segunda-feira, 11 de maio de 2020

Ele e eu


                       No supermercado. Foi lá. Eu estava na fila da sessão de carnes, em dúvida se comprava picanha ou contrafilé. Já havia decidido levar um quilo de carne moída, suspirei imaginando o sanduíche feito com ela. Levantei a vista, na padaria estava ele, mudei o olhar, não podia ser. Voltei, era sim. Vestindo a camisa vermelha, adoro o encarnado, que comprei em três parcelas na loja de roupas falsificadas, e daí? Ele nunca soube a diferença. Short branco, meio folgado, não permitia ver suas coxas grossas, atléticas, mesmo sem nunca ter praticado esporte algum. Tênis de correr, cores estridentes, continua sem saber combinar as peças. Em cada pulso um relógio, detesta se atrasar. Conversava descontraidamente com a moça do balcão, provavelmente explicava para ele a diferença entre um croissant e um rissole. Eles riem, eu me tremo, a água salgada que cai sobre minhas compras é suor, não lágrimas, estas banham meu peito de fórmula um.
Minha vez, peço um colchão mole, podia até ser cupim. Por um instante tirei o foco, quando voltei para os pães, Anastácio não estava mais lá. Acelerei meu carrinho pelas rodovias do mercado, procurei e procurei. Numa bodega seria tão mais fácil!
Por coincidência, eu o conheci numa loja como esta há seis anos. Eu com pressa, ele cedeu sua vez no caixa. Acabei esquecendo uma barra de chocolate ao leite. No estacionamento, guardando as compras, assobiando um sucesso da época, não lembro qual era, tampouco a banda.
- Você esqueceu isso!
Eu vi o chocolate acompanhado de uma mão grossa, grande, brutalmente delicada, percorri o resto do braço, passei pela barba espeça e mal cuidada, reconheci o rosto viril, sem sorriso, o mesmo que minutos antes gentilmente me deixou passar. Alto, forte, mas não definido, cabelo castanho assanhado. Agradeci, sem graça, ele fechou o porta malas do meu carro.
- Prefiro o amargo. – disse sem me fitar.
- Como assim?
- Chocolate. Esse seu é muito doce, enjoa.
- Penso ser exatamente essa a ideia. Adoçar a vida! Leveza.
Depois desta frase ele sorriu pra mim, um sorriso repetido tantas vezes depois. Sim, foi pra mim, tenho certeza de que por mim. Passamos uma hora em cerca de cinco minutos. O único tema foi gostos e sabores. Meu Deus, tão diferentes! Trocamos telefone. Pediu para eu não ligar, ligaria. Não aguentei a ansiedade. Disquei ao chegar em casa. Convidei para sair. Um chopp amigo para falar de amargos e amarguras, doces e doçuras.
Aquela foi a primeira de muitas noites, que se tornaram tardes e manhãs. Um ano e dois meses depois estávamos morando juntos, em meu apartamento. Redecorei todo por causa dele. A cada mês mudava as fotos nas paredes, hoje entendo o quanto os retratos nunca foram devidamente reparados.
Anos rapidamente eternos. Trabalhávamos muito, por isso aproveitávamos o máximo dos momentos juntos. Dos filmes de ação, assistia por ele, às poesias que ele me ouvia ler mesmo detestando os versos. Nossos banhos juntos, mãos ensaboadas percorrendo cada dobrinha do outro. A melhor parte sempre foi dormir, depois de suar e gemer, eu em pedra e polvo sobre ele. Ele incomodado com meus tentáculos, tentando se desvencilhar sem me acordar. Nunca quis me despertar. Saíamos bastante: boates, bares, festas... Anastácio bebendo muito, ninguém conseguia derrubá-lo, bebia de cachaça a whisky, cerveja era igual água. Dificilmente ficava bêbado, no máximo zuado, como definia. Ele não gostava de carícias em público, achava desnecessário, eu entendia, não insistia. É o jeito dele. Mas às vezes, no momento certo, roubava um beijo, ele ria, vermelho, lindo! Andávamos num chão estrelado!
Tínhamos discordâncias e atritos. Qual casal não tem? Porém a primeira vez que realmente brigamos foi quando eu falei sobre filhos. Me disse ser um absurdo, sem lógica, crianças só atrapalhariam. Pra mim, tanto fazia Maria ou João, ele não queria nenhum. Dias de discussão, noites de brigas, noitadas arruinadas às três da manhã, por causa de comentário acerca de uma criança correndo em casa.
Rapidamente tudo foi desbotando. A velocidade da queda é sempre maior. Maldita gravidade! Algumas palavras ou posturas passaram a ser tacitamente censuradas em casa, até a proibição ser parida sem gritos ou sussurros.
Numa manhã, após um café mudo e sem gosto. Anastácio saiu de casa, não se despediu, não deu tchau ou até logo. Beijo de futura saudade era coisa do passado. Ele foi embora e nunca mais voltou.
No mercado foi a primeira vez que o revi depois do “adeus calado”. Desisti da busca, parei ao lado de um freezer de cerveja. Abri, peguei uma long neck, quase não consigo girar a tampa. Consegui. Em segundos diminuí progressivamente o ângulo da garrafa em minha boca.
Minha visão periférica, ou sexto sentido, me mostrou Anastácio se aproximando. Parei a cerveja e o olhei, ele empurrava seu carrinho, me encarava, sua barba era a mesma e seu cabelo ainda necessitava de pente. Não sorriu, nem eu. Comecei a me afogar. Esperança, medo, saudade, tesão, ternura, raiva, carinho... Todas as expressões do amor passaram pelas minhas artérias, sangue não havia mais lá.
Anastácio, sem parar, emparelhou, mirou em mim e disse o que eu precisava ouvir:
- Adeus, Joaquim!

4 comentários:

  1. Este conto me fez recordar a história que um amigo me confidenciou, outro dia, um tanto ressentido, por um término de relacionamento também sem um "adeus". Após ler este conto, não sei se é melhor com ou sem...

    Adorei!

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  2. Escravo que somos das palavras... não bastasse o "adeus calado"!! Ahhh Joaquim... será que a dúvida do silêncio não seria melhor que um "sonoro adeus"???

    Adoro seus contos Júlio, até dialogo com seus personagens... rsrsr

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  3. Ele e eu é dúbio até o "adeus Joaquim" .
    Relacionamento é complexo independente dos envolvidos. Muito bom

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