Como não
sou um bom negociador, nutro a esperança de ficar rico ganhando na loteria, nem
penso na Mega Sena acumulada, é dinheiro demais, não saberia o que fazer com
ele. Um dia desses, lá estava eu na fila da casa lotérica aguardando minha vez
para fazer uma fezinha, os mesmos números de sempre. Detesto filas (há alguém
que goste?). Na minha impaciência: bato com os dedos na face, agito o calcanhar
enquanto me apoio sobre o peito do pé; mexo no celular, curio a vida alheia
pelas redes sociais, todo mundo feliz; mando mensagens para pessoas que nem
quero conversar... vale tudo na tentativa de assassinar o tempo. Observo o
movimento no calçadão. Pessoas num constante vai-e-vem. Pressas e preguiças,
sonhos e medos, desejos e desprezos, uns cospem, outros sugam. Tudo se
movimenta, eu, sonar, capturo cada detalhe.
Vejo um
apóstolo de Cristo, vestido numa calça preta de linho, camisa branca
amarrotada, sob um paletó cinza, gravata em forca, o suor escorre pelo seu
rosto com a mesma velocidade que sua boca prega a conversão dos pecadores. Na
mão esquerda a bíblia empunhada feito espada, erguida a acima de sua cabeça, em
movimentos de vai e vem. Megafone em punho anuncia, entre chiados, o fim do
mundo e a morte dos ímpios. Um palhaço sem óculos, faz propaganda de uma ótica.
Cara branca, na verdade borrada, nariz vermelho, peruca lilás, camiseta da
empresa e suspensórios amarelos. Moças sem sorrisos entregam panfletos de
financeiras oferecendo empréstimos, não parecem se preocupar com os juros ou com
a propaganda, querem apenas se livrar dos papeizinhos. Nesses momentos sou
solidário, pego todos os folhetos, nunca li nenhum, olho as figurinhas quando
tem. Engraxates enfileirados ao lado de um canteiro, aproveitando a sombra de
uma viçosa árvore, disputam sapatos e sandálias. Um deles, com flanela no
ombro, cigarro entre dedos e sangue nos olhos, garante que deu brilho nos
sapatinhos da Cinderela.
Num café
do outro lado, senhores alinhados brindam o passado com chopp, saudosos de
quando contavam moedas para tomar uma cachaça. Em outra mesa, jovens dividem
lentamente uma cerveja, enquanto, sobre livros, sonham. Invejam os idosos do
lado, desejosos de ter cédulas para comprar mais uma garrafa ou duas.
Muitos
ambulantes vendem de DVD’s piratas, a carregadores de celulares, barbeadores,
espetinhos esfumaçados e até mágicas reais. Um deles, com várias sombrinhas
penduradas no braço e uma aberta sobre a cabeça faz seu comercial:
- Olha a
sombrinha! Não fique no sol, se proteja contra o câncer de pele. Pra não suar e
preservar seu perfume. Olha a sombrinha!
Meus
olhos, antes rebeldes, se detêm naquela figura. A fila, estática, não anda, ao
contrário do negociante, que se movimenta de um lado pro outro, dança com um
poste, sobe numa mureta, aborda transeuntes, grita, canta, pula... Ator no
palco de um teatro lotado. Vende uma sombrinha estampada com flores a uma
senhora sisuda que, com elegância floral, abre o objeto e sai desfilando.
Impaciente,
verifico os ponteiros do relógio, estou atrasado! O cara no caixa lambe o dedo
para contar dinheiro, depois de conferir se uma nota de cem era falsa. A
pregação do apóstolo começa a me incomodar. Meus tênis apressados sem sair do
lugar, não podem ser engraxados.
De
repente, um vento frio, o céu fecha, nuvens carregadas aparecem do nada. O sol,
holofote do vendedor, se esconde. Timidez? A voz no megafone avisa que aquilo é
apenas o primeiro sinal. “Arrependam-se!”, grita ele, procurando abrigo. Cai um
toró. As pessoas correm em busca de refúgio. Alguns tentam proteger os penteados,
maquiagens borram faces. Uma criança, de mais ou menos 70 anos, brinca na água,
feliz, tranca os olhos comendo a chuva.
Olho pro
mercador de sombrinhas, penso alto: “e agora?”. O camelô, ensopado, relâmpagos
em flash, trovões como bateria, sorriso solar no rosto, samba nos pés, e Gene
Kelly na alma, continua seu ofício:
- Olha o guarda-chuva...