segunda-feira, 13 de abril de 2020

O que veio primeiro?


Há um tempo, não sei quanto, faz alguns anos deixei de contar quantas folhas de calendário já rabisquei ou rasguei, houve as que guardei, claro. Enfim, viajei a Curitiba na companhia de meu amigo Evaldo, foi a primeira vez que ele voou, nem teve medo, na verdade não tirou os olhos da janela, a não ser em alguns poucos momentos que se virava pra mim, sem dizer uma só palavra, apenas assentindo com a cabeça enquanto erguia as sobrancelhas e projetava o lábio inferior.
 No trajeto da Paraíba ao Paraná, fizemos conexão em São Paulo. Trinta minutos, que foram transformados em duas horas e meia. Chuva fina. Garoa, né? Enquanto estávamos na zona de embarque a espera do avião, observando os horários no painel eletrônico, nossas barrigas nos avisaram da necessidade de comer. Guarulhos é tão grande (e caro). Fomos andando, não tinha um pirão, muito menos rubacão, nada de arroz de leite, buchada nem pensar (ainda bem, não gosto mesmo). Caminhamos, caminhamos, muitas placas, luzes, gente apressada... Encontramos uma moça, postura ereta, vestida de azul, quepe bonito, cabelo preso, em pé por trás de um pequeno balcão. Paramos na frente dela, eu, apressado, e pra mostrar que era acostumado em aeroportos, me debrucei na bancada, mão no queixo, perguntei onde encontraríamos uma lanchonete. A mulher seriamente sorriu e disse:
- Vocês passaram por algumas. Acima dessa escada que vocês acabaram de descer, à esquerda fica uma praça de alimentação, tem muitas opções. Não viram?
- Vimos. Não, olhamos, mas não vimos... Tudo bem, estamos perto, é subir as escadas. Obrigado, moça! – Disse eu ensaiando um tímido “tchauzinho”.
- Não. Vocês não podem voltar.
- Como assim? A gente tem um avião pra pegar. – Disse Evaldo, lustrando a careca com a mão.
- Estão vendo a faixa aí atrás de vocês? Pois é, ela é clara. Passou, não volta. – Falou ela indicando um traço amarelo no chão, acompanhado da frase “proibido retornar”.
- Amiga, são apenas alguns centímetros! Por exemplo, se tivéssemos perguntado ali, olha só, ali, um passo de distância. Você responderia e nós voltávamos. – Falei, certo de ter convencido a garota azulada.
- Verdade, o único problema é que vocês deram um passo. Que pena. Lamento! – Essa frase foi acompanhada de um leve puxar de lábios e fuzilar de íris.
Voltamos a questionar sobre o voo. Se não podíamos voltar, como chegaríamos ao nosso destino? Ela foi didática, quase soletrou as palavras, fiquei pensando se eu ainda entendia português. Disse que teríamos que dar a volta completa, ir para o portão de embarque, passar pelo detetor de metais, etc, etc. Resultado: andamos, andamos, andamos muito, não comemos, rimos bastante e não perdemos a aeronave rumo à capital paranaense.
Chegamos à noite em Curitiba, fomos direto pro hotel. Para matar a fome comemos uns sanduíches, pelo menos ela morreu. Judiou, mas faleceu, as velas foram garrafas de cerveja.
Na manhã seguinte, acordamos cedo, dia cheio, evento sindical: palestras, debates (brigas também), crachás pra cima, batidas nas mesas, gritos em microfones, argumentos delicados, paciência, falta dela, votos, ideias... muitas... um universo num canto só! Intervalo pro almoço. Eu e Evaldo aproveitamos as duas horas de descanso para dar umas voltas na cidade. Muitas flores, artistas de rua, gente, o melhor de cada lugar é o povo. Mesmo assim, chega uma hora em que o estômago ofusca a vista. A partir daí nossos olhos só se voltam para anúncios de comida. Não tínhamos muito dinheiro, comer barato era o objetivo.
Então, eureca! Vimos um cara numa esquina, encostado num poste, olhar perdido, não estava lá. Pé direito em cruz com a canela esquerda. Calça jeans, camisa de botões branca, mangas longas, barba cheia, cabelo ralo e assanhado. Nas mãos uma placa com a inscrição: “Almoço livre por R$4,99, suba a escada.”
- Que escada? – Indagou meu bucho.
O homem da propaganda, sem mudar a vista, apontou com a mão esquerda. Gostei do relógio dele! Subimos todos os mais de trezentos degraus até o primeiro andar. Na primeira mudança de lance, lemos uma folha de ofício com os dizeres: “Buffet livre R$ 4,99, com direito a uma carne. Cada carne extra custa R$ 1,50”. Calculei junto com as lombrigas: “Cinco reais, mais uma carne e um suco, gasto menos de dez conto”.
Ao chegar ao topo do castelo, vimos umas mesas, muitas, inclusive, tinha mais do que cabia, feitiçaria, só podia ser, naqueles poucos metros havia quilômetros de gente esfomeada. Uma mesa de self-service colorida: verde, marrom, amarelo, vermelho, branco, lilás, azul piscina, rosa choque... Fomos colocando os nossos pratos, Evaldo sorria, devia, igual a mim, pensar na nota de dez, duas de cinco também servia. No final do balcão, uma moça de branco, luvas, toca plástica um garfo numa mão e na outra uma faca (aquilo era peixeira), tomava conta das carnes, afinal, cada cliente tinha direito a um pedaço, pro segundo ou terceiro era preciso desembolsar um pouco mais.
Depois de pratos cheios, chegamos à guardiã das proteínas. Havia três cubas à sua frente: uma com frango, outra com linguiça e a última cheia de ovo frito. Já estava no meu orçamento gastar um real e cinquenta a mais, parei durante uns segundos, vi as opções e questionei:
- O ovo conta como carne?
- Claro. É como diz a cozinheira daqui: um ovo vale uma galinha inteira!

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