Há
alguns meses, preocupado com o avanço da idade, o aumento do colesterol e o
recorrente tratamento de tio, resolvi voltar a vida de atleta amador. Pensei em
jogar futebol, mas, a bola já me driblava quando eu tinha 18 anos. Jiu-jitsu
seria uma opção, está na moda, porém, tive medo de quebrar os dentes, adoro
meus dentes, mesmo preferindo ficar sério nas fotos. Musculação talvez fosse a
solução, ficar forte, saudável. Aguentei dois dias e meio de malhação. Percebi:
academia é uma coisa que se paga pra sentir dor e fazer careta. Praticar tênis,
esporte charmoso, elegante, muito completo para vários grupos musculares,
descobri que não tinha vocação quando pesquisei os preços das raquetes. Fui a
uma quadra de basquete, já fui um bom armador, campeão estudantil. Alguns
garotos batendo bola, sento na pequena arquibancada, tímido, fico cachorro
paquerando com as carnes do açougue. Começaram a formar os times, eu lá
querendo me oferecer, mas, contendo meus impulsos adolescentes. Um moleque vem
em minha direção, bola laranja nas mãos, camisa dos Cavs, “cadê a do Bulls ou
Lakers?”.
- O
senhor quer jogar? A gente precisa completar o time. Garanto que ninguém vai
machucar.
Pensei
em mandar aquele magrelo pra alguns lugares, perguntar se mãe dele estava bem,
essas coisas que dizemos quando o sangue esquenta. Olhei praquele rapaz,
levantei, senti meu joelho estalar, fiquei bem de frente a ele e disse:
- Não
obrigado. Tô só olhando. - Sai vitorioso, descompletei a pelada!
Mesmo
assim, não desisti do meu objetivo de voltar às atividades físicas. Então me
veio a luz: correr. Bom, completo, barato, não precisa de time e ainda posso
praticar apreciando as paisagens naturais e humanas. Decidido. Comprei tênis,
fone de ouvido, playlist só com rock'n'roll (penso ser um bom incentivo), fiz
consulta (no google, claro)... Tudo pronto, três dias por semana para não
forçar muito. Comecei numa quarta-feira à tarde. Pelas contas, “corri” uns
quatro quilômetros, me senti um maratonista: “se continuar assim, no final do
ano vou pra São Silvestre”.
Exausto,
mas, satisfeito; ofegante, porém, erguido; estava forte, mais magro, atleta,
confiante. Desfilei até o carro sorrindo para todos que cruzaram comigo, um
riso vencedor. Merecia um prêmio. Por que não?
No caminho
de casa parei no bar de Damião, boteco organizado, sem moído ou burocracia, a
gente pode pedir bebida gritando e o dono do bar vem pessoalmente dizer que tem
“fava, tripa, peixe desossado, fígado acebolado, galinha com cuscuz, carne de
sol, bode guisado com macaxeira, pururuca, porco com toicin, tudo no preço”. Abanco-me
numa mesa na calçada, peço uma cerveja, ela vem gelada, noiva. Eu nubente, me esbaldo
na loira e no meu sucesso esportivo. Peço outra. Perdi tantas calorias e
líquidos nos quase dez quilômetros corridos, não fará mal só mais uma garrafa.
Quando estou na metade da terceira cerveja, chega no bar uma ex-aluna minha.
- Oi
professor! Não sabia que você tomava uma.
- Às
vezes, só um copinho no final de semana.
- Tô na
casa de uma amiga aqui perto, vim pegar uma batata frita.
Ela
entra no botequim, volta dois minutos depois, pergunta já puxando a cadeira.
- Posso
sentar enquanto espero?
-
Claro. Quer beber? Damião, mais uma e um copo.
-
Professor, soube que me separei?
- Não. –
Na verdade eu nem sabia se era casada.
- Separei.
Meu marido botou na cabeça que tenho um amante. Ficava me perseguindo. Aguentei
não. Sou nova e bonita. Você acha que preciso ficar presa a um homem
desconfiado? Mandei embora. O pior, o infeliz não aceita. Você acha? Vive atrás
de mim. Quero mais não. Mas, não desiste, fica vigiando. Diz que vai matar eu e
meu amante.
Comecei
a esquecer a corrida de mais de duas léguas. Sabe aquela sensação de estar no
lugar certo, mas, na hora errada? Ela continuou o relato trágico do fim de seu
casamento, sempre reforçando o quanto o ex era brabo, cismado. Não aparenta temor,
conta sua história com orgulho, totalmente a vontade na mesa, pede a próxima
cerveja.
-
Professor, ele disse que se me pegar com meu amante... Olha, tenho outro não. Viu?
Mas, disse, disse sim, se pega com o macho, ele diz, mata os dois. As meninas,
minhas amigas, falaram que ele já passou aí nessa rua uma duzentas vezes, me
procurando, caçando meu amante. Mata os dois. – Concluiu numa gargalhada
afogada no lúpulo.
- Você
não tem medo? – perguntei num misto de curiosidade e sondagem da periculosidade
do homem.
- Medo?
Se tiver num vivo, né? O caba num me deixa em paz. Encasquetou que vai
descobrir o nome e a cara do sujeito. Inclusive, tenho certeza, se chegar aqui,
vai achar que o meu amante é você.
Dei um
sorriso, nem conseguiu ser amarelo de tão desbotado. Pensei na possibilidade de
morrer sem dever, sem conhecer o matador. Será que perceberia ele chegar? Tiro,
facada, talvez um golpe com uma das garrafas na mesa. Tudo isso por causa de
uma corrida quinze quilômetros. Deveria ter feito jiu-jitsu ou karatê.
A
batata chegou, depois de muitas horas. A moça pagou, agradeceu pelas cervejas e
disse o quanto seria bom beber comigo outra vez. Saiu, porção grande nas mãos
coberta com papel alumínio. Terminei a última garrafa, não podia desperdiçar.
Paguei a conta, fui embora cansado. Resultado: nunca mais corri!