Tarde
de sexta. Quarentena por causa da covid 19, eu na sala do meu apartamento,
sentado no sofá, dono do mundo, almoçando um prato de cuscuz com ovo, galinha e
graxa, assisto ao jornal na TV. As batidas no chão do meu calcanhar esquerdo
demonstram a minha inquietude. Quase me
engasgo com as notícias, culpa delas, jamais do cuscuz. Me revolto, pego a arma
superpoderosa: o controle remoto. Procuro músicas, passeio na internet. Escolho
um samba, sou um bom sujeito.
O
anjinho etílico que me guarda e frequenta meu ombro, sussurra que devo abrir
uma cerveja. Levanto decidido, quase um passista na avenida do sofá à
geladeira. Abro uma IPA que estava guardada para uma ocasião especial. Há de
ser hoje! Coloco suavemente na tulipa. Antes do paladar, sacio a vista com a
espuma subindo. Ritual, é assim que deve ser. No momento exato do primeiro
gole, quase sentindo o lúpulo descer amargamente saboroso pela minha garganta
sedenta, o celular toca. Prefixo de São Paulo. Penso em recusar, o demoninho
morador do outro ombro me aconselha a atender.
-
Oi.
-
Boa tarde! Gostaria de falar com o senhor Júlio.
-
Sou eu.
-
Olá, seu Júlio. Eu sou a Claudinédia...
-
Clau o quê?
-
Claudinédia. Sou representante comercial do Banco Vênus. Tudo bem com o senhor?
-
Bem, bem, bem mesmo, ninguém tá nesse momento, né?
-
Verdade. Eu entendo, mas é a vontade de Deus!
-
Acho que não!
-
Enfim. Espero que pessoalmente o senhor esteja bem.
-
Tô.
-
Então. Eu gostaria de estar oferecendo uma ótima oportunidade ao senhor. Eu poderia
estar falando agora? (...) Seu Júlio? (...) Seu Júlio? (...) Alô? (...)
-
Desculpa, foi o cuscuz. Gosta de cuscuz, Clau? Vou chamar de Clau, é mais fácil!
-
Fique à vontade...
- Gosta de cuscuz? Com ovo e graxa é uma
maravilha.
-
Na verdade nunca comi.
-
Tadinha. Ninguém pode ser feliz sem cuscuz.
-
Seu Júlio, como eu disse tenho oferta para o senhor...
-
Também tenho: quer cuscuz?
-
Obrigada. Fico agradecida. Como eu estava dizendo, o Banco Vênus, devido ao seu
bom relacionamento no comércio local...
-
Pera. Esse bom relacionamento é meu?
-
Sim senhor. Sabemos de sua ótima relação com o mercado de sua região.
-
Mais ou menos. Teve uns dois ou três que me colocaram no Serasa, maldade pura. Não
acha?
-
Tenho certeza que o senhor cumpre seus compromissos.
-
Às vezes minha mulher fica com raiva.
-
Desculpa, não entendi.
-
Ela fica chateada, Clau, porque não cumpro meus tratos. Quer falar com ela?
-
Como assim?
-
Pra você dizer a ela tudo isso que disse a mim. Por exemplo: honro meus
compromissos.
-
Seu Júlio, o Banco Vênus está disponibilizando um cartão de crédito para o senhor.
Poderia, por gentileza, estar me confirmando seu endereço?
-
Clau, tô decepcionado. Você conhece tanto de mim, e não sabe onde moro?
-
Preciso do endereço para estar mandando o cartão.
-
Oxente! Eu disse que queria?
-
Sei que o senhor não vai recusar. É uma ótima oportunidade. Comodidade total. Hoje
em dia é perigoso andar com dinheiro...
-
Não se anda com o que não se tem, né?
-
Como?
-
Nada não. Fala aí do cartão mágico.
-
Bandeira Veloz, aceito em todo Brasil. Posso estar enviando hoje ainda. Chega
em até dez dias úteis.
-
Sei... e a anuidade?
-
Isento. O senhor só precisa ter uma parcela mínima de cem reais por mês. Por
exemplo, na compra de um produto de trezentos reais, dividido em três vezes, já
fica garantido o valor mínimo por três meses. Se por acaso em algum mês não
atingir esse valor, será debitado um valor simbólico de cinco reais.
-
Perfeito! É só gastar cem que não pago cinco!
-
Isso. Posso estar finalizando o pedido para enviar?
-
Vou querer não, obrigado!
-
Mas seu Júlio É uma chance única. Veja bem, a gente remete o cartão, ele vai
bloqueado. O senhor só desbloqueia se desejar.
-
Desejo não.
-
Junto com o cartão vão panfletos explicativos. São para o cliente estar lendo
com calma e conhecer melhor no aconchego do seu lar.
-
Tomando uma cerveja, né?
-
Se o senhor gosta, pode ser. Aí na tranquilidade decide.
-
Não. Mande não. Esses panfletos são feitos de papel, papel de celulose,
celulose vem das árvores. Vão matar os pés de pau.
-
Isso não é problema...
-
Matar as árvores não é problema? Tadinhas delas. E o aquecimento global?
-
Eu quis dizer que não é um problema pra gente. As árvores são importantes, mas
é só um pouco de papel.
-
Já perguntei se gosta de cuscuz?
-
Já sim, seu Júlio. Voltando ao motivo de minha ligação...
-
Quero não!
-
Mas por quê?
-
Pelas árvores, por mim, pelos cinco reais.
-
Seu Júlio, eu estarei encerrando o contato. Obrigado pela atenção. Boa tarde!
A
moça desligou sem me deixar dizer tchau. Voltei ao samba e ao meu mundo. O pequeno
batedor de asas no meu ombro esquerdo me lembra de meu copo. Vou ávido, um gole
grande, maior que a boca. Careta. A cerveja esquentou!