Enfim,
em uma determinada e desbotada folha do calendário, soubemos que Suzy, uma
amiga nossa, companheira de grupo de jovens da igreja (olha que fofoca, sei, ou
sabia, rezar), moradora do sítio Bonfim, município de Carrapateira, fora
acometida de um pequeno problema de saúde, nada grave, mas que a impedia de
comparecer às reuniões semanais dos Jovens a Serviço de Cristo, pelo menos por
um sábado. Júnior, meu irmão mais velho, que tem orgasmo quando alguém, pra
agradar diz, que ele parece ser mais novo que eu, resolveu ir visitar a colega
de grupo. Acontece que JR namorava Suzy escondido, mas todo mundo sabia. Sabe
aquela história de “sei, mas não falo. Vejo, mas não vi”? Era mais ou menos
isso. Acontece que a moça morava a 24 quilômetros de distância, sem transporte
nem pra pedir emprestado, já que só sabia dirigir carrinho de rolimã (e mal),
meu companheiro de quarto resolveu pedir ajuda a Glecio, borracheiro, candidato
a padre, líder do grupo e sempre disposto ajudar. O Padeco, como sempre o
chamei, aceitou ser o piloto para conduzir o enamorado ao encontro da amada que
não sabia de nada. Ofereceu sua motoca para ser a carruagem de condução do
príncipe magrelo, nem todo príncipe é transformado em sapo, alguns são grilo mesmo,
até cantam. Tudo certo e marcado, a viagem seria no sábado pela manhã. Só que
eu, com meu faro investigativo, descobri a aventura e, claro, quis participar.
-
Vou de moto. Como você vai? Correndo atrás? – Disse Júnior com aquele desdém
comum aos irmãos mais velhos.
-
Me viro. – Respondi sem muita segurança, normal aos cancerianos.
Ivonaldo,
outro membro do grupo, o Professor Pardal da equipe, consertava tudo, inventava
e criava. Uma vez fui a casa dele e ele me mostrou uma luz de controle remoto,
nesse tempo acho que não existiam nem luz e nem controle remoto. Além disso,
ele tocava, cantava e o principal: pilotava moto. Resolvido. Propus ser o seu garupeiro
na trilha ao Bonfim. Ele demorou uns dois ou três segundos pra se animar com a
ideia. Calculou tudo: distância, combustível e arrumou a moto emprestada,
afinal nenhum de nós dois tinha veículo.
Chegou
o sábado, quarteto empolgado com a viagem. Um queria fazer surpresa a amada,
outro queria agradar ao amigo, dois queriam apenas aventura sobre duas rodas.
Partimos! Buracos, ladeiras e, acima de tudo, muita poeira. Bom demais!
Chegamos ao castelo, nosso destino. Fomos muito bem recebidos por Margarida e
Titin, como sempre foi a praxe na casa dos França. Até acho que aquele romance
escondido era mais público do que os envolvidos imaginavam. Algumas voltas no
relógio, xícaras de café e muitos balançados na cadeira de fitilhos brancos,
chegou o momento de ir embora, próximo à hora do almoço. Por educação (mentira,
era vergonha mesmo) decidimos ir antes de a mesa ser posta. Os anfitriões
insistiram. Embora a madame fome já gritasse em nossos ouvidos, recusamos o
rango e pegamos a estrada de volta. Parecia cena de cinema: Suzy sorrindo na
janela, acenando para seu pretendente, enquanto este, quase quebrando o pescoço,
desaparecia, junto com seus escudeiros, em meio à poeira. Mais romântico
impossível!
Minutos
depois, motos emparelhadas, alguém (não fui eu) disse:
-
Petrônio tá no sítio, bora passar por lá?
Petrônio
também fazia parte do grupo, era nosso maestro, toca de sino a contrabaixo
acústico, espirituoso e dono de grandes sacadas fossem na missa ou numa mesa de
bar. Estava visitando os pais que moravam no sítio Currais. Não era caminho,
mas era quase, um pequeno desvio de uns seis ou sete quilômetros, nada demais
para quem está faminto, sujo, suado e no calor do pingo do mêi-dia.
Topamos
a proposta, mas Glecio, sempre sábio e preocupado em não dar trabalho, colocou
as condições para que fôssemos:
-
A gente passa pelos Currais, mas vamos chegar exatamente na hora da refeição,
Tereza vai ficar feliz com nossa presença e vai oferecer almoço. Para não
incomodar a gente diz que já almoçamos na casa de Suzy.
Apesar
do buraco no estômago, do suco gástrico nos corroendo por dentro e nossas
lombrigas, em ato canibal, se comendo por falta de opção, concordamos com a
proposta indecente. Pegamos o desvio.
Chegamos
aos Currais. Me senti na tela de Mad Max: motoqueiros maus, cobertos de pó,
todos numa cor só, motores violentos, olhares curiosos... Do momento da parada
ao desligar das chaves deve ter durado uns três dias.
Petrônio,
embaixo de um pé de cajarana (ótimo tira-gosto), sentado num tamborete de
madeira, acompanhado de uma meiota de cana, toca violão, compondo com os
passarinhos. Congela no meio de um Lá Menor ao nos ver chegar. Levanta-se
surpreso e satisfeito. Descemos das motos. O pé de cajarana chega balança de
felicidade. O músico vai ao nosso encontro, se suja com a poeira que nos cobre.
Calçada alta, degraus e degraus e degraus e degraus. Tereza e Alvelino, pais de
Petrônio, lá em cima, sorriem esperando a gente escalar aquela montanha.
Cada
um tomou uma cana, devo ter tomado mais. Entramos, lavamos as mãos, falamos da
vida alheia, tesouras afiadas. Como era previsto, Tereza colocou a comida:
arroz de leite, galinha de capoeira, ovo estralado, feijão verde, verduras,
queijo, farinha e rapadura pra sobremesa.
-
Bora almoçar, meninos! – Convidou, enquanto espalhava sete pratos.
-
Já almoçamos, brigado! – Apressou-se Glecio, cumprindo o acordo.
Com
água na boca, vazio no estômago, língua nos beiços, já sentando nas cadeiras, dissemos
os três em coro:
-
Só ele...