Minha
vez, peço um colchão mole, podia até ser cupim. Por um instante tirei o foco,
quando voltei para os pães, Anastácio não estava mais lá. Acelerei meu carrinho
pelas rodovias do mercado, procurei e procurei. Numa bodega seria tão mais
fácil!
Por
coincidência, eu o conheci numa loja como esta há seis anos. Eu com pressa, ele
cedeu sua vez no caixa. Acabei esquecendo uma barra de chocolate ao leite. No estacionamento,
guardando as compras, assobiando um sucesso da época, não lembro qual era,
tampouco a banda.
-
Você esqueceu isso!
Eu
vi o chocolate acompanhado de uma mão grossa, grande, brutalmente delicada,
percorri o resto do braço, passei pela barba espeça e mal cuidada, reconheci o
rosto viril, sem sorriso, o mesmo que minutos antes gentilmente me deixou
passar. Alto, forte, mas não definido, cabelo castanho assanhado. Agradeci, sem
graça, ele fechou o porta malas do meu carro.
-
Prefiro o amargo. – disse sem me fitar.
-
Como assim?
-
Chocolate. Esse seu é muito doce, enjoa.
-
Penso ser exatamente essa a ideia. Adoçar a vida! Leveza.
Depois
desta frase ele sorriu pra mim, um sorriso repetido tantas vezes depois. Sim,
foi pra mim, tenho certeza de que por mim. Passamos uma hora em cerca de cinco
minutos. O único tema foi gostos e sabores. Meu Deus, tão diferentes! Trocamos
telefone. Pediu para eu não ligar, ligaria. Não aguentei a ansiedade. Disquei ao
chegar em casa. Convidei para sair. Um chopp amigo para falar de amargos e amarguras,
doces e doçuras.
Aquela
foi a primeira de muitas noites, que se tornaram tardes e manhãs. Um ano e dois
meses depois estávamos morando juntos, em meu apartamento. Redecorei todo por
causa dele. A cada mês mudava as fotos nas paredes, hoje entendo o quanto os
retratos nunca foram devidamente reparados.
Anos
rapidamente eternos. Trabalhávamos muito, por isso aproveitávamos o máximo dos
momentos juntos. Dos filmes de ação, assistia por ele, às poesias que ele me
ouvia ler mesmo detestando os versos. Nossos banhos juntos, mãos ensaboadas
percorrendo cada dobrinha do outro. A melhor parte sempre foi dormir, depois de
suar e gemer, eu em pedra e polvo sobre ele. Ele incomodado com meus tentáculos,
tentando se desvencilhar sem me acordar. Nunca quis me despertar. Saíamos bastante:
boates, bares, festas... Anastácio bebendo muito, ninguém conseguia derrubá-lo,
bebia de cachaça a whisky, cerveja era igual água. Dificilmente ficava bêbado,
no máximo zuado, como definia. Ele não gostava de carícias em público, achava
desnecessário, eu entendia, não insistia. É o jeito dele. Mas às vezes, no momento
certo, roubava um beijo, ele ria, vermelho, lindo! Andávamos num chão
estrelado!
Tínhamos
discordâncias e atritos. Qual casal não tem? Porém a primeira vez que realmente
brigamos foi quando eu falei sobre filhos. Me disse ser um absurdo, sem lógica,
crianças só atrapalhariam. Pra mim, tanto fazia Maria ou João, ele não queria
nenhum. Dias de discussão, noites de brigas, noitadas arruinadas às três da
manhã, por causa de comentário acerca de uma criança correndo em casa.
Rapidamente
tudo foi desbotando. A velocidade da queda é sempre maior. Maldita gravidade! Algumas
palavras ou posturas passaram a ser tacitamente censuradas em casa, até a
proibição ser parida sem gritos ou sussurros.
Numa
manhã, após um café mudo e sem gosto. Anastácio saiu de casa, não se despediu,
não deu tchau ou até logo. Beijo de futura saudade era coisa do passado. Ele foi
embora e nunca mais voltou.
No
mercado foi a primeira vez que o revi depois do “adeus calado”. Desisti da
busca, parei ao lado de um freezer de cerveja. Abri, peguei uma long neck, quase
não consigo girar a tampa. Consegui. Em segundos diminuí progressivamente o ângulo
da garrafa em minha boca.
Minha
visão periférica, ou sexto sentido, me mostrou Anastácio se aproximando. Parei
a cerveja e o olhei, ele empurrava seu carrinho, me encarava, sua barba era a
mesma e seu cabelo ainda necessitava de pente. Não sorriu, nem eu. Comecei a me
afogar. Esperança, medo, saudade, tesão, ternura, raiva, carinho... Todas as
expressões do amor passaram pelas minhas artérias, sangue não havia mais lá.
Anastácio,
sem parar, emparelhou, mirou em mim e disse o que eu precisava ouvir:
- Adeus, Joaquim!
Este conto me fez recordar a história que um amigo me confidenciou, outro dia, um tanto ressentido, por um término de relacionamento também sem um "adeus". Após ler este conto, não sei se é melhor com ou sem...
ResponderExcluirAdorei!
Escravo que somos das palavras... não bastasse o "adeus calado"!! Ahhh Joaquim... será que a dúvida do silêncio não seria melhor que um "sonoro adeus"???
ResponderExcluirAdoro seus contos Júlio, até dialogo com seus personagens... rsrsr
Só tem um comentário: PQP
ResponderExcluirEle e eu é dúbio até o "adeus Joaquim" .
ResponderExcluirRelacionamento é complexo independente dos envolvidos. Muito bom