terça-feira, 21 de agosto de 2018

O amante


Há alguns meses, preocupado com o avanço da idade, o aumento do colesterol e o recorrente tratamento de tio, resolvi voltar a vida de atleta amador. Pensei em jogar futebol, mas, a bola já me driblava quando eu tinha 18 anos. Jiu-jitsu seria uma opção, está na moda, porém, tive medo de quebrar os dentes, adoro meus dentes, mesmo preferindo ficar sério nas fotos. Musculação talvez fosse a solução, ficar forte, saudável. Aguentei dois dias e meio de malhação. Percebi: academia é uma coisa que se paga pra sentir dor e fazer careta. Praticar tênis, esporte charmoso, elegante, muito completo para vários grupos musculares, descobri que não tinha vocação quando pesquisei os preços das raquetes. Fui a uma quadra de basquete, já fui um bom armador, campeão estudantil. Alguns garotos batendo bola, sento na pequena arquibancada, tímido, fico cachorro paquerando com as carnes do açougue. Começaram a formar os times, eu lá querendo me oferecer, mas, contendo meus impulsos adolescentes. Um moleque vem em minha direção, bola laranja nas mãos, camisa dos Cavs, “cadê a do Bulls ou Lakers?”.
- O senhor quer jogar? A gente precisa completar o time. Garanto que ninguém vai machucar.
Pensei em mandar aquele magrelo pra alguns lugares, perguntar se mãe dele estava bem, essas coisas que dizemos quando o sangue esquenta. Olhei praquele rapaz, levantei, senti meu joelho estalar, fiquei bem de frente a ele e disse:
- Não obrigado. Tô só olhando. - Sai vitorioso, descompletei a pelada!
Mesmo assim, não desisti do meu objetivo de voltar às atividades físicas. Então me veio a luz: correr. Bom, completo, barato, não precisa de time e ainda posso praticar apreciando as paisagens naturais e humanas. Decidido. Comprei tênis, fone de ouvido, playlist só com rock'n'roll (penso ser um bom incentivo), fiz consulta (no google, claro)... Tudo pronto, três dias por semana para não forçar muito. Comecei numa quarta-feira à tarde. Pelas contas, “corri” uns quatro quilômetros, me senti um maratonista: “se continuar assim, no final do ano vou pra São Silvestre”.
Exausto, mas, satisfeito; ofegante, porém, erguido; estava forte, mais magro, atleta, confiante. Desfilei até o carro sorrindo para todos que cruzaram comigo, um riso vencedor. Merecia um prêmio. Por que não?
No caminho de casa parei no bar de Damião, boteco organizado, sem moído ou burocracia, a gente pode pedir bebida gritando e o dono do bar vem pessoalmente dizer que tem “fava, tripa, peixe desossado, fígado acebolado, galinha com cuscuz, carne de sol, bode guisado com macaxeira, pururuca, porco com toicin, tudo no preço”. Abanco-me numa mesa na calçada, peço uma cerveja, ela vem gelada, noiva. Eu nubente, me esbaldo na loira e no meu sucesso esportivo. Peço outra. Perdi tantas calorias e líquidos nos quase dez quilômetros corridos, não fará mal só mais uma garrafa. Quando estou na metade da terceira cerveja, chega no bar uma ex-aluna minha.
- Oi professor! Não sabia que você tomava uma.
- Às vezes, só um copinho no final de semana.
- Tô na casa de uma amiga aqui perto, vim pegar uma batata frita.
Ela entra no botequim, volta dois minutos depois, pergunta já puxando a cadeira.
- Posso sentar enquanto espero?
- Claro. Quer beber? Damião, mais uma e um copo.
- Professor, soube que me separei?
- Não. – Na verdade eu nem sabia se era casada.
- Separei. Meu marido botou na cabeça que tenho um amante. Ficava me perseguindo. Aguentei não. Sou nova e bonita. Você acha que preciso ficar presa a um homem desconfiado? Mandei embora. O pior, o infeliz não aceita. Você acha? Vive atrás de mim. Quero mais não. Mas, não desiste, fica vigiando. Diz que vai matar eu e meu amante.
Comecei a esquecer a corrida de mais de duas léguas. Sabe aquela sensação de estar no lugar certo, mas, na hora errada? Ela continuou o relato trágico do fim de seu casamento, sempre reforçando o quanto o ex era brabo, cismado. Não aparenta temor, conta sua história com orgulho, totalmente a vontade na mesa, pede a próxima cerveja.
- Professor, ele disse que se me pegar com meu amante... Olha, tenho outro não. Viu? Mas, disse, disse sim, se pega com o macho, ele diz, mata os dois. As meninas, minhas amigas, falaram que ele já passou aí nessa rua uma duzentas vezes, me procurando, caçando meu amante. Mata os dois. – Concluiu numa gargalhada afogada no lúpulo.
- Você não tem medo? – perguntei num misto de curiosidade e sondagem da periculosidade do homem.
- Medo? Se tiver num vivo, né? O caba num me deixa em paz. Encasquetou que vai descobrir o nome e a cara do sujeito. Inclusive, tenho certeza, se chegar aqui, vai achar que o meu amante é você.
Dei um sorriso, nem conseguiu ser amarelo de tão desbotado. Pensei na possibilidade de morrer sem dever, sem conhecer o matador. Será que perceberia ele chegar? Tiro, facada, talvez um golpe com uma das garrafas na mesa. Tudo isso por causa de uma corrida quinze quilômetros. Deveria ter feito jiu-jitsu ou karatê.
A batata chegou, depois de muitas horas. A moça pagou, agradeceu pelas cervejas e disse o quanto seria bom beber comigo outra vez. Saiu, porção grande nas mãos coberta com papel alumínio. Terminei a última garrafa, não podia desperdiçar. Paguei a conta, fui embora cansado. Resultado: nunca mais corri!

quinta-feira, 9 de agosto de 2018

Até que a morte os separe


Suzana, a noiva, entra gigante na igreja, morena clara com perigosos olhos cor de mel, alta, dona de grande beleza e elegância. Desfila como se estivesse numa passarela. Todos a observam, algumas com olhos de inveja, outros de desejo, há também olhares curiosos, mas, todos bem atentos. Entre um passo e outro da nubente, as moças nas laterais da igreja cochicham que ela está linda, como é bonito seu vestido, tentam descobrir quem fez seu penteado. Depois de quatro anos, sete meses e dois dias de namoro e mais três meses e vinte e quatro dias de noivado, casa-se com Alfredo que espera ansioso no altar.
O templo está bem ornamentado com flores brancas e vermelhas, sem os costumeiros exageros destas ocasiões, com exceção do detalhe do pequeno buquê colocado nas mãos de uma imagem de Nossa Senhora do Bom Parto. Não há um só banco vazio, todos estão lotados, vieram muitos convidados, nem todos claro, porque sempre existem aqueles que só vão à festa para comer e beber, às vezes se esquecem até de desejar parabéns aos noivos, mas, tudo bem, em contrapartida à ausência deles vieram os onipresentes penetras. A mãe da noiva, Dona Amélia, senhora enxuta, viúva, o marido se enforcou ao descobrir o envolvimento da esposa com um pastor evangélico que visitava a família na promessa de orações. Usa um belo vestido pérola, sentada na primeira fileira de bancos, nitidamente alegre com o casamento da filha, afinal, nos dias de hoje encontrar um homem decente para ser companheiro é uma missão difícil, e Alfredo sempre foi um rapaz íntegro, trabalhador e honesto, não é dos mais bonitos, mas isso é apenas um detalhe.
O celebrante é o Padre Antônio, um jovem sacerdote recentemente ordenado, com aproximadamente 35 anos de idade, amigo de infância do noivo. Alfredo fez questão que realizasse o matrimônio. Os dois eram colegas de brincadeiras quando crianças e de grandes farras na juventude, adoravam sair, ir a festas e sempre tinham muitas namoradas, até que Tony, como era chamado pelos amigos, resolveu entrar para o seminário, foi um verdadeiro choque para o público feminino da cidade, que uma parte usufruía do corpo atlético do jovem e outra tinha essa vontade. Apesar de a juventude bem vivida ao lado de belas garotas, nunca houve nem um boato que o Padre Antônio tivesse tido algum caso amoroso depois de ter se ordenado, ou mesmo nos tempos de seminarista, sua vocação o fez suportar o constante assédio das mulheres.
Sem a presença do amigo, Alfredo reduziu as aventuras. Anos depois, conheceu Suzana em um barzinho da cidade, conversaram, marcaram outros encontros, com o convívio acabaram se apaixonando, namorando e agora casando.
A morena percorre o tapete vermelho no corredor da igreja. Ela sorri, parece uma criança indo a um parque de diversões. Durante a rápida caminhada relembra momentos do seu romance, como a primeira vez em que transaram e o rapaz ficou chateado porque a garota não era mais virgem, e quando mostrou os pentelhos pintados de loiro e lhe disse que os tingiu para lhe fazer uma surpresa, ele adorou. Neste momento, estão vermelhos.
Um dos convidados é Túlio, primo da noiva, ela sempre afirmou ser seu confidente e por isso costuma se trancar horas a fio na companhia do moço. Quando passa por perto do moço seus olhares se cruzam e uma cena vem à cabeça dele. Os dois estão sozinhos na casa dos pais de Suzana, resolvem tomar uma garrafa de vinho, a primeira puxa a segunda, na metade da terceira decidem dançar, Túlio começa a passar as mãos pelas costas da prima que pede suspirando para parar, tem namorado. Os toques passam para o pescoço, os carinhos são retribuídos, as mãos “bobas” do sedutor descem até a bunda da companheira, em resposta, a moça morde a orelha do sedutor, os dois se abraçam com força e se beijam ardentemente. Acaricia os cabelos do primo enquanto ele sutilmente começa a baixar as alças do vestido dela, com um movimento rápido levanta a blusa do rapaz e arranha suas costas, unhas e sangue em harmonia. Após tirar o vestido de sua prima-amante, Túlio a pega no colo e a leva para a cama, a mesma em que o casal Alfredo e Suzana costumavam passar suas noites de amor, puxa a calcinha dela com os dentes e beija cada centímetro do seu corpo, demorando-se principalmente nos seus grandes seios, a cada beijo, um gemido, língua e mão se alternam entre os peitos. Os dois transam loucamente por quase toda a noite. Quando terminam, Túlio, sentado pelado e exibido sobre o criado mudo, acende um cigarro e diz: “Você deveria pintar de loiro.”
Suzana continua sua caminhada em direção ao altar, Alfredo, de olhos fixos e praiados, a espera, aqueles poucos metros pareceram quilômetros, mas, finalmente a noiva chega ao seu objetivo, é recebida por uma mão estendida e gelada.
Padre Antônio inicia a celebração do sacramento matrimonial, muito bem presidida, a voz grossa do vigário chega a quase hipnotizar os presentes, dona Amélia fica tão empolgada com o timbre vocal do sacerdote, não se controla, morde os lábios e contrai as pernas.
O casamento chega ao ápice, o celebrante pergunta a Suzana se ela aceita Alfredo como seu esposo jurando amá-lo e respeitá-lo até que a morte os separe. A moça olha levemente para trás, vê Túlio, ele a encara como que se dissesse telepaticamente: “Não se preocupe, vamos continuar.” Volta o olhar para o padre, sorriso voluptuoso, responde: “Aceito”. Padre Antônio se dirige ao noivo, pergunta se jura amar e respeitar até que a morte os separe. Alfredo fita o amigo, de olhos afogados, diz ofegante “Não” e beija o padre.