sábado, 20 de março de 2010

Amor



Jantar romântico, luz de velas, casal apaixonado. Comemoração de bodas, de papel ou de plástico, talvez de mulambo. Vinho português, tinto seco, preferem ao branco. Pratos granfinos, muito em valor, pouco em quantidade. Restaurante em que se faz necessária a reserva com alguns dias de antecedência. Bodas escondidas, romance secreto. Combinaram que hoje revelariam ao mundo o seu amor.
No ambiente se sentam frente a frente. Por enquanto não houve beijos, carícias. Nem mesmo um sutil pegar de mãos, ainda se excedem na discrição. Apenas olhares, paqueras contidas.
Não é a primeira vez que saem a sós para jantares, almoços, bebedeiras. Mas hoje havia um diferencial, o fim da timidez, o momento da revelação.
O encontro foi idealizado por Virgínia, ela sempre toma todas as iniciativas. Foi sugestão sua o lugar, o horário, o cardápio, e que estava na hora de mostrarem a todos o seu romance. Não era justo um amor tão sublime, uma paixão tão avassaladora, serem mantidos em total sigilo, restritos ao isolamento de quatro paredes, ao aconchego de lençóis cheirosos, amarrotados.
Virgínia chega primeiro, mulher de decisão. É recebida pelo mètre, e conduzida à sua mesa. Sonha nas cenas que provavelmente ocorrerão dentre em pouco. Há quanto tempo deseja divulgar seu amor. Gritar a quem quiser ouvir, e a quem não quiser também, que não tem o que esconder. Pede o menu. Passa os olhos pelas letras, mas seu olhar é distante, olha com saudade para o futuro. Vinho.
- Uma taça?
- Duas, por favor.
- E para o jantar?
- Por enquanto só o vinho.
Não queria escolher o prato. Ela sempre escolhia tudo. Queria se tornar mais democrática em seu relacionamento.
Divaga em pensamentos, agora incentivados pelo vinho. Recorda-se de quando se conheceram, em uma clínica pediátrica, cada qual com uma criança a tira-colo.
- Filho?
- Não. Sobrinho. E essa menininha é sua?
- Minha? É. Minha afilhada.
É pragmática demais pra acreditar em amor à primeira vista, ou ao primeiro diálogo. Mas sabia que algo havia acontecido, como se uma força magnética puxasse aquelas duas pessoas uma para a outra. Encontraram-se outras vezes, não por acaso, em princípio junto com amigos, familiares. João, na época, seu noivo, bom sujeito, fiel, pelo menos até onde ela sabia. Alto, corpo não muito atlético, olhos verdes escondidos por óculos redondos, bom coração, excelente cérebro, intelectual, como diziam os companheiros. Funcionário público de um desses tribunais que existem por aí. Bom salário. Três anos de noivado, queria casar. Ela sempre hesitava, não tinha certeza se era isso que realmente desejava. Ele nunca desconfiou que a noiva sentisse atração por outra pessoa. Atração que se transformou em paixão, mútua, correspondida em proporções de contos de fadas. Não teve coragem de acabar o noivado. Mulher de decisão, cheia de indecisões. Viveu a vida dupla por seis meses. Finalmente, há três semanas, devolveu a aliança. João chorou, implorou, ficou perplexo, se culpou, ameaçou se jogar do viaduto. Não adiantou. E ele não se jogou.
A paquera fica cada vez mais explícita, à medida que as taças são esvaziadas. Já conversam de forma natural e espontânea, não se importam com as pessoas, que, na verdade, parecem não se importar com o casal. Reminiscências amorosas, brindes. Sobre a mesa as mãos vão se juntando, suavemente, como dois adolescentes que se enamoram em sala de aula.
Silêncio. Até a orquestra ao fundo, em sinal de reverência, sossega a melodia. Olhos nos olhos. Não há mais ninguém no restaurante. Lábios nos lábios. Beijo demorado, apaixonado, lascivo. O sinal da independência.
- Amo você. - Diz Clarice.
Júlio César Rolim

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