terça-feira, 17 de julho de 2018

A faca


Sobre a cama está a faca. Lâmina suja de sangue. Um vermelho sem vida. Seu cabo de madeira envernizada está estranhamente limpo. Madeira rígida, fria, insensível à lâmina ou ao que corta seu gume. A luz ainda consegue encontrar uma brecha no rubro para refletir no metal polido, o que deixa a cena ainda mais antagônica. Lençóis brancos de seda confortam a faca, que, de forma injusta e mal-agradecida, mancha de encarnado seu alvor. Cama redonda, na verdade, meio oval, mas no anúncio dizia: “redonda”. Macia, confortável, testemunha muda de paixões, amores, orgias, decepções. Silenciosa, silenciosa mesmo, sem qualquer ringido, mesmo quando dos mais circenses atos lascivos. A faca destoa do ambiente ao seu redor. Quarto espelhado, iluminado, luzes de várias cores, climatizado. Quadros nas paredes, pinturas que retratam preliminares e finalmentes. Geladeira recheada: cerveja, vinho, chocolate, amendoim.

Voltas antes do relógio: homem com a faca em punho olha seu próprio reflexo no aço. Sentado num canto do quarto de frente à porta do banheiro entreaberta. Sorriso satânico solidificado em sua face. Ouve-se o som da água caindo. O homem se levanta vai até o frigobar, é primeira vez que faz isso, desde que chegou há algumas horas. Observa, olhos buscando algo, um prêmio ou consolo. Pega uma garrafa de vinho. Muda de ideia. “Cerveja é mais barato!” Senta-se na cama abrindo a lata. Goles saboreados e saborosos. Criança, solta uma sonora gargalhada em êxtase de prazer.
A faca fora deixada sobre a cama de propósito. Não foi esquecimento, negligência, talvez tenha sido burrice. As cobertas foram esticadas, e a arma branca colocada delicadamente lá.
Pensativo o homem liga o chuveiro olhando para o chão, água vermelha descendo pelo ralo. Mistura estranha. A faca está em sua mão esquerda, toma cuidado para não a molhar. Não quer extinguir marcas. Sai do banheiro, sem desligar o registro. Vai até um canto e senta recostado na parede.
Faca é um objeto com várias serventias: culinárias, utilitárias, agrícolas... Mas não foi usada de nenhuma dessas formas hoje, nem nunca houvera, era uma faca virgem, comprada há pouco tempo em um supermercado. O homem pagou no cartão de crédito e pediu pra embrulhar pra presente. Algumas pessoas dão presentes, mas, elas que fazem uso da lembrança. Neste caso, aconteceu isso.
A camareira entra na suíte. Quase cai pra traz ao ver a faca, sangue, mas, tudo no seu mais perfeito lugar, menos a faca, não era dali. Grito de pavor. Sai correndo. Poucos minutos depois volta com auxílio. A faca continua, parece não se incomodar com os presentes.
O homem toma outra cerveja, duas é um número par, não tomará três. Vai até o banheiro, cantando uma música horrível, desliga o chuveiro. Pega algumas coisas que julga serem suas, coloca-as na mala do carro. Detêm-se alguns minutos na porta da suíte e chorando vai embora.
A polícia faz perguntas. Ao porteiro, à camareira, ao gerente, menos à faca, talvez a única que soubesse as respostas. Não existem câmeras de segurança, é falta de ética, não há testemunhas. Mas, existe uma faca com sangue. DNA. Alguém identifica o carro, mais que isso, descreve o motorista, é categórico:
- Ele tava sozinho.
- Sozinho?
Dias depois os agentes encontram o suspeito. Averiguação.
O laudo do exame de DNA é conclusivo: o sangue é do homem. Ele é liberado. Antes de sair diz ao delegado:
- Minha noiva sumiu!

2 comentários:

  1. Amei...muito bom.fa uma peça de teatro. Bem a lá Nelson Rodrigues.

    ResponderExcluir
  2. Escreveu como uma peça teatral. Tenebrosa... Mas é tenebrosa porque está escrita...No teatro ficaria obscura, acho...

    ResponderExcluir