domingo, 13 de maio de 2018

Narciso


Calça preta, camiseta no mesmo tom, apenas detalhes discretos dourados (mas, sem brilho), sapatênis azuis, relógio grande forjado em titânio. Em pé em frente ao espelho, minutos, sentiu-se bonito, lindo, como nunca havia se visto. Até seus finos braços, que sempre fez questão de esconder, pareciam musculosos. Pronto pra seduzir, irresistível. Olhou o reflexo, desejou a si mesmo. “Eu me pegava”, sussurrou sensualizando para sua imagem. Borrifou, plasticamente em movimentos largos, perfume com nome de carro, olhos nos olhos, sempre.
Quase não sai de casa. Como se deixar? Mas, tinha que ir, estava determinado: o dia do caçador! Virou-se decidido. Jogou as chaves do carro para o alto em sinal de segurança, as agarrou de volta como um punhal. Partiu! Som ligado no carro, olhos vez por outra no retrovisor, não para ver o que havia atrás, olhares! Mãos no volante batucando no ritmo da música, arrisca versos desafinados como se estivesse no chuveiro.
Chega ao destino. Bar amplo com vários ambientes. Festa dos anos 70, local ideal para paquerar, namorar, conquistar... Antes de descer do veículo olhou-se mais uma vez, imaginou as várias possibilidades de como terminaria a noite, mas, em todas, tinha uma certeza, seria uma noite inesquecível na cama com alguém deslumbrante.
Entrou, dono de si e de tudo. Parou, todas as luzes se voltaram para ele. Deslizou entre mesas. Era capaz de sentir os olhares de desejo ou inveja o fitarem. Todas as mulheres, alguns rapazes, cobiçaram o recém-chegado. Encontrou a metade de seus amigos na festa, juntou-se aos dois.
Viu uma morena, sorriso de anjo, olhos do demônio, vestido que mostrava os joelhos, tornozelos grossos, sandálias vermelhas, gestos sutis, aliança na mão direita, acompanhada de três amigas. Aproximou-se com seus amigos. “Ainda sobra uma, dou de conta!” Disse ao colega que sorriu engolindo o veneno.
Entre uma música e um petisco, uma dança e uma dose, um dos amigos beija uma das moças, o outro parece estar perto disso. Ele investe na morena que mostra o dedo anelar. O tempo passa, o sorriso angelical se despede sem aceitar companhia. Os dois companheiros saem junto com as outras moças, as três.
Muda o foco. Uma loira (pintada), baixinha, cintura fina, seios proporcionais, bunda empinada, calça jeans, blusa vinho, casaco e botas pretas, segura, taça na mão, drink vermelho, olhar inquieto, movimentos confiantes. Sozinha ao lado de um balcão, conversa com a moça que prepara as bebidas.
Ele senta ao lado, pede a carta, coça o queixo como se entendesse algo que ali estava escrito.
- Inferno! – sugeriu a loira.
- É bom?
- É como eu! Mas, serve pra você.
Deixa dada. Sabia que apenas sua forma de sentar ao lado daquela mulher seria suficiente, palavras não eram mais necessárias, mesmo assim preferiu abrir a boca:
- Vamos juntos ao inferno?
- Meu fogo é outro! – Disse a moça piscando para a bartender.
Uma ruiva, outra morena, duas negras, loiras não (ficou traumatizado). Todas passaram tão perto. “Mas, foi porque eu não quis” disse se despedindo do segurança barbudo de quase dois metros de altura.
Foi embora na companhia do sol. Som mais alto que antes, batidas na direção, gritos fora do tom, uma certeza: Não havia ninguém pra ele naquela noite. Entrou em casa, acendeu todas as luzes (pra quê?), deixou pedaços de roupa e de si no caminho da sala ao quarto. Deitou a se possuir, lambuzou-se dele mesmo e dormiu saciado.

Um comentário:

  1. "Narciso acha feio o não é espelho...", diz o poeta.

    Sem narcisismo, nada somos... Com narcisismo em excesso, nada interagimos...

    Cada um precisa encontrar em si, o seu médio necessário Narciso de cada dia...

    ResponderExcluir