Sobre a cama está a faca. Lâmina suja de sangue. Um vermelho sem vida.
Seu cabo de madeira envernizada está estranhamente limpo. Madeira rígida, fria,
insensível à lâmina ou ao que corta seu gume. A luz ainda consegue encontrar
uma brecha no rubro para refletir no metal polido, o que deixa a cena ainda
mais antagônica. Lençóis brancos de seda confortam a faca, que, de forma
injusta e mal-agradecida, mancha de encarnado seu alvor. Cama redonda, na
verdade, meio oval, mas no anúncio dizia: “redonda”. Macia, confortável,
testemunha muda de paixões, amores, orgias, decepções. Silenciosa, silenciosa
mesmo, sem qualquer ringido, mesmo quando dos mais circenses atos lascivos. A
faca destoa do ambiente ao seu redor. Quarto espelhado, iluminado, luzes de
várias cores, climatizado. Quadros nas paredes, pinturas que retratam
preliminares e finalmentes. Geladeira recheada: cerveja, vinho, chocolate,
amendoim.
Voltas antes do relógio: homem com a faca em punho olha seu próprio
reflexo no aço. Sentado num canto do quarto de frente à porta do banheiro
entreaberta. Sorriso satânico solidificado em sua face. Ouve-se o som da água
caindo. O homem se levanta vai até o frigobar, é primeira vez que faz isso,
desde que chegou há algumas horas. Observa, olhos buscando algo, um prêmio ou
consolo. Pega uma garrafa de vinho. Muda de ideia. “Cerveja é mais barato!”
Senta-se na cama abrindo a lata. Goles saboreados e saborosos. Criança, solta
uma sonora gargalhada em êxtase de prazer.
A faca fora deixada sobre a cama de propósito. Não foi esquecimento,
negligência, talvez tenha sido burrice. As cobertas foram esticadas, e a arma
branca colocada delicadamente lá.
Pensativo o homem liga o chuveiro olhando para o chão, água vermelha
descendo pelo ralo. Mistura estranha. A faca está em sua mão esquerda, toma
cuidado para não a molhar. Não quer extinguir marcas. Sai do banheiro, sem
desligar o registro. Vai até um canto e senta recostado na parede.
Faca é um objeto com várias serventias: culinárias, utilitárias,
agrícolas... Mas não foi usada de nenhuma dessas formas hoje, nem nunca
houvera, era uma faca virgem, comprada há pouco tempo em um supermercado. O
homem pagou no cartão de crédito e pediu pra embrulhar pra presente. Algumas
pessoas dão presentes, mas, elas que fazem uso da lembrança. Neste caso,
aconteceu isso.
A camareira entra na suíte. Quase cai pra traz ao ver a faca, sangue, mas,
tudo no seu mais perfeito lugar, menos a faca, não era dali. Grito de pavor.
Sai correndo. Poucos minutos depois volta com auxílio. A faca continua, parece
não se incomodar com os presentes.
O homem toma outra cerveja, duas é um número par, não tomará três. Vai
até o banheiro, cantando uma música horrível, desliga o chuveiro. Pega algumas
coisas que julga serem suas, coloca-as na mala do carro. Detêm-se alguns
minutos na porta da suíte e chorando vai embora.
A polícia faz perguntas. Ao porteiro, à camareira, ao gerente, menos à
faca, talvez a única que soubesse as respostas. Não existem câmeras de
segurança, é falta de ética, não há testemunhas. Mas, existe uma faca com
sangue. DNA. Alguém identifica o carro, mais que isso, descreve o motorista, é
categórico:
- Ele tava sozinho.
- Sozinho?
Dias depois os agentes encontram o suspeito. Averiguação.
O laudo do exame de DNA é conclusivo: o sangue é do homem. Ele é
liberado. Antes de sair diz ao delegado:
-
Minha noiva sumiu!
Amei...muito bom.fa uma peça de teatro. Bem a lá Nelson Rodrigues.
ResponderExcluirEscreveu como uma peça teatral. Tenebrosa... Mas é tenebrosa porque está escrita...No teatro ficaria obscura, acho...
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