Tenho
mantido uma rotina de escrever, sejam contos, crônicas, frases soltas ou apenas
bobagem literárias. Mesmo assim não possuo metodologia para colocar as palavras
no papel. Há dias em que elas fluem, saem de lugar nenhum e chegam rápido a
todo lugar onde eu esteja. O pensamento surge sem aviso, preciso correr, pegá-lo.
Ideias são temperamentais e fujonas, se não as agarrarmos na hora certa elas se
vão. Em outros momentos os vocábulos se escondem de mim, me esquecem, um abandono
das letras. Quando essa solidão se prolonga me sento ao computador numa
tentativa de paquera, minutos, às vezes horas, para iniciar um diálogo, nem
sempre frutífero.
Hoje,
depois de longo vácuo, lancei-me à escrivaninha: meia luz, música clássica, taça
de vinho, tudo para criar um clima romântico, pensei em acender velas, achei
exagero. Escrevo uma linha, detesto; esfrego os olhos, apago. O vinho me
consola, Beethoven me embriaga, o teclado me despreza. Desisto! Desligo a tela.
Sinto meus pés descalços serem acariciados. Luke, meu gato, enlaça seu corpo
entre minhas canelas. Uma bolinha de pelos amarelos e brancos, na ficha do veterinário
está escrito “sem raça definida”, tanto faz! Olhos dilatados a me fitar,
lembrei do Gato de Botas, aquele do Shrek. Até a pelugem parece.
-
Miau! – diz me pedindo comida.
-
Peça à sua mãe.
-
Miau. – sempre fala “não” quando discordo dele.
Finjo
não ouvir. Suas unhas são mais eficientes que sua fala ou seu enroscar nas
pernas.
-
Para, Luke!
-
Miau.
-
Tá bom. Eu vou.
No
caminho até o armário, esconderijo da ração, me detenho na geladeira. Abasteço
minha taça, pego a latinha de chocolate amargo, oitenta por cento, quase me
afogo na minha própria boca, molhada de tesão chocólatra. Abro a tampa, é
possível sentir minha barba já embebida. Vazia! Segunda decepção do dia. Num
gesto desesperado e sem menor lógica, viro a lata balançando para cima e pra
baixo na esperança cega de que caísse lá de dentro uma última barrinha, um
coelho da cartola. Em vão!
-
Miau.
-
Já sei. Tô indo.
Diferentemente
do chocolate, a prateleira está cheia de ração, diversos sabores: peixe, atum, carne,
peru (gato gosta de peru?)... Escolho um sachê de salmão, só porque aprecio a
cor. Coloco na tigelinha vermelha que fica ao lado da máquina de lavar roupa. O
bichano esfomeado avança, parece estudante na hora do recreio. Uma pequena
pausa, ronrona, me olha feliz.
-
Miau.
-
De nada.
Há
dois anos minha esposa teve a ideia de criar uma gata, ela foi enfática: uma
menina! No mês de maio chegou a princesa felina: pequena, fofinha, olhos
maiores do que a cara. Fizemos uma enquete em casa pra decidir o nome. Discussões,
argumentos, defesas de teses. A gatinha, sem entender nada, apenas tentava se
equilibrar sobre o edredom que esquentava o debate. Em homenagem a Star Wars, a
pequerrucha passou a se chamar Leia.
Sempre
sapeca, amolando as unhas no sofá, deixando sua marca pelo apartamento todo:
dona. Demorou a aprender usar a caixinha de areia, na verdade, acho que jamais
aprenderá. Leia foi crescendo em tamanho e travessura. Acontece que com o passar
do tempo, a mocinha foi ficando diferente e apareceram protuberâncias em sua
anatomia que não deveriam estar ali. Veio a revelação: Leia era um menino!
Convocamos
uma reunião familiar. O que fazer agora? Devolver a bichinha ou bichinho estava
fora de cogitação. Continuamos chamando Leia? Podia ser, não teria problema. Depois
das deliberações, perguntamos a opinião do bichano:
-
Miau.
Resolvido.
Para continuar na mesma saga, o caçula passaria a se chamar Luke. Demoramos um
pouco a nos acostumar com o novo nome, espero não o ter traumatizado.
Com
passar do tempo, o lado sombrio da Força, ficou forte no jovem Luke, aos poucos
ele se tornou o terror do condomínio. Chegava em casa ensanguentado, com as
garras cheias de pelos de vários tons. As queixas não demoraram a bater à porta.
No ninho do lar ele era tão quietinho, dormia, comia e comia e dormia. Inclusive
dormia e dorme se fazendo de morto, bucho pra cima, pescoço esticado, patas
abertas dobradas para dentro na altura dos cotovelos e joelhos, cabeça
recostada no primeiro livro que encontre sobre a poltrona. Mas na rua era um
tigre indiano. Várias vezes tive que ir procurá-lo, o pior dia foi quando
inventei de apartar uma briga com um gato cinza, cara chata, patas grossas, pelo
curto. Fui o mais arranhado dos três, passei a entender a expressão: “tava brigando
com um gato?”. Com medo de que algo mais grave acontecesse com ele e
preocupados com os vários ferimentos, finalmente seguimos os conselhos de
outros pais de gatos: castração. O que havia sido símbolo da nossa descoberta
de Leia ser Luke, seria agora modificado.
Cirurgia
feita. Gatinho em casa depois de um dia na clínica veterinária. Remédio na hora
marcada, cuidados, atenção, liberdade para brincar com um novelo de lã que
estava reservado para bordar a manta de uma sobrinha. Entretanto, no menor
descuido o atrevido jedi partia em suas aventuras na galáxia condominial. Não
teve jeito, tivemos que colocar telas nas janelas e na varanda do apartamento,
o universo dele fora reduzido a um planeta.
Passei
um tempo a observar Luke saciar sua fome canina, com perdão da má palavra pra
ele. Lembrei do fato de ele ter um paladar estranho pra um felino (será a
influência da Força?): come alface, rouba brócolis, adora mamão e quando chego
da feira, rasga as sacolas procurando tomate. Sem chocolate me enganei com um
cacho de uva.
Voltei
à mesa de escritor, sentei próximo a diversos autores moradores de minha
estante. Sorriu menino serelepe para eles, o seu silêncio fala tudo. Luke me
acompanha, sobe na bancada, se lambe, sua língua percorre todo o corpo, levanta
uma pata para lamber a barriga num contorcionismo de fazer inveja, imagino que
não tem ossos, é todo feito de borracha! Orelhas em radar giram captando tudo.
Deita a cabeça nas teclas, letras aleatórias são digitadas.
-
Miau.
-
É. Você tem razão. Hoje não tenho uma história pra contar!