quarta-feira, 29 de abril de 2020

Dois corpos


Diana entrou exuberante no restaurante. Imponente, sozinha, flutua no salão, câmera lenta. Todos os olhos a acompanham, as conversas cessam, é possível ouvir o barulho do seu longo cabelo negro dançando na calma da ventania. Imensa, maior que seu corpo, mais elevada que sua altura. Mini saia azul, blusa em segunda pele vermelha, decote generoso, botas combinando com a tomara que caia, tom sobre tom. Expectadores laçados, dominados!
Estevão, sentado à mesa 41, hipnotizado com aquela visão paradisíaca. Copo na mão direita, parado no ar, pupilas dilatadas em movimento contínuo à maravilha. Queixo a um quilômetro dos dentes superiores. Na companhia de dois ou três amigos, não sabia mais quantos eram. Samba acelerado e desritmado a torturar suas costelas esquerdas.
Aos poucos, lentamente, o som volta, os movimentos também. Diana chega a uma mesa no fim do hall. Amigas a esperavam, beijos, abraços. Estevão é piloto de avião, conhece o mundo todo. Conta vantagens das várias mulheres que conheceu, exibe como troféu um álbum arquivado no celular. Se vangloria de nunca ter se apaixonado, a não ser por Pietra, uma bela italiana, se esbarraram em Roma, no dia em que assistiu à missa do Papa. E também Baya, pintora argelina, dona de um sorriso de enfraquecer as pernas e brotar borboletas na barriga do mais frio dos homens. Ou Mahara, atleta indiana que conheceu durante a maratona de Nova York, mentiu pra ela dizendo também ser corredor, não resistiu ao primeiro treino de rua. Também teve Fiorella, bailarina argentina, ou será chilena? Disse ser natural do Uruguai. Se encantou por ela em um espetáculo em Montevidéu... Enfim, agora estava apaixonado pela morena que nem mesmo sabia o nome ou de onde houvera saído.
Não conseguia mais se concentrar na conversa. Calculava, pensava, traçava planos de voo na cabeça, na expectativa de descobrir uma forma infalível de se aproximar da moça. Todos no bar a haviam notado, certamente desejado. Nenhuma luz a clarear seus românticos pensamentos. Olhava para a última mesa esperançoso de reciprocidade. Os olhos de Diana finalmente encontram os do piloto. Ela sorri. Estevão baixa a cabeça. Alguns segundo de arrependimento, volta tentar fita-la. Vê a mulher conversando com um cara sentado ao lado. Um rapaz feio, certamente com papo chato. Talvez até tenha mau hálito. Nem tinha!
Estevão tentou mudar o foco, começou a falar de futebol. Os amigos não contiveram os risos, afinal, o homem errara todas as informações dos campeonatos, nem mesmo os nomes dos times conhecia. Ele também gargalhou dando soquinhos na mesa. As risadas vão se esvaindo, quase no fim, como numa sequência ensaiada, a melodia é interrompida:
- Oi, a piada deve ter sido boa! Me contaria?
Olhando para o chão, o piloto viu o rubro de um par de botas ao seu lado. Gelo na espinha, fogo nas mãos, terremoto nos joelhos, Saara na boca. Depois de quase uma semana levanta a vista. O sorriso de Baya não chegava nem perto da divindade vinda daquela boca.
- Você fala, né? Vai me contar a piada? Tenho certeza de que foi a mais engraçada da noite. Meu nome é Diana. – disse a semideusa enquanto se apossava de uma cadeira.
- Ele é a piada! – Comentou Bruno, um dos amigos, ao tentar chamar atenção.
- Não tenho dúvida de que ele é uma graça. – Arrebatou a moça.
Diana é advogada, seu prato preferido são homens acusados de violência doméstica. Sente prazer em ver o medo em seus olhos na sala de audiência. “Não merecem respeito ou perdão!” Advoga casos de divórcio e pensão alimentícia, sempre ao lado das mulheres. Suas ideias trucidam as partes adversárias. Nocaute! Mantém um escritório em sociedade com a amiga Donna, uma dupla admirada e temida tribunais afora. Mulher determinada, jamais teve qualquer receio de como conduzir sua vida.
É clichê e lugar comum dizer que a noite foi pequena, mas realmente foi. Minúscula, frente a tudo vivenciado dali pra frente. Curiosidade, atração, paixão, amor houve todos esses momentos, ódio também, senão não tem graça! A melhor parte das viagens de Estevão, passaram ser o retorno, mais piegas impossível. Todos os casais apaixonados são piegas e bregas. É a vida! Ele, sempre questionador, descobriu que nem toda verdade é absoluta, dois corpos podem sim ocupar o mesmo lugar no espaço.
Todavia, como disse Vinícius, o amor não precisa ser imortal. Nesse caso, apesar do tempo de infinitibilidade, também houve óbito. Diana sepultou o romance, decidida, resolvida, sem arrodeios. Não quis briga, mas foi inevitável. Estevão chorou, esperneou, prometeu, ajoelhou, viajou (dessa vez em terra)... Nada adiantou.
Cada um continuou sua vida. Ou quase. Estevão seguia a de Diana. Cada passo, audiência, bares, internet... Via de longe, não entendia por que tudo havia acabado. Sofreu, caiu do céu que sempre dominou. Pra ele, eles dois eram um só, veio a pior conclusão, separados: é possível um corpo estar em dois lugares ao mesmo tempo.


* Texto escrito a partir de uma ideia sugerida por Pedro Wagner Mota.

segunda-feira, 13 de abril de 2020

O que veio primeiro?


Há um tempo, não sei quanto, faz alguns anos deixei de contar quantas folhas de calendário já rabisquei ou rasguei, houve as que guardei, claro. Enfim, viajei a Curitiba na companhia de meu amigo Evaldo, foi a primeira vez que ele voou, nem teve medo, na verdade não tirou os olhos da janela, a não ser em alguns poucos momentos que se virava pra mim, sem dizer uma só palavra, apenas assentindo com a cabeça enquanto erguia as sobrancelhas e projetava o lábio inferior.
 No trajeto da Paraíba ao Paraná, fizemos conexão em São Paulo. Trinta minutos, que foram transformados em duas horas e meia. Chuva fina. Garoa, né? Enquanto estávamos na zona de embarque a espera do avião, observando os horários no painel eletrônico, nossas barrigas nos avisaram da necessidade de comer. Guarulhos é tão grande (e caro). Fomos andando, não tinha um pirão, muito menos rubacão, nada de arroz de leite, buchada nem pensar (ainda bem, não gosto mesmo). Caminhamos, caminhamos, muitas placas, luzes, gente apressada... Encontramos uma moça, postura ereta, vestida de azul, quepe bonito, cabelo preso, em pé por trás de um pequeno balcão. Paramos na frente dela, eu, apressado, e pra mostrar que era acostumado em aeroportos, me debrucei na bancada, mão no queixo, perguntei onde encontraríamos uma lanchonete. A mulher seriamente sorriu e disse:
- Vocês passaram por algumas. Acima dessa escada que vocês acabaram de descer, à esquerda fica uma praça de alimentação, tem muitas opções. Não viram?
- Vimos. Não, olhamos, mas não vimos... Tudo bem, estamos perto, é subir as escadas. Obrigado, moça! – Disse eu ensaiando um tímido “tchauzinho”.
- Não. Vocês não podem voltar.
- Como assim? A gente tem um avião pra pegar. – Disse Evaldo, lustrando a careca com a mão.
- Estão vendo a faixa aí atrás de vocês? Pois é, ela é clara. Passou, não volta. – Falou ela indicando um traço amarelo no chão, acompanhado da frase “proibido retornar”.
- Amiga, são apenas alguns centímetros! Por exemplo, se tivéssemos perguntado ali, olha só, ali, um passo de distância. Você responderia e nós voltávamos. – Falei, certo de ter convencido a garota azulada.
- Verdade, o único problema é que vocês deram um passo. Que pena. Lamento! – Essa frase foi acompanhada de um leve puxar de lábios e fuzilar de íris.
Voltamos a questionar sobre o voo. Se não podíamos voltar, como chegaríamos ao nosso destino? Ela foi didática, quase soletrou as palavras, fiquei pensando se eu ainda entendia português. Disse que teríamos que dar a volta completa, ir para o portão de embarque, passar pelo detetor de metais, etc, etc. Resultado: andamos, andamos, andamos muito, não comemos, rimos bastante e não perdemos a aeronave rumo à capital paranaense.
Chegamos à noite em Curitiba, fomos direto pro hotel. Para matar a fome comemos uns sanduíches, pelo menos ela morreu. Judiou, mas faleceu, as velas foram garrafas de cerveja.
Na manhã seguinte, acordamos cedo, dia cheio, evento sindical: palestras, debates (brigas também), crachás pra cima, batidas nas mesas, gritos em microfones, argumentos delicados, paciência, falta dela, votos, ideias... muitas... um universo num canto só! Intervalo pro almoço. Eu e Evaldo aproveitamos as duas horas de descanso para dar umas voltas na cidade. Muitas flores, artistas de rua, gente, o melhor de cada lugar é o povo. Mesmo assim, chega uma hora em que o estômago ofusca a vista. A partir daí nossos olhos só se voltam para anúncios de comida. Não tínhamos muito dinheiro, comer barato era o objetivo.
Então, eureca! Vimos um cara numa esquina, encostado num poste, olhar perdido, não estava lá. Pé direito em cruz com a canela esquerda. Calça jeans, camisa de botões branca, mangas longas, barba cheia, cabelo ralo e assanhado. Nas mãos uma placa com a inscrição: “Almoço livre por R$4,99, suba a escada.”
- Que escada? – Indagou meu bucho.
O homem da propaganda, sem mudar a vista, apontou com a mão esquerda. Gostei do relógio dele! Subimos todos os mais de trezentos degraus até o primeiro andar. Na primeira mudança de lance, lemos uma folha de ofício com os dizeres: “Buffet livre R$ 4,99, com direito a uma carne. Cada carne extra custa R$ 1,50”. Calculei junto com as lombrigas: “Cinco reais, mais uma carne e um suco, gasto menos de dez conto”.
Ao chegar ao topo do castelo, vimos umas mesas, muitas, inclusive, tinha mais do que cabia, feitiçaria, só podia ser, naqueles poucos metros havia quilômetros de gente esfomeada. Uma mesa de self-service colorida: verde, marrom, amarelo, vermelho, branco, lilás, azul piscina, rosa choque... Fomos colocando os nossos pratos, Evaldo sorria, devia, igual a mim, pensar na nota de dez, duas de cinco também servia. No final do balcão, uma moça de branco, luvas, toca plástica um garfo numa mão e na outra uma faca (aquilo era peixeira), tomava conta das carnes, afinal, cada cliente tinha direito a um pedaço, pro segundo ou terceiro era preciso desembolsar um pouco mais.
Depois de pratos cheios, chegamos à guardiã das proteínas. Havia três cubas à sua frente: uma com frango, outra com linguiça e a última cheia de ovo frito. Já estava no meu orçamento gastar um real e cinquenta a mais, parei durante uns segundos, vi as opções e questionei:
- O ovo conta como carne?
- Claro. É como diz a cozinheira daqui: um ovo vale uma galinha inteira!