem sabe eu encontro um puzzle da Mona Lisa, cinco mil partes, no mínimo. Passo
a tomar vinho seco, é mais chique, e a ouvir Chico Buarque.
Sabe
uma coisa engraçada? Meus pais queriam me proteger. Todos os pais tentam
preservar suas crias das mazelas do mundo. Só que para se saber o ardor que o vinagre
causa ao ser jogado no arranhão, para que o ferimento não inflame, é preciso
que se caia. Eles queriam me resguardar das coisas que eles gostavam quando
tinham minha idade. Na cabeça deles eu não saberia me defender sozinha, mesmo que
eles tenham se defendido. Eu ria e às vezes ficava com raiva desse escudo
invulnerável colocado à minha frente. Mas, hoje, sinceramente acho que irei
proteger meus filhos das mesmas coisas e com a mesma intensidade de que fui defendida.
Irão me desobedecer, eu também não segui as orientações ao pé da risca. Ninguém
segue!
Eu
estava pensando, não sou de se jogar fora, embora tenha dias que me veja
horrível. Mas ultimamente tenho me achado bonita, pelo menos é isso que prefiro
acreditar. Nos dias que me encontro linda no espelho, passo horas me
contemplando, é muito bom ser bonita. Quando me deparo com uma mulher feia,
sofrida, precisando de uma boa dose de auto-estima, uma pitada de maquiagem e
uma overdose de charme, simplesmente me intrigo do espelho, não olho pra ele,
resolvi que quero ser bonita, e o que o que os olhos não vêem o coração não
sente. Logo, já decidi: sou linda. Não interessa o que minhas amigas ou a
previsão do meu horóscopo digam.
Que
se dane câncer, que se afoguem os peixes. A roleta do zodíaco pode girar, um
dia serei leão, no outro sagitário. Acordo virgem e adormeço gêmeos. Serei áries.
Não, áries não. Serei libra e me metamorfosearei em escorpião. Com veneno e
tudo, afinal, veneno é essencial!