domingo, 31 de março de 2019

Fênix

Sentado nas pedras do dique à beira-mar, observa o vai e vem das ondas, sente a brisa, o sol começa a derreter no azul, na cabeça mil pensamentos no mesmo movimento das águas. Camisa vermelha de mangas, dobradas abaixo do cotovelo, calça meio amarela, quase dourada, com detalhes roxos, pés descalços, isqueiro na mão direita, barba por fazer, cabelos assanhados. Horas antes havia matado alguém que amava, com o passar dos anos passou a odiar. Quando decidiu cometer o crime quis fazer com que houvesse sofrimento, uma morte lenta, com muita dor, dando chance para arrependimento (seja no autor ou na vítima), reflexão para todo o feito durante os últimos anos de convivência. Cada passo foi premeditado, medido. Estava convicto da necessidade de matar aquela pessoa, já que não conseguia extirpar o amor que sentia por ela.
Brinca com o isqueiro, acende e apaga, passa o indicador pela chama, sorri satisfeito com o oceano, o fogo, o passado recente, a decisão. Ao seu lado um caranguejo anda pra trás, pensa o quanto sempre retornou, mas, agora, não regressaria, nunca mais. Sol vermelho com a metade afogada, vento penteante, maresia doce, areia circulando... O fogo do isqueiro, azul, confusão com o mar, o céu, azul...
Uma vida dedicada a alguém na premissa de que estava certo em tanta devoção, dias e dias tentando agradar uma ilusão, a eterna esperança de que tudo será diferente amanhã. Dormir, quando possível, em geral noites de insônia. Seria possível mudar para agradar, ou ser o que sempre se foi seria mais honesto?
Pessoas passam no calçadão da praia, caminhantes, turistas, namorados, enamorados do mar, paisagens bonitas, fotos, sorrisos, vendedores, artistas e seus sorrisos (verdadeiros ou não), tanta gente interessante, quantos outros invisíveis... Um assassino sentado na pedra, na pedra, à pedra, a pedra. Sem arrependimento e indiferente a todos ao seu redor. Um covarde? Jamais! A morte foi frente a frente, um espelho, todas as verdades e motivos ditos sem cerimônias ou censuras, vítima e executor em surpreendente resignação, nada de culpa, sem ressentimento, compreensão mútua... era esperado! Dias, anos, uma eternidade adiando o que tinha que ser feito. Ele queria matar, não tinha coragem. Teria que matar o amor de sua vida, que sabia, precisava morrer. Uma tortura entre a hora de dizimar e o momento de ver a última respiração daquela pessoa que foi o seu ar. No outro lado do reflexo a conformidade em saber do fim próximo. Sem alarde, nada de pedido de socorro. Pra quê?
O barulho das ondas quebrando nas pedras, supera as conversas na calçada, um sorriso demoníaco surge, prazer em matar, nunca havia matado, sentiu-se leve, abriu os braços, quase asas, uma ave colorida, sua luz tirava o brilho do mar, a lua (substituta do sol) não era nada perto dele, tons de vermelho e dourado cobriam todo seu corpo, se chovesse os raios cairiam, em sinal de reverência, sobre ele, não choveu, não naquela noite.
Planejou durante meses, arrependia-se a cada nova etapa cumprida. Não podia ser de supetão, não, jamais uma morte súbita. Um tiro mataria muito mais ele. Lento, cruel, a crueldade era necessária para se desvencilhar, precisa ver o sofrimento atravessar sua retina, sofrer junto, chorar, chorar até secar os olhos, até a dor se transmudar em sorrisos.
                       A maré sobe. Um mergulho tiraria a última gota de remorso. Um defunto que ninguém sente falta, um assassino-herói, forte. “Merecia morrer”, pensou enquanto tirava a roupa. Lua acima, um casal trepando, coqueiros se descabelando, tênis de marca no calçadão, amigos compartilham um baseado, uma coruja observa, o mar grita, a areia dança, ao longe um violão (ou será guitarra?)... Um homem nu, assassino, convicto, confiante, mergulha no salgado, um banho, batismo, renascimento... Matou, e daí? Mataria de novo! E matará se for preciso, sempre é! O mar levou sua alma, devolveu seu corpo. Horas antes cometera suicídio!

segunda-feira, 11 de março de 2019

A última gargalhada


O palhaço estava velho e cansado, há quarenta anos vivia de cidade em cidade fazendo seus números. Construiu sua vida e família debaixo da grande lona azul e branca do circo “Arjentino”, com “J” mesmo, que, aliás, era uma companhia formada por artistas brasileiros que adotaram esse nome por acreditar que santo de casa não obra milagre. O palhaço se chamava Pimenta, diziam, inclusive, que Pimenta não se lembrava mais seu nome de batismo, havia os que afirmavam que ele fez questão de esquecer, o porquê nunca ninguém soube. Criado no circo, filho de um palhaço e de uma bailarina, neto da mulher barbada e de outro palhaço. Pimenta não queria seguir a carreira do pai, preferia ser policial militar, achava mais interessante, os PM’s eram mais respeitados e até entravam de graça nas noites de apresentação. Todavia, o pai de Pimenta não deu atenção para as preferências do filho e o preparou para substituí-lo, ensinou todos os truques, as piadas, as brincadeiras, os trejeitos, bem, não teve outro caminho, ele se tornou palhaço.
Sua história foi escrita no picadeiro, seus heróis, suas fantasias, tudo foi formado no círculo central circense. Pimenta era um sucesso, a criançada gargalhava, os adultos se esbaldavam, ao final sempre muitos aplausos. Por onde o Arjentino passava o Pimenta ardia, porém nosso comediante não era um homem feliz, nem, tampouco, alegre, era ranzinza, resmungão, mal-humorado. Várias vezes as crianças iam ao circo, fora da hora de espetáculo, para tentar brincar com Pimenta, quase sempre não conseguiam a atenção do ídolo, nas poucas oportunidades que obtinham êxito sempre eram recebidas, como dizem por aí, “com quatro pedras na mão”.
Com o passar do tempo, o palhaço foi ficando cada vez mais áspero, viciou-se em conhaque e não foram poucas as vezes que entrou em cena totalmente bêbado. Jamais foi um apaixonado pela profissão, mas pelo menos era um excelente profissional. No entanto, foi relaxando, perdendo o ânimo e, consequentemente, a graça. O velho Pimenta não conseguia mais arrancar nem pequenos sorrisos do público, quanto mais as gargalhadas de outrora. Isso irritava Pimenta, e Pimenta irritava a plateia, que gritava nas apresentações: “Pimenta nos olhos dos outros é refresco”. O palhaço caiu em depressão. Quando se olhou no espelho, sem maquiagem, viu um velho, doente, alcoólatra, amargurado.
Tomou uma atitude curiosa, já pela manhã pintou a cara, todos os artistas estranharam aquilo, afinal o espetáculo só se iniciaria às vinte e uma horas, mesmo assim preferiram não fazer comentários, tinham medo da reação do velho, que, além de gagá, diziam, estava meio louco.
O que ninguém sabia era que no dia anterior o dono do Arjentino deu um ultimato: se na noite seguinte o palhaço não conseguisse fazer a plateia rir, e muito, seria despedido. Ora, o que seria do pobre Pimenta, velho, doente, e agora desempregado, sem ter para onde ir e nem aposentadoria para viver?
Quando chegou a hora da apresentação Pimenta entrou em cena com uma disposição que não se via há muito tempo, esforçou-se, deu o máximo de si, mas as velhas e repetidas piadas não empolgaram o público. Um grupinho no alto das arquibancadas puxou um coro de vaias. Pimenta ficou estático ante aquela cena grotesca: um palhaço sendo vaiado, não fazendo rir, sendo motivo de risos. Lembrou-se do pai, do avô, sobretudo se lembrou das palavras do patrão. Não hesitou, sacou um revólver, apontou para a própria cabeça, apertou o gatilho. O barulho do disparo fez com que o circo ficasse em silêncio, olhos atônitos, a trapezista viu o sangue do alto, uma menininha derrubou seu saco de pipoca, o cachorro que joga futebol uivou... Mas, logo depois, todos os presentes soltaram uma grande, sonora e verdadeira gargalhada, finalizada com eufóricos aplausos e assobios.