Há
um tempo, não sei quanto, faz alguns anos deixei de contar quantas folhas de calendário
já rabisquei ou rasguei, houve as que guardei, claro. Enfim, viajei a Curitiba
na companhia de meu amigo Evaldo, foi a primeira vez que ele voou, nem teve
medo, na verdade não tirou os olhos da janela, a não ser em alguns poucos momentos
que se virava pra mim, sem dizer uma só palavra, apenas assentindo com a cabeça
enquanto erguia as sobrancelhas e projetava o lábio inferior.
No trajeto da Paraíba ao Paraná, fizemos conexão
em São Paulo. Trinta minutos, que foram transformados em duas horas e meia.
Chuva fina. Garoa, né? Enquanto estávamos na zona de embarque a espera do avião,
observando os horários no painel eletrônico, nossas barrigas nos avisaram da
necessidade de comer. Guarulhos é tão grande (e caro). Fomos andando, não tinha
um pirão, muito menos rubacão, nada de arroz de leite, buchada nem pensar
(ainda bem, não gosto mesmo). Caminhamos, caminhamos, muitas placas, luzes,
gente apressada... Encontramos uma moça, postura ereta, vestida de azul, quepe
bonito, cabelo preso, em pé por trás de um pequeno balcão. Paramos na frente
dela, eu, apressado, e pra mostrar que era acostumado em aeroportos, me
debrucei na bancada, mão no queixo, perguntei onde encontraríamos uma
lanchonete. A mulher seriamente sorriu e disse:
-
Vocês passaram por algumas. Acima dessa escada que vocês acabaram de descer, à
esquerda fica uma praça de alimentação, tem muitas opções. Não viram?
-
Vimos. Não, olhamos, mas não vimos... Tudo bem, estamos perto, é subir as
escadas. Obrigado, moça! – Disse eu ensaiando um tímido “tchauzinho”.
-
Não. Vocês não podem voltar.
-
Como assim? A gente tem um avião pra pegar. – Disse Evaldo, lustrando a careca
com a mão.
-
Estão vendo a faixa aí atrás de vocês? Pois é, ela é clara. Passou, não volta. –
Falou ela indicando um traço amarelo no chão, acompanhado da frase “proibido
retornar”.
-
Amiga, são apenas alguns centímetros! Por exemplo, se tivéssemos perguntado
ali, olha só, ali, um passo de distância. Você responderia e nós voltávamos. –
Falei, certo de ter convencido a garota azulada.
-
Verdade, o único problema é que vocês deram um passo. Que pena. Lamento! – Essa
frase foi acompanhada de um leve puxar de lábios e fuzilar de íris.
Voltamos
a questionar sobre o voo. Se não podíamos voltar, como chegaríamos ao nosso
destino? Ela foi didática, quase soletrou as palavras, fiquei pensando se eu ainda
entendia português. Disse que teríamos que dar a volta completa, ir para o
portão de embarque, passar pelo detetor de metais, etc, etc. Resultado: andamos,
andamos, andamos muito, não comemos, rimos bastante e não perdemos a aeronave rumo
à capital paranaense.
Chegamos
à noite em Curitiba, fomos direto pro hotel. Para matar a fome comemos uns sanduíches,
pelo menos ela morreu. Judiou, mas faleceu, as velas foram garrafas de cerveja.
Na
manhã seguinte, acordamos cedo, dia cheio, evento sindical: palestras, debates
(brigas também), crachás pra cima, batidas nas mesas, gritos em microfones, argumentos
delicados, paciência, falta dela, votos, ideias... muitas... um universo num
canto só! Intervalo pro almoço. Eu e Evaldo aproveitamos as duas horas de
descanso para dar umas voltas na cidade. Muitas flores, artistas de rua, gente,
o melhor de cada lugar é o povo. Mesmo assim, chega uma hora em que o estômago
ofusca a vista. A partir daí nossos olhos só se voltam para anúncios de comida.
Não tínhamos muito dinheiro, comer barato era o objetivo.
Então,
eureca! Vimos um cara numa esquina, encostado num poste, olhar perdido, não
estava lá. Pé direito em cruz com a canela esquerda. Calça jeans, camisa de
botões branca, mangas longas, barba cheia, cabelo ralo e assanhado. Nas mãos
uma placa com a inscrição: “Almoço livre por R$4,99, suba a escada.”
-
Que escada? – Indagou meu bucho.
O
homem da propaganda, sem mudar a vista, apontou com a mão esquerda. Gostei do
relógio dele! Subimos todos os mais de trezentos degraus até o primeiro andar. Na
primeira mudança de lance, lemos uma folha de ofício com os dizeres: “Buffet
livre R$ 4,99, com direito a uma carne. Cada carne extra custa R$ 1,50”. Calculei
junto com as lombrigas: “Cinco reais, mais uma carne e um suco, gasto menos de
dez conto”.
Ao
chegar ao topo do castelo, vimos umas mesas, muitas, inclusive, tinha mais do
que cabia, feitiçaria, só podia ser, naqueles poucos metros havia quilômetros
de gente esfomeada. Uma mesa de self-service colorida: verde, marrom, amarelo,
vermelho, branco, lilás, azul piscina, rosa choque... Fomos colocando os nossos
pratos, Evaldo sorria, devia, igual a mim, pensar na nota de dez, duas de cinco
também servia. No final do balcão, uma moça de branco, luvas, toca plástica um
garfo numa mão e na outra uma faca (aquilo era peixeira), tomava conta das
carnes, afinal, cada cliente tinha direito a um pedaço, pro segundo ou terceiro
era preciso desembolsar um pouco mais.
Depois
de pratos cheios, chegamos à guardiã das proteínas. Havia três cubas à sua
frente: uma com frango, outra com linguiça e a última cheia de ovo frito. Já
estava no meu orçamento gastar um real e cinquenta a mais, parei durante uns
segundos, vi as opções e questionei:
-
O ovo conta como carne?
-
Claro. É como diz a cozinheira daqui: um ovo vale uma galinha inteira!
"e se não foi assim... eu segue!"
ResponderExcluirFiquei imaginando como é "lustrando a careca com a careca." Muito bom!
ResponderExcluirFoi um erro de revisão. Corrigi. Obrigado pela ajuda.
ExcluirMassa!!!
ResponderExcluirKkkk ótimo, ovo valer como carne! Kkkk
ResponderExcluirMuito bom!
Muito bom...
ResponderExcluirUm perfeito delivery de boa leitura!
ResponderExcluirUm perfeito delivery de boa leitura!
ResponderExcluirUma riqueza de detalhes. Muito bom. Excelente!
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