domingo, 27 de maio de 2018

Amor


Jantar romântico, luz de velas, casal apaixonado. Comemoração de bodas, de papel ou de plástico, talvez de mulambo. Vinho português, tinto seco, preferem ao branco. Pratos granfinos, muito em valor, pouco em quantidade. Restaurante em que se faz necessária a reserva com alguns dias de antecedência. Bodas escondidas, romance secreto. Combinaram que hoje revelariam ao mundo o seu amor.
No ambiente se sentam frente a frente. Por enquanto não há beijos, carícias. Nem mesmo um sutil pegar de mãos, ainda se excedem na discrição. Apenas olhares, paqueras contidas.
Não é a primeira vez que saem a sós para jantares, almoços, bebedeiras. Mas hoje havia um diferencial, o fim da timidez, o momento da revelação.
O encontro foi idealizado por Virgínia, ela sempre toma todas as iniciativas. Foi sugestão sua o lugar, o horário, o cardápio, e que estava na hora de mostrarem a todos o seu romance. Não era justo um amor tão sublime, uma paixão tão avassaladora, serem mantidos em total sigilo, restritos ao isolamento de quatro paredes, ao aconchego de lençóis cheirosos, amarrotados.
Virgínia chega primeiro, mulher de decisão. É recebida pelo mètre, e conduzida à sua mesa. Sonha nas cenas que provavelmente ocorrerão dentre em pouco. Há quanto tempo deseja divulgar seu amor. Gritar a quem quiser ouvir, e a quem não quiser também, que não tem o que esconder. Pede o menu. Passa os olhos pelas letras, mas seu olhar é distante, olha com saudade para o futuro. Vinho.
- Uma taça?
- Duas, por favor.
- E para o jantar?
- Por enquanto só o vinho.
Não queria escolher o prato. Ela sempre escolhia tudo. Desejava se tornar mais democrática no relacionamento.
Divaga em pensamentos, agora incentivados pelo vinho. Recorda-se de quando se conheceram, em uma clínica pediátrica, cada qual com uma criança a tira-colo.
- Filho?
- Não. Sobrinho. E essa menininha é sua?
- Minha? É. Minha afilhada.
É pragmática demais pra acreditar em amor à primeira vista, ou ao primeiro diálogo. Mas sabia que algo havia acontecido, como se uma força magnética puxasse aquelas duas pessoas uma para a outra. Encontraram-se outras vezes, não por acaso, em princípio junto com amigos, familiares.
João, na época noivo de Virgínia, um bom sujeito, fiel, pelo menos até onde ela sabia. Alto, corpo não muito atlético, olhos verdes escondidos por óculos redondos, bom coração, excelente cérebro, intelectual, como diziam os companheiros. Funcionário público de um desses tribunais que existem por aí. Bom salário. Três anos de noivado, queria casar. Ela sempre hesitava, não tinha certeza se era isso que realmente desejava. Ele nunca desconfiou que a noiva sentisse atração por outra pessoa. Atração que se transformou em paixão, mútua, correspondida em proporções de contos de fadas. Não teve coragem de acabar o noivado. Mulher de decisão, cheia de indecisões. Viveu a vida dupla por seis meses. Finalmente, há três semanas, devolveu a aliança. João chorou, implorou, ficou perplexo, culpou-se, ameaçou se jogar do viaduto. Não adiantou. E ele não se jogou.
A paquera fica cada vez mais explícita, à medida que as taças são esvaziadas. Já conversam de forma natural e espontânea, não se importam com as pessoas, que, na verdade, parecem não se importar com o casal. Reminiscências amorosas, brindes. Sobre a mesa as mãos vão se juntando, suavemente, como dois adolescentes que se enamoram em sala de aula.
Silêncio. Até a orquestra ao fundo, em sinal de reverência, sossega a melodia. Olhos nos olhos. Não há mais ninguém no restaurante. Lábios nos lábios. Beijo demorado, apaixonado, lascivo. O sinal da independência.
- Amo você. - Diz Clarice.

domingo, 13 de maio de 2018

Narciso


Calça preta, camiseta no mesmo tom, apenas detalhes discretos dourados (mas, sem brilho), sapatênis azuis, relógio grande forjado em titânio. Em pé em frente ao espelho, minutos, sentiu-se bonito, lindo, como nunca havia se visto. Até seus finos braços, que sempre fez questão de esconder, pareciam musculosos. Pronto pra seduzir, irresistível. Olhou o reflexo, desejou a si mesmo. “Eu me pegava”, sussurrou sensualizando para sua imagem. Borrifou, plasticamente em movimentos largos, perfume com nome de carro, olhos nos olhos, sempre.
Quase não sai de casa. Como se deixar? Mas, tinha que ir, estava determinado: o dia do caçador! Virou-se decidido. Jogou as chaves do carro para o alto em sinal de segurança, as agarrou de volta como um punhal. Partiu! Som ligado no carro, olhos vez por outra no retrovisor, não para ver o que havia atrás, olhares! Mãos no volante batucando no ritmo da música, arrisca versos desafinados como se estivesse no chuveiro.
Chega ao destino. Bar amplo com vários ambientes. Festa dos anos 70, local ideal para paquerar, namorar, conquistar... Antes de descer do veículo olhou-se mais uma vez, imaginou as várias possibilidades de como terminaria a noite, mas, em todas, tinha uma certeza, seria uma noite inesquecível na cama com alguém deslumbrante.
Entrou, dono de si e de tudo. Parou, todas as luzes se voltaram para ele. Deslizou entre mesas. Era capaz de sentir os olhares de desejo ou inveja o fitarem. Todas as mulheres, alguns rapazes, cobiçaram o recém-chegado. Encontrou a metade de seus amigos na festa, juntou-se aos dois.
Viu uma morena, sorriso de anjo, olhos do demônio, vestido que mostrava os joelhos, tornozelos grossos, sandálias vermelhas, gestos sutis, aliança na mão direita, acompanhada de três amigas. Aproximou-se com seus amigos. “Ainda sobra uma, dou de conta!” Disse ao colega que sorriu engolindo o veneno.
Entre uma música e um petisco, uma dança e uma dose, um dos amigos beija uma das moças, o outro parece estar perto disso. Ele investe na morena que mostra o dedo anelar. O tempo passa, o sorriso angelical se despede sem aceitar companhia. Os dois companheiros saem junto com as outras moças, as três.
Muda o foco. Uma loira (pintada), baixinha, cintura fina, seios proporcionais, bunda empinada, calça jeans, blusa vinho, casaco e botas pretas, segura, taça na mão, drink vermelho, olhar inquieto, movimentos confiantes. Sozinha ao lado de um balcão, conversa com a moça que prepara as bebidas.
Ele senta ao lado, pede a carta, coça o queixo como se entendesse algo que ali estava escrito.
- Inferno! – sugeriu a loira.
- É bom?
- É como eu! Mas, serve pra você.
Deixa dada. Sabia que apenas sua forma de sentar ao lado daquela mulher seria suficiente, palavras não eram mais necessárias, mesmo assim preferiu abrir a boca:
- Vamos juntos ao inferno?
- Meu fogo é outro! – Disse a moça piscando para a bartender.
Uma ruiva, outra morena, duas negras, loiras não (ficou traumatizado). Todas passaram tão perto. “Mas, foi porque eu não quis” disse se despedindo do segurança barbudo de quase dois metros de altura.
Foi embora na companhia do sol. Som mais alto que antes, batidas na direção, gritos fora do tom, uma certeza: Não havia ninguém pra ele naquela noite. Entrou em casa, acendeu todas as luzes (pra quê?), deixou pedaços de roupa e de si no caminho da sala ao quarto. Deitou a se possuir, lambuzou-se dele mesmo e dormiu saciado.