segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

O espelho, o basquete e o tempo


                  O tempo passa, a idade chega e muitas vezes não percebemos que estamos ficando velhos, pior, às vezes percebemos que não estamos ficando, já estamos!

Muitos de nós imaginamos que ainda temos 18 ou 20 anos, ilusão destruída pelas dores nas costas que nos fazem lembrar que já são usadas há algumas décadas, ou os estalos nos joelhos, sofridos de tantos passos e pulos ao longo muitos quilômetros percorridos pra se chegar até aqui. Outra coisa que teima em nos mostrar a realidade é o espelho. Se não fosse por ele, a quantidade de jovens no mundo seria bem maior, mas lá está o reflexo antecipando o término da juventude. "Espelho, espelho meu!". Quando estou na rua, sem fitar faces refletivas, tenho a impressão de ainda ter o rosto que tive há várias voltas da terra em torno do sol. Mas o espelho, ah o espelho! Esse ser chato, invasivo, invenção do demônio, me mostra, todas as vezes que o encaro, o prateado de meus ralos cabelos. Outrora longos, cheios, assanhados e castanhos escuros, que me fizeram pensar quase a vida toda que eram negros. Pensando pelo lado bom, hoje é mais difícil estarem assanhados, são poucos para se rebelarem na cabeça, nem quórum conseguem pra essa rebelião.

Minha barba sempre foi colorida, pode parecer estranho, mas é verdade. Com fios pretos, castanhos e até uns vermelhos inxiridos que se destacavam em meio aos outros, por mais que destoassem da cor de minha cabeleireira, combinavam com as sardas que ornavam meu nariz, até elas me abandonaram com o tempo, devem ter ido enfeitar a cara de um adolescente qualquer, disputando espaço com espinhas, cravos e sorrisos fáceis. Hoje, outra cor aparece e se multiplica nos pelos de meu rosto, a branca. E como são amostrados, estão sempre eretos, de pé, apresentados. É como se vivessem com a mão pra cima gritando: "ei, olha eu aqui!".

Eu sempre joguei basquete, ou quase sempre, mas como sou o autor desta crônica, posso usar a prerrogativa da licença poética pra mentir a vontade. Vou dizer que sempre joguei basquete e em alto nível. Fui campeão estudantil nas categorias infantil e juvenil, como isso foi há muitas cestas atrás, não existem registros nas mídias sociais, a rede social era a praça, a calçada da casa das paqueras ou os caderninhos com perguntas íntimas, mas isso é assunto pra outra crônica (prometo).

Comecei a arremessar a bola laranja quando ainda tinha dentes de leite, e, no que depender de mim, pretendo acertar uns lances livres mesmo depois de perder os permanentes. Nessa minha ânsia por infiltrações, não no joelho, mas no garrafão, continuo me arriscando na quadra, não tenho mais a impulsão ou velocidade da época do colégio, mas também não sou tão impulsivo, consequentemente consigo administrar melhor meu jogo, isso é uma forma bonita de dizer "hoje eu canso".

Quando bate a saudade, ou a vontade, ou a mão coça, ou o tesão basquetebolístico atiça a alma... Coloco meus tênis, com amortecedor, já joguei tantas vezes descalço que ainda tenho cicatrizes nos pés das queimaduras feitas na quadra de cimento carraspento do colégio estadual de Jatobá. Passo protetor solar no rosto, coloco um relógio que mede meus batimentos cardíacos, quantos passos dou e a quantidade de calorias perdidas (tudo mentira, mas se autoenganar é tão bom às vezes) e vou me aventurar no Parque da Criança, nome apropriado, já que o ambiente é frequentado por crianças de todas as idades, muitas mais velhas que eu, essa diversidade acontece inclusive na sem preconceito turma que joga basquete.

Hoje, manhã de sábado, mais uma vez saí de casa cedo pra tentar marcar uns pontos, dar umas assistências (vibro igual uma cesta) e ganhar uns rebotes, dou uns tocos também, mas é mais raro. Dia desses, depois de um bloqueio, impedi a cesta, mas fui parar no hospital fazer raio X do polegar direito, o que importa é que o arremesso não foi convertido.

Antes de sair de casa, o espelho me deu, duas vezes, ao escovar os dentes e ao pentear o cabelo, com um sorriso sarcástico, aquele velho recado que insiste em repetir diariamente. Mas, confiante, olho pra ele, devolvo o sorriso, e cuspo na sua cara (ou será na minha?): “Espelho, pedaço infame de vidro, você reflete tudo ao contrário. Quem me garante que o que me mostra é verdade?” Certo da primeira vitória do dia, amarro os cadarços, pego minha garrafa d'água (já foi o tempo que saia sem ela) e vou em peito de pombo pra batalha.

No caminho, dirigindo minha carruagem vermelha, sintonizo rádios que estejam em minha frequência, escuto músicas dos anos 80. Danço com o pescoço, canto desafinado (e daí? Ninguém tá vendo), batuco no volante, nem o sinal encarnado é capaz de parar minha animação protegida pelo fumê dos vidros. Entre cantos e danças, falo sozinho: "naquele tempo tinha música boa", resmungo com todo o ciúme típico dos velhos de hoje.

Chego ao Parque, e, claro, vou me alongar, repito movimentos que aprendi na internet, nos vídeos diziam que evitam lesões, deve ser verdade, esse povo que não faz as coisas sabe como ensinar os outros a fazer. Quando comecei a jogar, Nos Tempos da Brilhantina (nem era, mas quis fazer referência ao filme), alongamento era só uma forma de dizer que a pelada duraria mais do que o combinado, geralmente na sexta-feira. Os finais dos jogos, todo mundo cansado, eram sempre os melhores, já que a proposta de prolongamento vinha acompanhada de uma aposta a ser paga num boteco qualquer, dávamos o gás que nem tínhamos, quando acabava todo mundo ganhava, até quem perdia.

Saindo das reminiscências, já tem uma galera jogando. Vejo um cara, com a cabeça toda branca, barba no mesmo tom, brinco na orelha, também uso. Penso ao me esquecer do reflexo: "hoje veio um cara mais velho". E ele joga muito, serve os companheiros, infiltra, vibra, faz cesta de três, bate bola com uma rara habilidade, parece ter mais de dois olhos ao encontrar os colegas de time.

A partida termina. Já tô aquecido, parte pelos exercícios preliminares, parte pelo sol do verão. Um garoto, de uns vinte e poucos anos, olha pra arquibancada onde estou, nota que espero minha vez, e diz "o senhor vai jogar?", inicialmente fico na dúvida se "o senhor" seria eu, mas não há outro no foco do olhar e do dedo dele, nessa eternidade de segundos, respondo firme como nos tempos dos jogos escolares: "vou"

Em quadra, meu joelho não reclamou, minhas costas dormiram tranquilamente, minha mira estava boa e meu quadril tirou uns moleques pra dançar. Entre um drible e outro, um sorriso e uma queda que rasga o couro do meu cotovelo, um garoto grita se referindo a mim; “passa a bola pro coroa”, num ímpeto até eu procurei o tal “coroa”, me senti meio ridículo ao descobrir que eu procurava a mim mesmo. Outro boy fez um comentário que entendi como elogio, não sei se essa foi a intenção dele, reclinado, apoiando as mãos sobre os joelhos, ofegante, suor reluzindo a luz causticante do sol de fevereiro, olha pro pivô do próprio time e comenta procurando fôlego: “Como esse véi consegue correr desse jeito?”. Dessa vez entendi de imediato que “esse véi” era eu. A
penas dei um sorriso de canto de boca me sentindo vitorioso.

Os jogos se alternam, os jogadores também. Lá pras dez da manhã, estou esperando mais uma partida, ao meu lado está o "cara mais velho", sempre expondo os dentes, num sorriso de adolescente em êxtase. Já tinha me encantado com sua técnica, agora me fascino na sua aura infanto-juvenil. Enquanto esperamos nossa vez, conversamos sobre outros assuntos para além do basquete. Música é sempre um tema legal. Todo mundo gosta de música! Entre um papo sobre fita cassete e outro sobre vinil, ele me diz comentando entusiasmado sobre uma canção do Guns in Roses "essa é do nosso tempo". Mas ele não era mais velho? Não sei mais, o espelho não tá aqui pra me censurar ou me revelar. Meu olhar fita um espelho real: aquele jovem jogador que se diverte na mesma proporção tanto ao acertar uma bandeja, quanto ao errar um passe.

Os Titãs, minha banda favorita, na canção "Caras como eu", composição de Tony Bellotto e interpretação de Branco Mello, disseram "não vou mais medir o tempo / não vou mais contar as horas / vou me entregar ao momento". Pois é, é isso. Amanhã tem mais jogo e espero encontrar vários jovens, dos dentes de leites aos sorrisos gengivais. E o espelho? Ah o espelho! A única coisa que posso dizer é: vá se lascar!

sexta-feira, 1 de outubro de 2021

Quarta-feira de cinzas


                         Natália e Afonso se conheceram na infância. Vizinhos. Entre suas casas havia apenas um terreno baldio que as crianças da rua usavam para brincar de sete pecados, bila, bola, baleada... o dono não se incomodava, já que as crianças acabavam por não deixar crescerem matos no espaço, mérito dos pés descalços a massagear o solo. Os pais dos dois eram amigos, desses que revezam festas nas casas uns dos outros, viajavam juntos, pediam emprestado sal, açúcar, cebola, martelo, pilha, caneta, CDs, remédio pra dor de cabeça... essas coisas que ninguém nunca devolve! Adamastor, pai de Afonso, bebia uísque quase todo dia, cowboy, segundo ele, qualquer outra coisa estraga o scotch. Nunes, pai de Natália, só bebia leite e sentia fortes dores no estômago. Amélia, mãe de Afonso, não saía da igreja, rezava o terço enquanto fazia compras no supermercado ou passeava na praça. Neide, mãe de Natália, era devota do baralho, do dominó e da porrinha, se fosse numa mesa de bar, melhor ainda. Por isso mesmo os quatro não se desgrudavam adoravam ouvir as aventuras ou lamúrias individuais ou coletivas. Mesmo que às vezes as risadas se transformassem em gritos; as declarações de amor, em promessas de ódio eterno. Mas, nesses casos, a guerra durava só até acabar o café em uma das casas.

Da mesma forma era a relação dos pequerruchos, entre carrinhos e bonecas, socos e rasteiras, fogueiras e enchentes. Ela, de touro, gostava de ser prática, amiga fiel, mandona, disposta a tudo pra ajudar aos amigos, inclusive saber mais dos que eles mesmos sobre o que era melhor para cada um. O garoto, pisciano, emotivo, sonhador, leal e necessitado de alguém pra guiar seus passos. Encaixes perfeitos de um quebra-cabeça.

Quando veio a adolescência, as brincadeiras no terreno baldio (hoje uma casa sombria sem jardim ou janelas, onde nem o vento sopra) deu lugar às tarefas escolares. Natália e Afonso continuaram do mesmo jeito, às vezes rindo nos deveres de história, brigando nos de matemática. Tudo igualmente diferente! Até uma manhã nublada de quarta-feira, quando os jovens retornavam do caminho da escola e, pela primeira vez, o silencio dominou. Talvez as nuvens tenham encoberto o sol pra esconder a timidez do astro-rei naquele momento. A estrada pra casa, que parecia eterna de tanta agonia, acabou muito rápida. Exatamente na hora em que Natália diria algo, Afonso, cabisbaixo, segurando a alça esquerda da mochila, ronronou: “Até amanhã!”.

Porém, no outro dia, Natália não apareceu. Afonso a esperou, esperou, esperou... teve a garganta arranhada por pedaços de suas unhas e perdeu a primeira aula, Trigonometria, uma a mais ou a menos não vai impedir sua participação certa na recuperação. Na verdade, ele não assistiu nenhuma das explicações daquele dia, mesmo estando presente na sala. Soube à tarde, quando chegou em casa, a amiga estava com catapora. Imaginou ela coberta de carocinhos na pele, toda se coçando, tadinha! Duas semanas de distância, o que, nas contas dele, dava mais ou menos cem dias. Sozinho no seu quarto, tentando ler um almanaque do Cebolinha, Afonso descobre o que todos os colegas do colégio já sabem há anos: é apaixonado por Natália.

Finalmente o período de separação findou. Nat, sentada na paredinha do jardim de casa, sorri de olhos fechados absorvendo o sol. Afonso aproxima-se numa correria lenta, compassada, ofegante, relutantemente ansiosa. Tinha muito a falar, mas, como sempre, não conseguiu ultrapassar a barreira do “bom dia!”.

Ela falou sem vírgulas ou pontos durante os vinte e dois minutos de caminhada, parecia ter chegado de uma longa viagem. E foi! Detalhes e minúcias, por vezes constrangedoras. Ele apenas abria a boca vez ou outra, na tentativa frustrada de cuspir o que o engasgava. Inútil. Portão da escola, escadaria, sinal de entrada. Afonso parou, suspirou tão alto que o relógio da matriz congelou para sempre, sua mão gelada molhou o braço de Natália, estava há dias ensaiando, escolhendo e catando palavras:

- Nat...

Os olhos negros e febris de Natália cruzaram o olhar inexpressível e aquático de Afonso, com o dedo indicador ela tapou a boca dele e sussurrou:

- Você fala demais! – Disse dando um beijo no rapaz.

Lá ficaram eternamente agarrados enquanto os fogos iluminavam a cidade, até que o inspetor, sempre estraga prazeres, interrompeu com a ameaça mais clichê possível:

- Vão para sala ou levo pra a diretoria!

Os enamorados saíram em disparada câmera lenta, cinema, mãos dadas. Corações vermelhos, rosas, lilases... coloriam a paisagem preta e branca. Na porta da sala, ele perguntou:

- Foi seu primeiro beijo?

- Tá doido? Já tenho dezesseis! – Disse ela ao se despedir com um selinho e entrar para aula.

O garoto permaneceu estático, boquiaberto, cara de bobo, encantando, decepcionado... tinha sido a primeira vez que beijara. Jamais diria a ela!

Mais uma mudança na vida dos jovens vizinhos: os beijos e afagos nos corredores escolares não demoraram a se metamorfosearem em namoro. Os pais aprovaram de imediato, Amélia já queria realizar o casamento, pensou até na igreja da celebração, Capela de Nossa Senhora das Graças, singela como eles, um recanto de fé e amor...

- Menos, Amélia! Deixa as crianças! – Gritou Neide ao apagar um cigarro na parede.

E assim seguiram os apaixonados, entre sal e açúcar, dominó e uísque. Fizeram natação, fotografia, teatro, artesanato (homenagem a Eduardo e Mônica). Com o tempo a paixão só aumentou, converteu-se em amor, veio o sexo, incrível! Comunhão sexual que alinhava todos os planetas e tirava os cometas de seu curso.

Anos depois, adentraram à Capela de Nossa Senhora das Graças. Afonso de terno cinza, botão de rosa amarela na lapela, suor na testa. Natália empunhando um grande buquê violeta, sorriso maior ainda, vestido branco, véu e grinalda. Amélia foi contra. “Um pecado!”, comentou. Neide mandou a amiga ir se lascar. Dois sins, um beijo infinito! Flores ao céu, champanhe entrelaçada, promessas, juras, felicidade eternizada nos álbuns.

Porém, o “felizes para sempre” pichado no vidro traseiro do carro do noivo não durou muito. Diz o ditado que compartilhar um quilo de sal não é fácil. A amizade continuava, o companheirismo também, mas faltava algo: os planetas deixaram de se alinhar, os cometas nunca mais desviaram sua rota. Cinco anos, dois meses e sete dias após o “eu vos declaro”, o divórcio foi inevitável e traumático.

Seguiram seus rumos. Adamastor afogou as mágoas com um escocês. Nunes, que tinha virado vegano, tomou duas garrafas de café, quase não volta a dormir. A vida seguiu, sempre segue! O globo girou, girou, girou...

Numa noite melancólica de sexta-feira, Afonso sofreu um pequeno acidente doméstico, escorregou no banheiro, bateu as costas no chão, quase morre afogado no chuveiro, nadou até o celular e ligou para emergência. No hospital conheceu Maitê, enfermeira, ariana, com ascendente e lua também em áries. O romance começou quase que na hora do analgésico. Amor dói! Da maca ao altar foi um pulo. Felizes para sempre! (de novo).

Natália, por sua vez, não quis casar, a experiência não a agradou. Foi viver, para além do terreno baldio, da escola, do buquê ou de suas consequências. Namorou uns caras, ficou com outros, paquerou tantos, realizou fantasias e criou outras. Plena, não sentia falta de nada.

Quarta-feira, dia 22 de setembro, início da primavera. Ipês coloridos, girassóis dançando, arco-íris nas praças. Afonso, distraído, hipnotizado por um colibri que consegue voar para trás e ter foco sempre na frente, deixa cair um chaveiro com uma bonequinha abraçando livros. Uma mulher, mais atenta que ele, percebe a queda, aproxima-se, pega o objeto e oferece ao dono. A hipnose se desfaz na troca de olhar, aqueles olhos grandes, jabuticaba, quentes, inconfundíveis. Os dele, mortos, também eram iguais.

- Nat...!?

- Você fala demais!

Sorrisos tímidos, o rubor das faces confunde-se com o vermelho das flores nos canteiros. Seguiram-se perguntas, interrogatório, em meio a passos lentos e sem objetivo. Um café na livraria, conversas sobre autores que nunca leram, silêncios, olhares, lua cheia nascendo no horizonte... há uns anos foram apaixonados. Paixão sempre morre, mas alguns defuntos teimam em ressuscitar. Marcaram um chopp, quase não conseguem encontrar um dia que coubesse nas agendas dos dois, a matemática sempre atrapalhou. O esforço e a vontade ajudaram, o encontro aconteceu. Risos, reminiscências, confissões, reclamações. A noite terminou com vinho no apartamento de Natália. O sistema solar lentamente busca sua melhor formação, o Halley talvez se atrase na próxima passagem pela Terra.

E assim se seguiu por quase onze meses. Natália e Afonso vivendo um romance proibido, intenso, louco, vulcânico. Até que ele, sempre tão calado, difícil de tomar decisões, relutante em tudo, chegou sem ter avisado, mochila nas costas. Bateu à porta e entrou confiante em meio a um olhar descrente dela. Sentou-se, dono do sofá. Disse que tinha saído de casa, queria casar de novo com Natália, amor de sua vida. Ela gargalhou, deitou no colo dele, encolheu as pernas e sentenciou:

                            - Tá doido? Deus me livre! Você quando marido transa muito mal!

segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Bibliografia

                           Na minha infância, quando ainda era um menino de engenho, conheci a moreninha que mudou minha vida, Iracema, fiquei doidinho. A primeira vez que falei com ela, pensei “tudo nela brilha e queima”. Foi na tarde da terceira feira de agosto que nós começamos na libertinagem. Perdemos a inocência em cinco minutos. Éramos a mão e a luva. Ela era minha estrela da tarde. Eu tinha com ela sonhos d’ouro. Eu a chamava de minha senhora e ela me chamava de o anjo. Mas ela começou a descoberta do mundo, fez uma viagem para não mais voltar, soube que se tornou a obscena senhora D, pra mim foi uma navalha na carne, um amor de perdição. Azedou meu riacho doce. Sem dúvida me foi armada uma tocaia grande. Passei a vê-la como bonitinha, mas ordinária. Quase entro em depressão, passei a viver em angústia, pensando “quem me roubou de mim”!

Resolvi, então, ser padre, me tornei o seminarista. Um dia em uma casa de pensão encontrei Clara dos Anjos, diziam que ela era uma mulher obscura, um demônio familiar, para mim, porém, foi a ressurreição. Tivemos bonitas histórias da meia-noite. Os espectros do passado se tornaram fogo morto. Mas infelizmente nosso romance foi apenas um sonho de domingo.

Com isso, sai do seminário. O bispo, Dom Casmurro, que apesar de ser humano demais, não gostou da ideia, quis saber o porquê, fez várias perguntas, foi o santo inquérito, mas nada adiantou, estava decidido.

Voltei para o ateneu em que estudava antes. Algum tempo depois, junto com alguns amigos, éramos seis, formamos os pastores da noite, uma turma que gostava de curtir a vida noturna. Às vezes me lembrava de os dois amores que tive, mas minha vida agora era outra, minha mãe dizia que era a bagaceira. Nós adorávamos usar as máscaras de carnaval. Alguns hipócritas preconceituosos cochichavam quando nos viam “eles não usam black-tie”, mas nós não ligávamos e continuávamos com nossas sinfonias feitas com cavaquinho e saxofone.

Em uma noite na taverna conheci uma mulher casada, Marília de Dirceu, começamos a ter um caso, nossos encontros eram em o cortiço que havia no bairro e em um motel chamado tenda dos milagres. Já que ela era comprometida não podíamos revelar nosso amor, nos conformávamos com o silêncio dos amantes. Acontece que Dirceu descobriu nosso romance. Na hora o que passou pela minha cabeça foi fugir da Via Láctea. O marido enfurecido me encontrou, tive que me defender. Marília se tornou a viuvinha, e eu, o prisioneiro.

 Na cadeia conheci muita gente: Quincas Borba, um homem que se intitulava de o pagador de promessas, um lunático que dizia ser o homem que matou Getúlio Vargas e até uma drag queen que usava um indefectível vestido de noiva e que gritava ser a mulher que matou os peixes, não entendi nada. Lá o que mais tinha eram diálogos impossíveis.

A pior coisa na penitenciária era que ali eu não conseguia sentir duas coisas que aprendi a observar: o tempo e o vento. As primaveras que passei não tinham flores, só espinhos, mas não reclamava, sabia que estava passando por o castigo da soberba.

Certa vez, encontramos um colega de cela pendurado nas grades, se enforcou com um lençol, em sua camisa estava escrito “a morte e a morte de Quincas Berro D’água”, ele gostava desse apelido, alguém ao meu lado gritou: “o que é isso companheiro?”, aí eu disse: “isto é o triste fim de Policarpo Quaresma, espero que tenha melhor sorte em outra encarnação”.

Quando sai da prisão, tentando esquecer o passado, pensei em entrar para a legião estrangeira, mas tudo que via ou ouvia me trazia de volta as velhas memórias do cárcere. Bom, pelo menos consegui um emprego, entrei para uma equipe de vendas chamada de capitães da areia, andávamos pelo país do carnaval vendendo tudo que é bugiganga. Minha função era vender relíquias de uma casa velha, objetos que ninguém queria comprar. Não fiquei rico, mas vivi boas aventuras: descobri as mentiras que os homens contam, encontrei as mulheres que correm com os lobos, conheci os sertões e o grande Sertão: veredas, vi pessoas e suas vidas secas, passei por cidades mortas, me encontrei com cangaceiros, ouvi as vozes da América e a música do Brasil, consegui até, acreditem, ver o sorriso do lagarto. Numa dessas viagens, quando passávamos por uma cidade chamada Pedra Bonita, observei uma dupla de repentistas fazendo desafios, primeiro cantaram as memórias de um sargento de milícias, depois duelaram rimando com as memórias póstumas de Brás Cubas. Ali fiquei alguns minutos e conheci Helena, a filha do diretor do circo, que estava na cidade, ela era linda, tinha um brilho que eu jamais havia visto, parecia uma mulher vestida de sol. Nos conhecemos e iniciamos um namoro. Sai das vendas e entrei para o circo, me tornei palhaço, meu nome era Caramuru.

O pai de helena era um péssimo patrão, morava num grande trailer, enquanto os outros artistas se amontoavam em pequenas barracas. Parecia a divisão casa grande e senzala. Helena também sofria com as atitudes do pai, coitada, era uma pobre menina rica.

Em uma manhã fui informado que Helena tinha sido mandada pelo pai para uma cidade grande a fim de estudar. Novamente fui abandonado. Sai do circo e nas margens do rio piedra eu sentei e chorei. Descobri que há uma gota de sangue em cada poema e que amar, verbo intransitivo.

Depois de ter passado pelas torturas de um coração, hoje, sento na minha cadeira de balanço, fico lembrando minhas histórias sem data, e agora sei que querendo um lugar ao sol vivi o verso e reverso da moeda. Mas não perdi a esperança, afinal, não adianta chorar o leite derramado, sei que para todos existe a hora da estrela, a minha ainda vai chegar, nem que para isso eu tenha que ir viver aventuras em outro solo, sei lá, talvez em Budapeste.

                              

sábado, 17 de julho de 2021

O mercador de sombrinhas

                      Tenho certeza de que se tentasse ganhar a vida no mundo empresarial iria à falência mais ligeiro que carreira de gente com dor de barriga em busca de banheiro. Não tenho tino para os negócios, não sei vender e, às vezes, nem comprar. Mesmo assim, admiro aquelas pessoas que conseguem sucesso no comércio. Conheço sujeitos capazes de vender gelo na Sibéria, areia no Saara e camisa do Palmeiras dentro da quadra da Gaviões da Fiel.

Como não sou um bom negociador, nutro a esperança de ficar rico ganhando na loteria, nem penso na Mega Sena acumulada, é dinheiro demais, não saberia o que fazer com ele. Um dia desses, lá estava eu na fila da casa lotérica aguardando minha vez para fazer uma fezinha, os mesmos números de sempre. Detesto filas (há alguém que goste?). Na minha impaciência: bato com os dedos na face, agito o calcanhar enquanto me apoio sobre o peito do pé; mexo no celular, curio a vida alheia pelas redes sociais, todo mundo feliz; mando mensagens para pessoas que nem quero conversar... vale tudo na tentativa de assassinar o tempo. Observo o movimento no calçadão. Pessoas num constante vai-e-vem. Pressas e preguiças, sonhos e medos, desejos e desprezos, uns cospem, outros sugam. Tudo se movimenta, eu, sonar, capturo cada detalhe.

Vejo um apóstolo de Cristo, vestido numa calça preta de linho, camisa branca amarrotada, sob um paletó cinza, gravata em forca, o suor escorre pelo seu rosto com a mesma velocidade que sua boca prega a conversão dos pecadores. Na mão esquerda a bíblia empunhada feito espada, erguida a acima de sua cabeça, em movimentos de vai e vem. Megafone em punho anuncia, entre chiados, o fim do mundo e a morte dos ímpios. Um palhaço sem óculos, faz propaganda de uma ótica. Cara branca, na verdade borrada, nariz vermelho, peruca lilás, camiseta da empresa e suspensórios amarelos. Moças sem sorrisos entregam panfletos de financeiras oferecendo empréstimos, não parecem se preocupar com os juros ou com a propaganda, querem apenas se livrar dos papeizinhos. Nesses momentos sou solidário, pego todos os folhetos, nunca li nenhum, olho as figurinhas quando tem. Engraxates enfileirados ao lado de um canteiro, aproveitando a sombra de uma viçosa árvore, disputam sapatos e sandálias. Um deles, com flanela no ombro, cigarro entre dedos e sangue nos olhos, garante que deu brilho nos sapatinhos da Cinderela.

Num café do outro lado, senhores alinhados brindam o passado com chopp, saudosos de quando contavam moedas para tomar uma cachaça. Em outra mesa, jovens dividem lentamente uma cerveja, enquanto, sobre livros, sonham. Invejam os idosos do lado, desejosos de ter cédulas para comprar mais uma garrafa ou duas.

Muitos ambulantes vendem de DVD’s piratas, a carregadores de celulares, barbeadores, espetinhos esfumaçados e até mágicas reais. Um deles, com várias sombrinhas penduradas no braço e uma aberta sobre a cabeça faz seu comercial:

- Olha a sombrinha! Não fique no sol, se proteja contra o câncer de pele. Pra não suar e preservar seu perfume. Olha a sombrinha!

Meus olhos, antes rebeldes, se detêm naquela figura. A fila, estática, não anda, ao contrário do negociante, que se movimenta de um lado pro outro, dança com um poste, sobe numa mureta, aborda transeuntes, grita, canta, pula... Ator no palco de um teatro lotado. Vende uma sombrinha estampada com flores a uma senhora sisuda que, com elegância floral, abre o objeto e sai desfilando.

Impaciente, verifico os ponteiros do relógio, estou atrasado! O cara no caixa lambe o dedo para contar dinheiro, depois de conferir se uma nota de cem era falsa. A pregação do apóstolo começa a me incomodar. Meus tênis apressados sem sair do lugar, não podem ser engraxados.

De repente, um vento frio, o céu fecha, nuvens carregadas aparecem do nada. O sol, holofote do vendedor, se esconde. Timidez? A voz no megafone avisa que aquilo é apenas o primeiro sinal. “Arrependam-se!”, grita ele, procurando abrigo. Cai um toró. As pessoas correm em busca de refúgio. Alguns tentam proteger os penteados, maquiagens borram faces. Uma criança, de mais ou menos 70 anos, brinca na água, feliz, tranca os olhos comendo a chuva.

Olho pro mercador de sombrinhas, penso alto: “e agora?”. O camelô, ensopado, relâmpagos em flash, trovões como bateria, sorriso solar no rosto, samba nos pés, e Gene Kelly na alma, continua seu ofício:

                          - Olha o guarda-chuva... 

domingo, 20 de junho de 2021

Artigo 213

ALERTA DE GATILHO: ESTUPRO


Sinto dores nas costas, fadiga nos pés, cansaço na vista... Não sei o que aquela menina viu em mim. Eu, com idade de ser seu pai. Ela linda, meiga. Tinha um namorado da mesma idade que ela. Mesmo assim, eu a observava, sentia que me olhava timidamente, rabo de olho, já fui jovem, sei como é isso. Sempre a via nas áreas comuns do condomínio. Um dia, na piscina, eu estava lendo o jornal, tomando uma água, ela apareceu, pediu licença, perguntou se podia sentar na cadeira vazia ao meu lado. Dando mole, claro. Não fiz objeção. Ela tirou o short e a blusa lentamente, biquíni rosa. Sentou-se com outra amiga. Perguntei se precisava de algo, fez charme ao dizer que não. Não li mais as notícias, aquelas pernas não me permitiram. Vez por outra dava um mergulho, sempre fazendo questão de mostrar sua bunda empinada. Sou vivido, conheço uma oferecida a quilômetros.

Desde esse dia não consegui mais tirá-la da cabeça, minha mulher nunca desconfiou. Jamais dei bandeira, nem ela. A moça fingia me ignorar, mas eu sempre soube se tratar de encenação. No estacionamento, certa vez, acompanhada da mãe, simulou deixar cair uma sacola de laranjas, percebeu minha presença, aproveitou a oportunidade. Ajudei, claro. Ela agradeceu num sorriso sensual, me disse até seu nome, Alice.

Passei a ver vídeos pornôs na internet sempre pensando na imagem da piscina, no sorriso e no olhar que me desejava. Viajava na possibilidade de realizar a vontade dela, saciá-la. O moleque que namorava ela não era homem pra suprir aquela devassidão enrustida, ansiava por um macho de verdade, que pudesse fazê-la realizar suas fantasias, realmente matar seu tesão de mulher, cadela no cio.  A cada dia mais ficava nítido seus olhares em minha direção, mesmo quando eu parava o carro na garagem, ela próximo, no sarro com o corno, gostava de saber que eu me masturbava na penumbra observando, óbvio que sabia, escolhia de propósito o local pra namorar.

Dia desses, eu estava lavando minha pick-up, em frente a minha casa, ela passou, fingindo que fazia caminhada pelas alamedas do condomínio. Tomei coragem, afinal já havia recebido todos os sinais. Comecei com um “boa tarde”, ela respondeu sem parar os passos. Chamei mais veementemente. Parou. Sentiu o momento, assim como eu. Aproximou-se. Falei do carro, último modelo. Ela elogiou a musica que tocava. Que mulher elogia música se não estiver doida pra dar? Compreendi de imediato.

Convidei para ver minha coleção de discos. Desculpa, né? Ela sabia que não passava de um motivo para fazê-la entrar. Como pensei, aceitou. Minha esposa tinha saído com minha filha para fazer compras, a casa seria toda nossa. Conduzi até a biblioteca onde livros, quadros e discos convivem em sincronia harmônica. Ela encantada com as cores e letras, país das maravilhas. Short curto vermelho, cor do desejo, camiseta tie-dye, tantas cores, estava sem sutiã, dava pra perceber os bicos dos seus peitos excitados com minha presença. Ela passava os dedos pelos livros quando a agarrei por trás. Ela se assustou. Surpresa, normal! Estávamos no meio da ficção, por isso criou uma personagem. Perguntou o que era aquilo, blefou pedindo para soltar. Gostei do jogo. Essas vagabundas sabem brincar!

- O que você tá fazendo? – disse enquanto me desejava.

- O que sempre quisemos fazer, só isso, relaxe. – falei babando de tesão.

- Não, por favor...

Mulher quando diz não, quer dizer sim. Não são iguais a nós homens. Sabem fazer charme. Essa mentira dela me empolgou ainda mais. Rasguei as cores da camisa. Ela entendeu, entrou no clima. Atriz, até chorou. Tudo pelo momento. A cada grito ou lágrima, mais me excitava. Se contorceu na falsa ilusão de que não me queria dentro dela. Adorei a atuação. Já passei por isso. Ela, no jogo, fechava as pernas. Tirei o encarnado. Calcinha minúscula, já veio preparada. Uma menina puta. Sempre soube! Subi nela, com todo meu amor, mesmo que esse tipo de rapariga não mereça amor. As lamentações deram lugar a clamores a Deus, gostei. Uma meretriz suplicar aos céus é algo que não se ver todo dia. Num brado ela mandou parar, foi minha deixa, percebi que eu estava sendo pouco dominador. Dei-lhe uma tapa no rosto, foi pouco, dois ou três socos se seguiram, ela calou. Mulher gosta de apanhar. O sangue de sua boca, as lágrimas de seus olhos, os gritos que se seguiram de silêncio (orgulhosa, não gemeu) me mostraram o quanto foi bom pra ela. Gozei duas vezes com ela embaixo de mim, e mais uma com ela no canto encolhida tremendo de prazer.

Depois disso, dispensei a vadia. Ela saiu em caracol e sal. Certamente satisfeita, aquele guri, namorado dela, nunca conseguiu comer como eu. Só espero que ela não fique no meu pé, não quero mais, fiz porque ela pediu. Essas fuleras sempre pedem. Só tenho pena do rapaz, nem sabe que leva chifre, se deu a mim, deve dar a qualquer um.

Elas se mudaram ontem, colocaram a casa pra alugar, com certeza devem ter achado outro lugar com machos viris pra meter nelas, a mãe deve ser vadia igual à filha ou pior. Claro, educação, a menina aprendeu com os exemplos que deve ter visto.

                       Este é meu relato de hoje, poderia contar outros, talvez sobre a ruiva do escritório, a negra que conheci no restaurante, ou alguma das várias vagabundas que encontrei na minha jornada. Mas, no momento, não posso, estou de saída para ir à missa com minha família!

sexta-feira, 7 de maio de 2021

Conversa de casal

 


- Amor! (...) Amor! (...) Cláudio! (...) Cláuuuudiooooo!!!!!!

- Que foi, Joana?

- Precisamos Conversar.

- Também acho.

- Então. Você não me escuta mais.

- Eu tô com fome.

- Cláudio, esquece teu bucho por um minuto.

- Você não esquentou o macarrão, impossível comer. Um minuto ou dois no micro-ondas, não precisa mais.

- Amor, há quanto tempo não conversamos de verdade? Quanto tempo?

- Um minuto ou dois, ora!

- Ontem cheguei estressada da empresa. Você nem percebeu. Dei todas as dicas, e você assistindo TV, bebendo, ainda me pediu pra trazer mais uma cerveja.

- Quero.

- Um estagiário, moleque. Só pode ter entrado lá por amizade, fez uma merda. Quem teve que resolver?

- Acho que tem umas três latas geladas. Vou botar mais.

- Eu. Claro! 

- Caramba. Tem um ovo estragado aqui na geladeira.

- Precisei correr, final de expediente e o guri faz bobagem. Deve ter pistolão, certeza.

- Você prefere tulipa ou taça?

- Consegui contornar, sempre consigo, tudo.

- Taça. Certeza. Só cuidado pra não quebrar, elas formam cacos pontiagudos, sempre me corto pra limpar os estilhaços.

- Mas não consegui chegar cedo em casa, e você, Cláudio, nem notou meu atraso. Nem percebeu a hora.

- Hora? Ora, são nove e vinte e dois. Eita! Vai começar o jogo do Treze, tinha esquecido.

- Isso não foi ontem apenas, ou semana passada. Você nem me nota. Quando não tô perto, tu lembra?

- Se tivesse lembrado teria colocado mais cerveja. Futebol pede!

- Cláudio, me escuta, me ouve.

- Sabe o macarrão? Frio é ruim, o molho fica grosso.

- Grosso, muito grosso, quando não é indiferente.

- É como eu disse, rapidinho no micro-ondas, fica a mesma coisa da hora que cozinhou.

- Filhos. Você nunca quis ser pai, nem se preocupou se eu queria ser mãe.

- Ela não me ligou hoje. Ligou pra você? Sogra ligar pra nora não é comum, deve ser fim do mundo mesmo.

- Não acredito. Por que insisto? Tô falando sozinha. Não acredito!

- Acredite. Ela não mentiu sobre mim.

- Será que dar pra você parar de abrir e fechar a geladeira?

- Acabou o chocolate?

- Estudei, me esforcei, sofri, venci. Levo tudo nas costas. Você só no sonho.

- Boa ideia! Tem uns sonhos guardados aqui. Será que ainda prestam?

- Senta aqui, na minha frente!

- Estragou.

- Clau, esperei seus parabéns...

- Que droga, estavam tão crocantes!

- Ontem fez oito anos de nosso primeiro beijinho.

- De jeito nenhum. Beijinho é doce. Quero algo salgado.

- Essa casa precisa de um cachorro ou de um gato.

- Peixe. Teu copo tá criando peixe. Você não bebe!

- Cláudio Joaquim Peixoto, eu quero o divórcio.

- Joana, e o macarrão?

sexta-feira, 26 de março de 2021

Amor e fome


                     Faz tempo, não irei dizer quanto pra não entregar a idade dos vaidosos envolvidos no fato, mas de lá pra cá (ou de cá pra lá) muitos cabelos já caíram e tantos outros mudaram de cor, consequência do estresse, trabalho, preocupações, genética, os anos são inocentes dessa culpa...

Enfim, em uma determinada e desbotada folha do calendário, soubemos que Suzy, uma amiga nossa, companheira de grupo de jovens da igreja (olha que fofoca, sei, ou sabia, rezar), moradora do sítio Bonfim, município de Carrapateira, fora acometida de um pequeno problema de saúde, nada grave, mas que a impedia de comparecer às reuniões semanais dos Jovens a Serviço de Cristo, pelo menos por um sábado. Júnior, meu irmão mais velho, que tem orgasmo quando alguém, pra agradar diz, que ele parece ser mais novo que eu, resolveu ir visitar a colega de grupo. Acontece que JR namorava Suzy escondido, mas todo mundo sabia. Sabe aquela história de “sei, mas não falo. Vejo, mas não vi”? Era mais ou menos isso. Acontece que a moça morava a 24 quilômetros de distância, sem transporte nem pra pedir emprestado, já que só sabia dirigir carrinho de rolimã (e mal), meu companheiro de quarto resolveu pedir ajuda a Glecio, borracheiro, candidato a padre, líder do grupo e sempre disposto ajudar. O Padeco, como sempre o chamei, aceitou ser o piloto para conduzir o enamorado ao encontro da amada que não sabia de nada. Ofereceu sua motoca para ser a carruagem de condução do príncipe magrelo, nem todo príncipe é transformado em sapo, alguns são grilo mesmo, até cantam. Tudo certo e marcado, a viagem seria no sábado pela manhã. Só que eu, com meu faro investigativo, descobri a aventura e, claro, quis participar.

- Vou de moto. Como você vai? Correndo atrás? – Disse Júnior com aquele desdém comum aos irmãos mais velhos.

- Me viro. – Respondi sem muita segurança, normal aos cancerianos.

Ivonaldo, outro membro do grupo, o Professor Pardal da equipe, consertava tudo, inventava e criava. Uma vez fui a casa dele e ele me mostrou uma luz de controle remoto, nesse tempo acho que não existiam nem luz e nem controle remoto. Além disso, ele tocava, cantava e o principal: pilotava moto. Resolvido. Propus ser o seu garupeiro na trilha ao Bonfim. Ele demorou uns dois ou três segundos pra se animar com a ideia. Calculou tudo: distância, combustível e arrumou a moto emprestada, afinal nenhum de nós dois tinha veículo.

Chegou o sábado, quarteto empolgado com a viagem. Um queria fazer surpresa a amada, outro queria agradar ao amigo, dois queriam apenas aventura sobre duas rodas. Partimos! Buracos, ladeiras e, acima de tudo, muita poeira. Bom demais! Chegamos ao castelo, nosso destino. Fomos muito bem recebidos por Margarida e Titin, como sempre foi a praxe na casa dos França. Até acho que aquele romance escondido era mais público do que os envolvidos imaginavam. Algumas voltas no relógio, xícaras de café e muitos balançados na cadeira de fitilhos brancos, chegou o momento de ir embora, próximo à hora do almoço. Por educação (mentira, era vergonha mesmo) decidimos ir antes de a mesa ser posta. Os anfitriões insistiram. Embora a madame fome já gritasse em nossos ouvidos, recusamos o rango e pegamos a estrada de volta. Parecia cena de cinema: Suzy sorrindo na janela, acenando para seu pretendente, enquanto este, quase quebrando o pescoço, desaparecia, junto com seus escudeiros, em meio à poeira. Mais romântico impossível!

Minutos depois, motos emparelhadas, alguém (não fui eu) disse:

- Petrônio tá no sítio, bora passar por lá?

Petrônio também fazia parte do grupo, era nosso maestro, toca de sino a contrabaixo acústico, espirituoso e dono de grandes sacadas fossem na missa ou numa mesa de bar. Estava visitando os pais que moravam no sítio Currais. Não era caminho, mas era quase, um pequeno desvio de uns seis ou sete quilômetros, nada demais para quem está faminto, sujo, suado e no calor do pingo do mêi-dia.

Topamos a proposta, mas Glecio, sempre sábio e preocupado em não dar trabalho, colocou as condições para que fôssemos:

- A gente passa pelos Currais, mas vamos chegar exatamente na hora da refeição, Tereza vai ficar feliz com nossa presença e vai oferecer almoço. Para não incomodar a gente diz que já almoçamos na casa de Suzy.

Apesar do buraco no estômago, do suco gástrico nos corroendo por dentro e nossas lombrigas, em ato canibal, se comendo por falta de opção, concordamos com a proposta indecente. Pegamos o desvio.

Chegamos aos Currais. Me senti na tela de Mad Max: motoqueiros maus, cobertos de pó, todos numa cor só, motores violentos, olhares curiosos... Do momento da parada ao desligar das chaves deve ter durado uns três dias.

Petrônio, embaixo de um pé de cajarana (ótimo tira-gosto), sentado num tamborete de madeira, acompanhado de uma meiota de cana, toca violão, compondo com os passarinhos. Congela no meio de um Lá Menor ao nos ver chegar. Levanta-se surpreso e satisfeito. Descemos das motos. O pé de cajarana chega balança de felicidade. O músico vai ao nosso encontro, se suja com a poeira que nos cobre. Calçada alta, degraus e degraus e degraus e degraus. Tereza e Alvelino, pais de Petrônio, lá em cima, sorriem esperando a gente escalar aquela montanha.

Cada um tomou uma cana, devo ter tomado mais. Entramos, lavamos as mãos, falamos da vida alheia, tesouras afiadas. Como era previsto, Tereza colocou a comida: arroz de leite, galinha de capoeira, ovo estralado, feijão verde, verduras, queijo, farinha e rapadura pra sobremesa.

- Bora almoçar, meninos! – Convidou, enquanto espalhava sete pratos.

- Já almoçamos, brigado! – Apressou-se Glecio, cumprindo o acordo.

Com água na boca, vazio no estômago, língua nos beiços, já sentando nas cadeiras, dissemos os três em coro:

- Só ele...