Da
mesma forma era a relação dos pequerruchos, entre carrinhos e bonecas, socos e
rasteiras, fogueiras e enchentes. Ela, de touro, gostava de ser prática, amiga
fiel, mandona, disposta a tudo pra ajudar aos amigos, inclusive saber mais dos
que eles mesmos sobre o que era melhor para cada um. O garoto, pisciano,
emotivo, sonhador, leal e necessitado de alguém pra guiar seus passos. Encaixes
perfeitos de um quebra-cabeça.
Quando
veio a adolescência, as brincadeiras no terreno baldio (hoje uma casa sombria
sem jardim ou janelas, onde nem o vento sopra) deu lugar às tarefas escolares.
Natália e Afonso continuaram do mesmo jeito, às vezes rindo nos deveres de
história, brigando nos de matemática. Tudo igualmente diferente! Até uma manhã
nublada de quarta-feira, quando os jovens retornavam do caminho da escola e,
pela primeira vez, o silencio dominou. Talvez as nuvens tenham encoberto o sol
pra esconder a timidez do astro-rei naquele momento. A estrada pra casa, que
parecia eterna de tanta agonia, acabou muito rápida. Exatamente na hora em que
Natália diria algo, Afonso, cabisbaixo, segurando a alça esquerda da mochila, ronronou:
“Até amanhã!”.
Porém,
no outro dia, Natália não apareceu. Afonso a esperou, esperou, esperou... teve
a garganta arranhada por pedaços de suas unhas e perdeu a primeira aula, Trigonometria,
uma a mais ou a menos não vai impedir sua participação certa na recuperação. Na
verdade, ele não assistiu nenhuma das explicações daquele dia, mesmo estando
presente na sala. Soube à tarde, quando chegou em casa, a amiga estava com
catapora. Imaginou ela coberta de carocinhos na pele, toda se coçando, tadinha!
Duas semanas de distância, o que, nas contas dele, dava mais ou menos cem dias.
Sozinho no seu quarto, tentando ler um almanaque do Cebolinha, Afonso descobre
o que todos os colegas do colégio já sabem há anos: é apaixonado por Natália.
Finalmente
o período de separação findou. Nat, sentada na paredinha do jardim de casa,
sorri de olhos fechados absorvendo o sol. Afonso aproxima-se numa correria
lenta, compassada, ofegante, relutantemente ansiosa. Tinha muito a falar, mas,
como sempre, não conseguiu ultrapassar a barreira do “bom dia!”.
Ela
falou sem vírgulas ou pontos durante os vinte e dois minutos de caminhada,
parecia ter chegado de uma longa viagem. E foi! Detalhes e minúcias, por vezes
constrangedoras. Ele apenas abria a boca vez ou outra, na tentativa frustrada
de cuspir o que o engasgava. Inútil. Portão da escola, escadaria, sinal de
entrada. Afonso parou, suspirou tão alto que o relógio da matriz congelou para
sempre, sua mão gelada molhou o braço de Natália, estava há dias ensaiando,
escolhendo e catando palavras:
-
Nat...
Os
olhos negros e febris de Natália cruzaram o olhar inexpressível e aquático de
Afonso, com o dedo indicador ela tapou a boca dele e sussurrou:
-
Você fala demais! – Disse dando um beijo no rapaz.
Lá
ficaram eternamente agarrados enquanto os fogos iluminavam a cidade, até que o
inspetor, sempre estraga prazeres, interrompeu com a ameaça mais clichê
possível:
-
Vão para sala ou levo pra a diretoria!
Os
enamorados saíram em disparada câmera lenta, cinema, mãos dadas. Corações
vermelhos, rosas, lilases... coloriam a paisagem preta e branca. Na porta da
sala, ele perguntou:
-
Foi seu primeiro beijo?
-
Tá doido? Já tenho dezesseis! – Disse ela ao se despedir com um selinho e entrar para
aula.
O
garoto permaneceu estático, boquiaberto, cara de bobo, encantando,
decepcionado... tinha sido a primeira vez que beijara. Jamais diria a ela!
Mais
uma mudança na vida dos jovens vizinhos: os beijos e afagos nos corredores
escolares não demoraram a se metamorfosearem em namoro. Os pais aprovaram de
imediato, Amélia já queria realizar o casamento, pensou até na igreja da
celebração, Capela de Nossa Senhora das Graças, singela como eles, um recanto
de fé e amor...
-
Menos, Amélia! Deixa as crianças! – Gritou Neide ao apagar um cigarro na
parede.
E
assim seguiram os apaixonados, entre sal e açúcar, dominó e uísque. Fizeram
natação, fotografia, teatro, artesanato (homenagem a Eduardo e Mônica). Com o
tempo a paixão só aumentou, converteu-se em amor, veio o sexo, incrível!
Comunhão sexual que alinhava todos os planetas e tirava os cometas de seu
curso.
Anos
depois, adentraram à Capela de Nossa Senhora das Graças. Afonso de terno cinza,
botão de rosa amarela na lapela, suor na testa. Natália empunhando um grande
buquê violeta, sorriso maior ainda, vestido branco, véu e grinalda. Amélia foi
contra. “Um pecado!”, comentou. Neide mandou a amiga ir se lascar. Dois sins,
um beijo infinito! Flores ao céu, champanhe entrelaçada, promessas, juras, felicidade
eternizada nos álbuns.
Porém,
o “felizes para sempre” pichado no vidro traseiro do carro do noivo não durou
muito. Diz o ditado que compartilhar um quilo de sal não é fácil. A amizade
continuava, o companheirismo também, mas faltava algo: os planetas deixaram de
se alinhar, os cometas nunca mais desviaram sua rota. Cinco anos, dois meses e
sete dias após o “eu vos declaro”, o divórcio foi inevitável e traumático.
Seguiram
seus rumos. Adamastor afogou as mágoas com um escocês. Nunes, que tinha virado
vegano, tomou duas garrafas de café, quase não volta a dormir. A vida seguiu,
sempre segue! O globo girou, girou, girou...
Numa
noite melancólica de sexta-feira, Afonso sofreu um pequeno acidente doméstico,
escorregou no banheiro, bateu as costas no chão, quase morre afogado no
chuveiro, nadou até o celular e ligou para emergência. No hospital conheceu
Maitê, enfermeira, ariana, com ascendente e lua também em áries. O romance
começou quase que na hora do analgésico. Amor dói! Da maca ao altar foi um
pulo. Felizes para sempre! (de novo).
Natália,
por sua vez, não quis casar, a experiência não a agradou. Foi viver, para além
do terreno baldio, da escola, do buquê ou de suas consequências. Namorou uns
caras, ficou com outros, paquerou tantos, realizou fantasias e criou outras.
Plena, não sentia falta de nada.
Quarta-feira,
dia 22 de setembro, início da primavera. Ipês coloridos, girassóis dançando,
arco-íris nas praças. Afonso, distraído, hipnotizado por um colibri que consegue
voar para trás e ter foco sempre na frente, deixa cair um chaveiro com uma
bonequinha abraçando livros. Uma mulher, mais atenta que ele, percebe a queda,
aproxima-se, pega o objeto e oferece ao dono. A hipnose se desfaz na troca de
olhar, aqueles olhos grandes, jabuticaba, quentes, inconfundíveis. Os dele,
mortos, também eram iguais.
-
Nat...!?
-
Você fala demais!
Sorrisos
tímidos, o rubor das faces confunde-se com o vermelho das flores nos canteiros.
Seguiram-se perguntas, interrogatório, em meio a passos lentos e sem objetivo.
Um café na livraria, conversas sobre autores que nunca leram, silêncios,
olhares, lua cheia nascendo no horizonte... há uns anos foram apaixonados.
Paixão sempre morre, mas alguns defuntos teimam em ressuscitar. Marcaram um chopp,
quase não conseguem encontrar um dia que coubesse nas agendas dos dois, a
matemática sempre atrapalhou. O esforço e a vontade ajudaram, o encontro
aconteceu. Risos, reminiscências, confissões, reclamações. A noite terminou com
vinho no apartamento de Natália. O sistema solar lentamente busca sua melhor
formação, o Halley talvez se atrase na próxima passagem pela Terra.
E
assim se seguiu por quase onze meses. Natália e Afonso vivendo um romance
proibido, intenso, louco, vulcânico. Até que ele, sempre tão calado, difícil de
tomar decisões, relutante em tudo, chegou sem ter avisado, mochila nas costas. Bateu
à porta e entrou confiante em meio a um olhar descrente dela. Sentou-se, dono do
sofá. Disse que tinha saído de casa, queria casar de novo com Natália, amor de
sua vida. Ela gargalhou, deitou no colo dele, encolheu as pernas e sentenciou: