Muitos
de nós imaginamos que ainda temos 18 ou 20 anos, ilusão destruída pelas dores nas
costas que nos fazem lembrar que já são usadas há algumas décadas, ou os
estalos nos joelhos, sofridos de tantos passos e pulos ao longo muitos
quilômetros percorridos pra se chegar até aqui. Outra coisa que teima em nos mostrar
a realidade é o espelho. Se não fosse por ele, a quantidade de jovens no mundo
seria bem maior, mas lá está o reflexo antecipando o término da juventude.
"Espelho, espelho meu!". Quando estou na rua, sem fitar faces
refletivas, tenho a impressão de ainda ter o rosto que tive há várias voltas da
terra em torno do sol. Mas o espelho, ah o espelho! Esse ser chato, invasivo,
invenção do demônio, me mostra, todas as vezes que o encaro, o prateado de meus
ralos cabelos. Outrora longos, cheios, assanhados e castanhos escuros, que me
fizeram pensar quase a vida toda que eram negros. Pensando pelo lado bom, hoje
é mais difícil estarem assanhados, são poucos para se rebelarem na cabeça, nem
quórum conseguem pra essa rebelião.
Minha barba sempre foi colorida, pode parecer estranho, mas é verdade. Com fios pretos,
castanhos e até uns vermelhos inxiridos que se destacavam em meio aos outros,
por mais que destoassem da cor de minha cabeleireira, combinavam com as sardas
que ornavam meu nariz, até elas me abandonaram com o tempo, devem ter ido
enfeitar a cara de um adolescente qualquer, disputando espaço com espinhas,
cravos e sorrisos fáceis. Hoje, outra cor aparece e se multiplica nos pelos
de meu rosto, a branca. E como são amostrados, estão sempre eretos, de pé, apresentados.
É como se vivessem com a mão pra cima gritando: "ei, olha eu aqui!".
Eu
sempre joguei basquete, ou quase sempre, mas como sou o autor desta crônica,
posso usar a prerrogativa da licença poética pra mentir a vontade. Vou dizer
que sempre joguei basquete e em alto nível. Fui campeão estudantil nas
categorias infantil e juvenil, como isso foi há muitas cestas atrás, não
existem registros nas mídias sociais, a rede social era a praça, a calçada da
casa das paqueras ou os caderninhos com perguntas íntimas, mas isso é assunto
pra outra crônica (prometo).
Comecei
a arremessar a bola laranja quando ainda tinha dentes de leite, e, no que
depender de mim, pretendo acertar uns lances livres mesmo depois de perder os
permanentes. Nessa minha ânsia por infiltrações, não no joelho, mas no
garrafão, continuo me arriscando na quadra, não tenho mais a impulsão ou
velocidade da época do colégio, mas também não sou tão impulsivo,
consequentemente consigo administrar melhor meu jogo, isso é uma forma bonita
de dizer "hoje eu canso".
Quando
bate a saudade, ou a vontade, ou a mão coça, ou o tesão basquetebolístico atiça
a alma... Coloco meus tênis, com amortecedor, já joguei tantas vezes descalço
que ainda tenho cicatrizes nos pés das queimaduras feitas na quadra de cimento
carraspento do colégio estadual de Jatobá. Passo protetor solar no rosto,
coloco um relógio que mede meus batimentos cardíacos, quantos passos dou e a
quantidade de calorias perdidas (tudo mentira, mas se autoenganar é tão bom às
vezes) e vou me aventurar no Parque da Criança, nome apropriado, já que o
ambiente é frequentado por crianças de todas as idades, muitas mais velhas que
eu, essa diversidade acontece inclusive na sem preconceito turma que joga
basquete.
Hoje,
manhã de sábado, mais uma vez saí de casa cedo pra tentar marcar uns pontos,
dar umas assistências (vibro igual uma cesta) e ganhar uns rebotes, dou uns
tocos também, mas é mais raro. Dia desses, depois de um bloqueio, impedi a
cesta, mas fui parar no hospital fazer raio X do polegar direito, o que importa
é que o arremesso não foi convertido.
Antes
de sair de casa, o espelho me deu, duas vezes, ao escovar os dentes e ao
pentear o cabelo, com um sorriso sarcástico, aquele velho recado que insiste em
repetir diariamente. Mas, confiante, olho pra ele, devolvo o sorriso, e cuspo
na sua cara (ou será na minha?): “Espelho, pedaço infame de vidro, você reflete
tudo ao contrário. Quem me garante que o que me mostra é verdade?” Certo da
primeira vitória do dia, amarro os cadarços, pego minha garrafa d'água (já foi
o tempo que saia sem ela) e vou em peito de pombo pra batalha.
No
caminho, dirigindo minha carruagem vermelha, sintonizo rádios que estejam em
minha frequência, escuto músicas dos anos 80. Danço com o pescoço, canto
desafinado (e daí? Ninguém tá vendo), batuco no volante, nem o sinal encarnado
é capaz de parar minha animação protegida pelo fumê dos vidros. Entre cantos e
danças, falo sozinho: "naquele tempo tinha música boa", resmungo com
todo o ciúme típico dos velhos de hoje.
Chego
ao Parque, e, claro, vou me alongar, repito movimentos que aprendi na internet,
nos vídeos diziam que evitam lesões, deve ser verdade, esse povo que não faz as
coisas sabe como ensinar os outros a fazer. Quando comecei a jogar, Nos Tempos
da Brilhantina (nem era, mas quis fazer referência ao filme), alongamento era
só uma forma de dizer que a pelada duraria mais do que o combinado, geralmente
na sexta-feira. Os finais dos jogos, todo mundo cansado, eram sempre os
melhores, já que a proposta de prolongamento vinha acompanhada de uma aposta a
ser paga num boteco qualquer, dávamos o gás que nem tínhamos, quando acabava
todo mundo ganhava, até quem perdia.
Saindo
das reminiscências, já tem uma galera jogando. Vejo um cara, com a cabeça toda
branca, barba no mesmo tom, brinco na orelha, também uso. Penso ao me esquecer
do reflexo: "hoje veio um cara mais velho". E ele joga muito, serve
os companheiros, infiltra, vibra, faz cesta de três, bate bola com uma rara
habilidade, parece ter mais de dois olhos ao encontrar os colegas de time.
A
partida termina. Já tô aquecido, parte pelos exercícios preliminares, parte
pelo sol do verão. Um garoto, de uns vinte e poucos anos, olha pra
arquibancada onde estou, nota que espero minha vez, e diz "o senhor vai
jogar?", inicialmente fico na dúvida se "o senhor" seria eu, mas
não há outro no foco do olhar e do dedo dele, nessa eternidade de segundos,
respondo firme como nos tempos dos jogos escolares: "vou"
Em
quadra, meu joelho não reclamou, minhas costas dormiram tranquilamente, minha
mira estava boa e meu quadril tirou uns moleques pra dançar. Entre um drible e
outro, um sorriso e uma queda que rasga o couro do meu cotovelo, um garoto
grita se referindo a mim; “passa a bola pro coroa”, num ímpeto até eu procurei
o tal “coroa”, me senti meio ridículo ao descobrir que eu procurava a mim
mesmo. Outro boy fez um comentário que entendi como elogio, não sei se essa foi
a intenção dele, reclinado, apoiando as mãos sobre os joelhos, ofegante, suor
reluzindo a luz causticante do sol de fevereiro, olha pro pivô do próprio time
e comenta procurando fôlego: “Como esse véi consegue correr desse jeito?”.
Dessa vez entendi de imediato que “esse véi” era eu. A
penas dei um sorriso de
canto de boca me sentindo vitorioso.
Os
jogos se alternam, os jogadores também. Lá pras dez da manhã, estou esperando
mais uma partida, ao meu lado está o "cara mais velho", sempre
expondo os dentes, num sorriso de adolescente em êxtase. Já tinha me encantado
com sua técnica, agora me fascino na sua aura infanto-juvenil. Enquanto
esperamos nossa vez, conversamos sobre outros assuntos para além do basquete.
Música é sempre um tema legal. Todo mundo gosta de música! Entre um papo sobre
fita cassete e outro sobre vinil, ele me diz comentando entusiasmado sobre uma
canção do Guns in Roses "essa é do nosso tempo". Mas ele não era mais
velho? Não sei mais, o espelho não tá aqui pra me censurar ou me revelar. Meu
olhar fita um espelho real: aquele jovem jogador que se diverte na mesma
proporção tanto ao acertar uma bandeja, quanto ao errar um passe.
Os
Titãs, minha banda favorita, na canção "Caras como eu", composição de
Tony Bellotto e interpretação de Branco Mello, disseram "não vou mais
medir o tempo / não vou mais contar as horas / vou me entregar ao
momento". Pois é, é isso. Amanhã tem mais jogo e espero encontrar vários
jovens, dos dentes de leites aos sorrisos gengivais. E o espelho? Ah o espelho!
A única coisa que posso dizer é: vá se lascar!