domingo, 3 de novembro de 2019

Morfeu


Manhã de 10 de outubro, sábado, Ícelo desperta. Espreguiça-se confiante. Levanta, vestido apenas com uma cueca branca. Para em frente a ele na porta do guarda-roupa. Admira-se por alguns segundos, músculos definidos, passa mão pelo cabelo volumoso. Na cozinha, lê as mensagens no celular, recostado no balcão do armário enquanto a chama prepara o café. Sorri, responde alguns recados, ignora outros tantos, pode se dar ao luxo de escolher com quem conversar. Agenda encontros. O dia promete!
Banho demorado, chuveiro quente, a água saúda, abraça e se enlaça ao seu corpo. Enquanto a correnteza saboreia sua pele, ele pensa, calcula cada passo do dia, analisa, já fez as escolhas. Veste-se confortavelmente, simples, o reflexo diz que está bonito. É!
Dez horas, sai de casa, dirige ouvindo rock britânico, batuca no volante, canta sem saber inglês, óculos escuros do retrovisor central. Compra água no sinal, nem estava com sede, queria apenas ajudar os estudantes de engenharia na construção de um foguete para visitar os anéis de saturno.
Sua primeira parada é no escritório em que é sócio majoritário, sábado, mas tinha uma rápida reunião de negócios. Conversa, convence, quarenta e dois minutos depois: tudo resolvido, papéis assinados e a certeza de alguns cifrões a mais em sua conta. Já são quase dez horas
Havia combinado de almoçar com amigos, bons companheiros, alguns de infância, outros dos tempos da faculdade. Bar movimentado. Principal ponto da cidade nas tardes sabáticas. Cinco colegas riem, bebem, se divertem, as vezes mentem. Dionísio é quem mais fala, adora erguer brindes, vira copos como se estivessem cheios de água. Violoncelista, admirado e requisitado por orquestras de todas as partes do mundo, vive viajando para encantar plateias em concertos. Hermes, atleta, não bebe, precisa cuidar da saúde, comenta sobre seus títulos, aliás, muitos. Vitórias suadas, fruto de empenho e disciplina. Páris, o mais jovem do grupo, bebe pouco, fala apenas o suficiente, geralmente observa o que há a sua volta, paquera com as mulheres das mesas próximas, mesmo as acompanhadas. Elogia os feitos dos amigos e quando comenta de si, sempre tem uma nova história de conquista, não dá muitos detalhes, mas seus olhos queimam de paixão por todas que passaram por sua vida. Prometeu, herdeiro de um império da indústria, criou e mantém uma fundação assistencial e de pesquisa, gasta fortunas ajudando causas humanitárias, forte candidato ao Nobel da Paz. Ícelo gargalha, brinca, aconselha, aprende...
O garçom entrega um pequeno papel, escrito em tinta rosa um número de telefone. O mensageiro aponta para a remetente: uma morena alta, sentada sozinha ao fundo, sandália amarela, vestido curto preto, batom lilás, cabelo liso, solto com cachos em rabo de cavalo. Acende um cigarro e sopra um beijo em bolha de fumaça. Ele salva o número, pensando na lista de prioridades. Amanhã mandará uma mensagem de bom dia, quem sabe faça um convite. Amanhã, hoje já tem compromisso.
Os amigos passam o resto da tarde juntos. Dionísio fica bêbado, nenhuma novidade. Fala alto, chama a atenção, conta piadas, se mete nas conversas das mesas vizinhas, ninguém se incomoda. Continua com brindes, desta vez em pé, olhando para todos no boteco:
- Proponho uma homenagem às intrigas, para valorizar as amizades; aos desamores, para se agarrar aos amores; à sobriedade, para lembrar da necessidade da embriaguez; ao perdão, para que nunca deixemos de pecar; homenageio cada pessoa desconhecida aqui presente, porque não sentirei falta de vocês, nem vocês de mim, mas este momento ficará gravado nas memórias; ergo meu copo em homenagem à homenagem: saúde!
Alguns riem, outros fingem (apenas fingem) ignorar, copos e taças são levantados, mãos se juntam em aplausos, muitos respondem ao brinde:
- Saúde!
- Tim tim!
- Irruuuuuuu!
- Viraaaaa!
Hermes, empolgado com o discurso, vira uma dose de cana, colocada há cinquenta e sete minutos por Ícelo. Páris brinda com um casal sentado ao lado, troca sorrisos com a mulher enquanto o marido dela, sonolento, tenta se enturmar com os cinco amigos. Mais tarde Páris, solícito, daria uma carona ao casal. O homem cairia bêbado na cama, a esposa subiria ébria no novo colega. Prometeu se diverte enquanto observa tudo ao seu redor, aconselha Páris, abraça Dionísio, convida Hermes a se engajar nas suas causas, faz confidências a Ícelo.
A turma se despede junto com o sol. Flashes, braços, dentes, mãos. Ícelo volta para casa, precisa se preparar para a noite. O repertório é o mesmo, o volume não. Divaga. O carro é um avião cortando o céu vermelho, lentidão-veloz. Casa, água, toalha branca, macarrão, borrifadas, roupa azul, relógio adiantado, quase dez horas.
Marcou de se encontrar com Hebe numa boate. Ela chega dez minutos antes dele, pede um drink verde para abrandar a espera. Balança os ombros no ritmo da música. Ícelo chega iluminado, Hebe cruza sua retina, deslumbrante. Se conheceram num shopping, estavam na mesma festa de aniversário de criança, sobrinha de Hebe, filha de um amigo de Ícelo. Conversaram na fila da pipoca. Festa chata, palhaço sem graça, nem beijinho tinha. Fugiram para um barzinho na praça de alimentação.
Na boate dançam, chamam a atenção, embalos de sábado à noite, entre uma música e outra fazem novas amizades. Ela vai passeando pelas cores dos drinks, ele flutua, paira e observa a todos de cima. Aterrissa nos lábios molhados e vermelhos de Hebe, sozinhos no salão, o brilho frenético das luzes vai se metamorfoseando em suavidade, velas acesas, o pianista toca uma canção, enquanto o garçom traz duas taças e champanhe.
Saem da boate, não cabem mais lá. O destino é o apartamento dele. Vinho no gelo, música no ar, terra longe dos pés, fogo nos lençóis. Quimera, a gatinha, observa de cima da estante, ao lado de um exemplar de Odisseia, todos os movimentos dos humanos, lambe as patas, ronrona, sente ciúme. O casal se devora, suor nos rostos, sangue nas unhas, trombetas e arpas em coro, lento, aceleração, até a total calmaria da respiração.
Na cama. Cobertas bagunçadas, cobrem um homem desnudo. Segundo sábado do mês de outubro, Ícelo quebra o despertador que insiste em tentar acordá-lo.

domingo, 29 de setembro de 2019

Data venia


Quando iniciei na advocacia sonhava com o glamour dos tribunais, os  microfones da imprensa em meu rosto à espera de uma declaração acerca de uma polêmica e que virasse manchete na primeira página. Defesas orais transmitidas em tempo real, minha eloquência vista de perto e ao longe. Quem sabe um caso ou dois (eu queria três, gosto do número) em que atuei ganhasse tal repercussão que virasse filme, dramas jurídicos sempre são sucesso. Na película, o jovem advogado defendia com maestria um injustiçado. Preso, sem perspectiva, o réu passeia entre o conformismo e a revolta, o desejo de vingança e o anseio pela liberdade, o bacharel sereno, sonhador, tenta orientar o cliente a fazer o que ele considera melhor para o desfecho do processo. Teria lágrimas entre grades, risos num parque de grama verde, uma paquera mal resolvida com a estagiária tímida, o despertar da tese libertadora de defesa num momento inusitado, talvez sentado depressivo no chão do banheiro chicoteado pelo chuveiro, ou depois de ouvir um bêbado (personagem sem nome, como na vida real) despejar sua filosofia etílica na minha cara do “doutor”. Roteiro clichê, eu sei. E daí?
Mas não aconteceu assim, o brilho foi apenas nos meus olhos, não houve filme, apenas algumas novelas, sem final, afinal eles sempre são felizes! Num dos capítulos, cômicos ou dramáticos, numa manhã de sexta-feira, estávamos, eu e meu sócio (melhor advogado que eu), em nosso escritório, uma bela e organizada sala situada no primeiro andar de um edifício sem elevador, quando uma senhora adentrou direto sem nem mesmo parar na antessala da secretária. Não tínhamos secretária mesmo. Queria nos contratar para defender seu filho, detido por não pagar pensão alimentícia. “Tadin não merece tá preso”, dizia ela enxugando as inocentes lágrimas maternais. Explicamos os procedimentos para resolver a situação. No meio da conversa o telefone tocou (coisa rara, inclusive), era mais um pedido de socorro por inadimplência alimentar. A ligação vinha de São Paulo, mas o réu estava encarcerado na delegacia de São José de Piranhas, no Sertão da Paraíba. Duas causas num dia, havíamos ganhado na loto, duas numa semana, as vezes num mês, já era motivo de comemoração: “Vamos conseguir pagar o aluguel”.
Depois dos fogos, aceitamos as questões. Começou a correria, afinal era sexta e queríamos, para mostrar serviço, libertar nossos clientes antes do sábado. Traçamos as estratégias, me empolguei como se as lentes estivessem cobrindo os episódios. Telefonemas, fax, persuasão, redação, protocolos, espera...
Sem me ater aqui a detalhes técnicos (pra que, né?) conseguimos que o juiz liberasse nossos dois constituintes. Lá estou eu, por volta das oito da noite, feliz e satisfeito, sentado no sofá da delegacia esperando o oficial de justiça trazer os alvarás de soltura. Gravata vermelha folgada no pescoço, camisa azul com as mangas dobradas até o cotovelo, pernas cruzadas, me sentia o dono do mundo, uma vitória contra o tempo. Conversava descontraidamente com o agente e o delegado, estava finalmente no mundo do direito, a fama e o reconhecimento não demorariam a vir.
O oficial de justiça, suado, chateado por trabalhar na sexta a noite, entra na delegacia, dá um “boa noite” com gosto de “vão se fuder”, trazia nas mãos as asas para meus dois constituintes. Acontece que nessa sexta o magistrado deve acordado inspirado e prendeu três cidadãos por inadimplência de pensão. Dois deles nos contrataram. Foi esse terceiro que viu seus efêmeros companheiros de cela irem embora sorrindo e me prometendo uma cerveja (opa!)
Eu estava feliz, sentia que podia fazer qualquer coisa. Parei na frente da delegacia, ri para mim mesmo. Olhei pros lados, não havia ninguém na rua, mesmo assim, todos olhavam pra mim. Folguei ainda mais a gravata, puxei a camisa de dentro da calça, estralei os dedos, subi na minha moto e fui embora: vento na cara, satisfação no ego, fantasia no futuro...
Fui para casa de uma amiga, comemoração de aniversário, namorada e amigos me esperavam. Desfilei ao entrar, deslizei para chegar em nossa mesa. Meu sorriso vitorioso estava até nas minhas orelhas. Ergui brinde, a mim, claro! Ninguém me olhava, mas, na minha cabeça, todos falavam o quanto eu fui foda, o primeiro passo para todos os holofotes advocatícios.
Algum tempo e muitas cervejas depois o irmão da anfitriã me chama dizendo que há uma mulher procurando pelo “doutor” lá fora. O álcool me empolga ainda mais, já imagino que será uma nova causa, algo fantástico, aquele momento em que a imprensa vai me procurar, se engalfinharão por uma exclusiva. Meu pensamento a mil, meu sangue a cem, o coração em samba, alma nem sei onde estava.
Fui encontrar a mulher na calçada da casa, ao chegar, ela estava num pé e noutro, pra lá e pra cá, nervosa, apertava os próprios dedos, mordia a boca, tropeçava nela mesma. Cumprimentei, ela não respondeu, foi logo dizendo, ao lançar um olhar sobre o ombro:
- Você é o doutor?
- Acho que sim. – Respondi já perdendo toda a segurança de outrora.
Ela colocou o dedo no meu nariz, inchou igual cururu no sal e gritou:
- Quero saber por que você foi na delegacia soltou dois caba que estavam lá e deixou meu macho preso.
- Calma, senhora, não tô entendendo o que tá acontecendo. – Eu disse meio atordoado pelos copos e pelo ouvido.
- Você foi na delegacia – enfatizou quase furado meu olho como o indicador, fiquei feliz por não ser o médio – e soltou dois caba que estavam presos. E deixou meu macho lá. Porque aquela rapariga da mulher dele botou o bichin na cadeia.
- E a senhora é o que dele? – perguntei sem saber se aquilo era real ou alucinação.
- Sou a mulher dele. A mulher assim, no sentido de mulher, porque a mulher no sentido de esposa é outra. E essa rapariga da mulher dele, pra deixar ele longe de mim, mandou prender.
O mundo gira, pra mim, nesse momento, roda ainda mais veloz, fico tonto. Cadê os flashs? As poses? Ela enche o peito, percebe minha fraqueza, risca o dedo no chão, na chama me aponta e brada:
- Por que você soltou os outros e deixou meu macho preso?
- Porque eles me pagaram. – Eu disse na convicção de que receberia o fiado.
- E tem que pagar!?
- Tem.
- Então tá bom. Os filhos são dele, né? Depois ele sai.
Ela saiu sem se despedir. Eu? Nunca mais advoguei!

domingo, 25 de agosto de 2019

De olhos fechados


A água do chuveiro massageia e tortura sua cabeça, sentada no chão do banheiro, olhos fechados, mente em repetição, ralo em círculo levando o que é impossível esquecer. Queria voltar, talvez tentar de novo, não podia, nunca se pode. Derrete no gelo do inverno serrano, ducha fora da tomada. Suas mãos passeiam pelos azulejos, pernas meditam, cabelos abraçam os seios, olhos fechados!
Todos os seus homens desciam em redemoinho, maremoto. Nenhum deles merecia escapar da correnteza, um talvez, mas este não quis ficar. Histórias de paixão momentânea, amores que se diluem no alívio da respiração ao se recuperar do ofegar. Não há sabonete ou shampoo, sem necessidade, a lavagem é mais leve e natural.
O último deles, maior arrependimento, egoísta, incompetente, acreditava que seu pênis era a coisa mais importante do mundo, uma varinha mágica que podia satisfazer todas as mulheres quando despejava seu prazer unilateral sobre elas, lambuzando-se de júbilo num sorriso saciado e de “missão cumprida”. Soube que ele se vangloriava por fazer todas chegarem ao ápice, orgasmos. Dizia aos amigos, enquanto passava a mão nos cabelos bem penteados, que nenhuma mulher o esquecia porque fazia delirarem conscientes. “Tadinho”, pensou ao apertar com raiva os próprios seios, suas mãos eram melhores que as dele. Mentiu pra ele quando ouviu a pergunta “foi bom?”, ele de pernas passadas, fingindo gostar de cerveja, dono da situação. “Não, não foi bom” ela repetiu várias vezes na cachoeira do box, de modos diferentes, inflexões, intenções diversas, como se procurasse o jeito certo de cuspir a verdade n’aquela barba ridiculamente desenhada.
Quase imóvel, frio, ebulição na cabeça, calor! O melhor deles era tão inseguro de seu sexo que chegava a constranger. “Se garante, porra!” pensava após gozar e ver os olhos penosos dele a quase se chicotear. Ela delirava nos braços firmes do moço, tremia num beijo na nuca ou numa mordida de lábios, um simples olhar... Mas ele também era insuficiente, sua vulnerabilidade foi até charmosa no início, mas passou a incomodar, insuportável. Como seria bom a virtude de um juntada às qualidades do outro, dos outros, um quebra-cabeça, um pedaço de cada: o homem ideal!
Coloca as mãos em concha próximo ao ventre, piscina,  olhos sempre fechados, apenas sente a água escorrer, ainda sentada, voa, lembra do ex-noivo que escrevia poesia, fazia declaração em rede social, flores e violino num almoço de dia dos namorados, ela devolveu o anel no dia 13 de junho, não suportou o clichê. Sua mãe quase morre, perdeu o genro ideal, genro, não marido. O choro da quase sogra não surtiu efeito, os pedidos das amigas não foram suficientes, o rapaz era bonito, inteligente, sensível... insensível ao que ela sentia. Foi se bronzear no dia 14, queria apagar a marca na mão direita.
Sorriu cantarolando ‘Folhetim’, abre as mãos ensaiando uma coreografia sentada. O telefone, lá fora, toca, talvez algo importante, não escuta, canta alto, olhos fechados, sente cada gota no seu corpo. Pensa em Alfredo, Breno, Clóvis, Daniel, Evaldo... Cada um pensando que “pegou ela”, foram presas, descartados pela conveniência dela ou incompetência deles.
Recosta-se na parede, a água continua a cair, lembra-se de Luíza, sua amiga, a única pessoa que a entende, há uns dias dormiram juntas, bêbadas, fim de festa, nunca se sentiu tão acolhida, à vontade, sonhou... Enfim abre os olhos!

domingo, 2 de junho de 2019

Aos outros!

- Seis meses!
Foi a frase do doutor Graciliano Alfredo, médico renomado, fama de nunca ter errado um diagnóstico. Frio, metódico, dedicado ao ponto de se preocupar muito mais com a doença do que com o paciente. Gostava de curar, mas preferia uma descoberta, dava alta com a mesma carranca de quando desacreditava um doente. “O melhor de todos!” diziam alguns parentes de quem superou males graças à sua competência. “É chato, um porre, mas não quero para amigo.” Alardeavam outros justificando a procura por uma consulta.
Augusto, o homem sentado a frente do médico, sentenciado com meia dúzia de meses antes de beijar a morte. Há mais tempo que isso perambula de clínica, em hospital; de raio x, em tomografia; de agulhas, em gotas... nas imensas filas ou nos fundos sofás de sala de espera, ouviu tantas histórias, lamúrias, choros e vitórias, que não sabia mais diferenciar as lágrimas.
O médico olhou todos os exames, uma pilha, releu suas anotações, subiu e desceu na tela do computador, óculos na testa, outros no jaleco, nenhum nos olhos, não teve dúvida, nem receio. Nunca foi homem de medir palavras, pra ele “a verdade é a verdade” mesmo que doa. Ligou a contagem regressiva, cada minuto a passar significava a aproximação do fim.
Augusto não questionou, nenhuma pergunta, observou o movimento nos dedos do doutor, nervosos, viu seu semblante mudar, decepção pela falta de pranto, drama, na visão de Graciliano.
- Tenho recomendações, exigências para você poder viver melhor. – Disse, limpando os óculos, que não usara, num lenço verde.
- Por seis meses?
- Sim.
- Não morrerei se cumprir sua lista?
- Não se trata disso, falo de saúde.
- Eu de vida. Esqueça doutor, não vou fazer regime pra minhas botas estarem mais limpas quando as bater.
- Seis meses é máximo, deixe de ser burro, se não se cuidar será menos!
- Tenho quarenta e um anos, de abril a setembro, tanto faz se em julho. Escuta, sabia que me diria isso, sempre soube, antes mesmo dos incômodos, sonhei com esse dia. Trouxe uma garrafa...
- Garrafa?
- Vinho, chileno, dos baratos é o melhor. Tinto. Tá aqui na mochila.
- Você não pode beber, muito menos aqui.
- Chame a polícia ou o enfermeiro, mas eu só trouxe duas taças. – Disse colocando os cálices sobre a mesa.
Rosca o saca-rolha, o médico não acredita no que vê. Augusto fala sobre o processo de produção do vinho, já foi sommelier, garçom, produtor de uvas... Abastece lentamente as taças, coloca a garrafa próximo à réplica de um crânio humano, ergue seu copo em movimentos cilíndricos.
-  Aos outros!
O líquido é entornado com sabor, Graciliano dá um tímido gole, perplexo.
- Já sabia – fala o paciente – Vim comemorar, não a notícia de hoje, mas as de ontem, anteontem, desde quando não tinha agenda ou relógio, ou quando fiz questão de rasgar as páginas e parar os ponteiros. O que importa não é se vou morrer, mas se eu vivi!
Augusto se levanta, taça na mão, observa os diplomas e quadros nas paredes. O médico relaxa na cadeira vermelha, coça o queixo, dá outro gole, maior. Havia um estudo enrustido, quase telepático, entre cientista e cobaia. Mais gole, copo seca. O paciente volta pra próximo à mesa, levanta a garrafa, quase seca, finaliza na taça de Graciliano.
- Tenho outro, argentino. – diz Augusto abrindo a bolsa.
                       - Talvez um ano!

sexta-feira, 17 de maio de 2019

Afrodite e eu


Caneta e papel, ideias e reflexões, a ficção cria realidade, da verdade surge a mentira... caneta e papel... a brancura vai sendo coberta de azul, palavras, emoções, lágrimas, risos.
Afrodite, depois de uma noite de insônia, acorda. Afrodite, nome clichê, mas foi assim que a batizei. Levanta sonolenta, duas toneladas, quarta-feira, não podia contestar os ponteiros. Marido em sono de porco, filha como um anjo. Mais tarde, antes do café esfriar os acordaria. Penso se a mulher é loira ou morena, deve ser ruiva, não natural, vermelho nos fios, queria vinho no sangue. Toma leite olhando a água ferver, encostada no balcão do armário pensa como seria excitante a diferença se pudesse tê-la. Pão, queijo, ovos mexidos, todo dia, nem a textura dos ovos muda, a padaria também não “é muito boa!”.
Sai de casa, pés firmes, passos indecisos. Óculos escuros para amenizar a luz e alumiar o charme. Descrevo seus passos, cada letra um pé, um olhar. Para de frente a uma lanchonete, observa os clientes no café da manhã: saboreio um pão com mortadela e um suco de cajá, sem leite. Ela me olha, paro os dentes. Paquera? Não. Talvez revolta: o que você fez comigo? Sem tirar os olhos pego um guardanapo e rabisco algo, quem sabe um futuro texto. Ela sorri, quero chorar, um aceno, finjo não ser comigo, mordo o sanduba, ela some, engasgo, tapas nas costas, lápis borra a ideia.
A moça continua, parece sonhar, ou prevê, como será seu futuro. Para na faixa de pedestres, a luz acende, seus olhos castanhos ficam verdes, desliza no asfalto. Parado no sinal, buzino, grito uma cantada infame qualquer, não fui ouvido (ou ignorado mesmo), ela segue imponente. Deveria ter escrito um atropelamento, seria mais interessante. Antes da ambulância chegar, um homem qualquer, talvez eu, correria em seu socorro, acudiria ela na tentativa de sufocar sua dor, sangue na pista, uma paixão brusca que se iniciaria. No hospital, próxima a alta, um beijo suave após um sublime tocar de mãos. Mas não foi assim, deixei ela passar.
Prossegui a caminhada, parei numa banca de revistas, encantada com as capas dos gibis de super-heróis, mais mágico que as adaptações do cinema. Lembrei do idiota que buzinou me chamando de gostosa, carro vermelho, nem olhei, mas vi sua aliança ao acenar. Não interessa, prefiro saber se o Flash ganha uma corrida contra o Superman.
Afrodite olha o relógio, sete e trinta e quatro, percebe que não pode se demorar nos quadrinhos. Sacode o cabelo e sai apressada. Não me contenho, prometi a mim mesmo que não faria isso, fiz. Liguei. Ela vê meu nome na tela do celular. Não atende. Insisto. Duas, três, na quarta ela atende:
- O que você quer?
- Você! Nós.
- Não há nós!
- Não há eu sem você. Somos um!
- Não somos. Nunca fomos. Vá se foder!
Não fui! Também não escreverei todos os desaforos que ela disse antes de desligar. Moça ignorante, culpa minha, sou o criador! Neste momento quase abandono a pena, esqueço as linhas, não consegui. Preciso saber o destino de Afrodite, não parei por ciúme, possessividade. Minha mulher solta na rua, sem mim.
Um homem baixinho, barrigudo, cabelo bem cortado, barba desenhada, camisa amarela, bermuda branca, sandálias de dedo, filho da puta, finge olhar o telefone para esbarrar nela. Desculpas, cumprimentos. Não precisava ela dar o número, mesmo assim permiti. Após sorrisos se despedem, ele olha para trás, ela não. Imponente. Dou outra mordida no sanduíche de mortadela.
Minha caneta se perde, não alcança Afrodite, ela é superior à minha criatividade, tento controla-la, não posso, ninguém pode. Não a tenho, queria possui-la, num quarto ou canto de rua, câmeras de segurança em flagras de uma masturbação explícita.
Sua jornada não cessa, há uma continuação mecânica, cênica, do dia a dia. Só eu não sou constate em sua vida, mesmo sendo a única realidade que ela conhece. Passa por um grupo de idosos, assusta pombos, gargalha pra mim, choro para ela, enquanto engraço os sapatos e olho o bailar do seu quadril.
Não sei usar a tinta para matá-la. Impotente, incompetente. Ela é linda. Narciso. Mesmo assim, ao pensar sobre um crime, desfilo na rua exibindo meu cabelo vermelho ao vento.

quarta-feira, 17 de abril de 2019

Travesseiro branco


- Tenho outra!
Ouvi Fausto me dizer isso enquanto acendia um cigarro sentado no pufe, vestido com uma cueca branca. Pernas passadas, pose dominadora, queixo erguido, fumaça saindo do nariz, ar de riso em toda sua serenidade. Vitorioso. Lambe os lábios como se ainda saboreasse a frase. Olha para cima, espelho de teto, admira sua barba bem feita, cortada numa dessas barbearias da moda com cerveja e sinuca, não entende de cerveja e nunca ganhou uma partida encaçapando bolas. Ridículo, sentado no rosa, sua barriga fica mais evidente, devia fazer exercícios, comer menos, come tão mal! Riu em meus pensamentos “como ele não sabe comer”.
Cada tragada uma nova pose, varia o olhar sempre voltando para mim, queria ver minha reação, minha rejeição ou resignação. Permaneço imóvel, totalmente nua, abraçada ao travesseiro branco, testemunha muda de tantos gritos, sentada no centro da cama redonda, lençóis de seda (mentira, imitação barata, mas no anúncio dizia “seda”). Pernas entrelaçadas, quase meditação, olhos fixos nele. Levanta, vai ao frigobar, pega duas cervejas, coloca uma ao meu lado, não oferece.
- Geladíssima! – Fala ao dar um gole do tamanho do seu orgulho. Continuo na mesma posição. Não é a bebida que está gelada! Vai ao banheiro, tenta desfilar em cada passo. Escuto assobios misturados ao som da urina no vaso, descarga. Uma década de namoro, me chamou aqui dizendo que tinha uma surpresa, pensei que me pediria em casamento, anel de ouro, quem sabe pedras, uma para cada ano de sofá. A cilada foi outra.
Chegamos há cerca de duas horas, um pouco mais, clima romântico no início. Beijos suaves e demorados, tirou minha roupa delicadamente, cada peça uma cena, um suspiro. Lingerie lilás, apreciada eternamente, houve quase uma censura em tirá-la, como se não conhece o que havia por baixo. Uma alça do sutiã abaixada enquanto beija o pescoço, a outra quando aperta a bunda, os seios caem em seu peito que logo se torna boca. Gemo, aperto sua nuca, as mãos grossas, ásperas, passeiam nas minhas costas, viajo, saio dali. A suavidade é substituída pelo desejo animal, sou jogada na cama. Cai sobre mim com força, o reflexo acima mostra vermelhos e amarelos, me encaro no teto, apenas a mim. Unhas bordôs arrancam rubro de sua pele, me chama de vadia, pede pra chamar de macho, não atendo. Tapas em meu rosto, fortes, mãos no pescoço, sufoco, não seco, tesão. Para de mexer, ordena:
- Diz que sou corno.
- Corno!
- De novo.
- Corno! O maior corno da cidade, do mundo!
- Isso. Vagabunda!
- Chifrudo!
Os movimentos aceleram, geme mais que eu, olho para mim lá em cima, sorriu lembrando de meus gemidos. Não fala mais comigo, precisa terminar, velocidade, não estou mais lá, talvez nem ele. Para, respira ofegante, me encara satisfeito, dono de tudo. Sempre foi! Vagarosamente tira seu peso sobre mim, minhas pernas abertas, mente fechada, meu coração, hum, nem sei onde estava. Sorrindo vai ao pufe, pego o travesseiro.
- Tenho outra! Não queira detalhes, não darei, não há propósito nisso. Se quiser pergunte, respondo se achar que devo. Ninguém vai morrer!
Retiro o travesseiro, pego a cerveja, não tanto gelada, deslizo pelada no quarto, bebo admirando o quadro de um casal se beijando em sombras, preto e branco, só a boca da moça em vermelho, clichê. Aproximo, dedos alisam sua barba, excessivamente cuidada, aconchego sua cabeça entre meus seios, aqueles que ele nunca soube chupar. Acarinho seus cabelos cacheados, hidratados, digo, com a libertação da verdade e a convicção de quem não gozou:
- Relaxe, Fausto, tenho outros!

domingo, 31 de março de 2019

Fênix

Sentado nas pedras do dique à beira-mar, observa o vai e vem das ondas, sente a brisa, o sol começa a derreter no azul, na cabeça mil pensamentos no mesmo movimento das águas. Camisa vermelha de mangas, dobradas abaixo do cotovelo, calça meio amarela, quase dourada, com detalhes roxos, pés descalços, isqueiro na mão direita, barba por fazer, cabelos assanhados. Horas antes havia matado alguém que amava, com o passar dos anos passou a odiar. Quando decidiu cometer o crime quis fazer com que houvesse sofrimento, uma morte lenta, com muita dor, dando chance para arrependimento (seja no autor ou na vítima), reflexão para todo o feito durante os últimos anos de convivência. Cada passo foi premeditado, medido. Estava convicto da necessidade de matar aquela pessoa, já que não conseguia extirpar o amor que sentia por ela.
Brinca com o isqueiro, acende e apaga, passa o indicador pela chama, sorri satisfeito com o oceano, o fogo, o passado recente, a decisão. Ao seu lado um caranguejo anda pra trás, pensa o quanto sempre retornou, mas, agora, não regressaria, nunca mais. Sol vermelho com a metade afogada, vento penteante, maresia doce, areia circulando... O fogo do isqueiro, azul, confusão com o mar, o céu, azul...
Uma vida dedicada a alguém na premissa de que estava certo em tanta devoção, dias e dias tentando agradar uma ilusão, a eterna esperança de que tudo será diferente amanhã. Dormir, quando possível, em geral noites de insônia. Seria possível mudar para agradar, ou ser o que sempre se foi seria mais honesto?
Pessoas passam no calçadão da praia, caminhantes, turistas, namorados, enamorados do mar, paisagens bonitas, fotos, sorrisos, vendedores, artistas e seus sorrisos (verdadeiros ou não), tanta gente interessante, quantos outros invisíveis... Um assassino sentado na pedra, na pedra, à pedra, a pedra. Sem arrependimento e indiferente a todos ao seu redor. Um covarde? Jamais! A morte foi frente a frente, um espelho, todas as verdades e motivos ditos sem cerimônias ou censuras, vítima e executor em surpreendente resignação, nada de culpa, sem ressentimento, compreensão mútua... era esperado! Dias, anos, uma eternidade adiando o que tinha que ser feito. Ele queria matar, não tinha coragem. Teria que matar o amor de sua vida, que sabia, precisava morrer. Uma tortura entre a hora de dizimar e o momento de ver a última respiração daquela pessoa que foi o seu ar. No outro lado do reflexo a conformidade em saber do fim próximo. Sem alarde, nada de pedido de socorro. Pra quê?
O barulho das ondas quebrando nas pedras, supera as conversas na calçada, um sorriso demoníaco surge, prazer em matar, nunca havia matado, sentiu-se leve, abriu os braços, quase asas, uma ave colorida, sua luz tirava o brilho do mar, a lua (substituta do sol) não era nada perto dele, tons de vermelho e dourado cobriam todo seu corpo, se chovesse os raios cairiam, em sinal de reverência, sobre ele, não choveu, não naquela noite.
Planejou durante meses, arrependia-se a cada nova etapa cumprida. Não podia ser de supetão, não, jamais uma morte súbita. Um tiro mataria muito mais ele. Lento, cruel, a crueldade era necessária para se desvencilhar, precisa ver o sofrimento atravessar sua retina, sofrer junto, chorar, chorar até secar os olhos, até a dor se transmudar em sorrisos.
                       A maré sobe. Um mergulho tiraria a última gota de remorso. Um defunto que ninguém sente falta, um assassino-herói, forte. “Merecia morrer”, pensou enquanto tirava a roupa. Lua acima, um casal trepando, coqueiros se descabelando, tênis de marca no calçadão, amigos compartilham um baseado, uma coruja observa, o mar grita, a areia dança, ao longe um violão (ou será guitarra?)... Um homem nu, assassino, convicto, confiante, mergulha no salgado, um banho, batismo, renascimento... Matou, e daí? Mataria de novo! E matará se for preciso, sempre é! O mar levou sua alma, devolveu seu corpo. Horas antes cometera suicídio!

segunda-feira, 11 de março de 2019

A última gargalhada


O palhaço estava velho e cansado, há quarenta anos vivia de cidade em cidade fazendo seus números. Construiu sua vida e família debaixo da grande lona azul e branca do circo “Arjentino”, com “J” mesmo, que, aliás, era uma companhia formada por artistas brasileiros que adotaram esse nome por acreditar que santo de casa não obra milagre. O palhaço se chamava Pimenta, diziam, inclusive, que Pimenta não se lembrava mais seu nome de batismo, havia os que afirmavam que ele fez questão de esquecer, o porquê nunca ninguém soube. Criado no circo, filho de um palhaço e de uma bailarina, neto da mulher barbada e de outro palhaço. Pimenta não queria seguir a carreira do pai, preferia ser policial militar, achava mais interessante, os PM’s eram mais respeitados e até entravam de graça nas noites de apresentação. Todavia, o pai de Pimenta não deu atenção para as preferências do filho e o preparou para substituí-lo, ensinou todos os truques, as piadas, as brincadeiras, os trejeitos, bem, não teve outro caminho, ele se tornou palhaço.
Sua história foi escrita no picadeiro, seus heróis, suas fantasias, tudo foi formado no círculo central circense. Pimenta era um sucesso, a criançada gargalhava, os adultos se esbaldavam, ao final sempre muitos aplausos. Por onde o Arjentino passava o Pimenta ardia, porém nosso comediante não era um homem feliz, nem, tampouco, alegre, era ranzinza, resmungão, mal-humorado. Várias vezes as crianças iam ao circo, fora da hora de espetáculo, para tentar brincar com Pimenta, quase sempre não conseguiam a atenção do ídolo, nas poucas oportunidades que obtinham êxito sempre eram recebidas, como dizem por aí, “com quatro pedras na mão”.
Com o passar do tempo, o palhaço foi ficando cada vez mais áspero, viciou-se em conhaque e não foram poucas as vezes que entrou em cena totalmente bêbado. Jamais foi um apaixonado pela profissão, mas pelo menos era um excelente profissional. No entanto, foi relaxando, perdendo o ânimo e, consequentemente, a graça. O velho Pimenta não conseguia mais arrancar nem pequenos sorrisos do público, quanto mais as gargalhadas de outrora. Isso irritava Pimenta, e Pimenta irritava a plateia, que gritava nas apresentações: “Pimenta nos olhos dos outros é refresco”. O palhaço caiu em depressão. Quando se olhou no espelho, sem maquiagem, viu um velho, doente, alcoólatra, amargurado.
Tomou uma atitude curiosa, já pela manhã pintou a cara, todos os artistas estranharam aquilo, afinal o espetáculo só se iniciaria às vinte e uma horas, mesmo assim preferiram não fazer comentários, tinham medo da reação do velho, que, além de gagá, diziam, estava meio louco.
O que ninguém sabia era que no dia anterior o dono do Arjentino deu um ultimato: se na noite seguinte o palhaço não conseguisse fazer a plateia rir, e muito, seria despedido. Ora, o que seria do pobre Pimenta, velho, doente, e agora desempregado, sem ter para onde ir e nem aposentadoria para viver?
Quando chegou a hora da apresentação Pimenta entrou em cena com uma disposição que não se via há muito tempo, esforçou-se, deu o máximo de si, mas as velhas e repetidas piadas não empolgaram o público. Um grupinho no alto das arquibancadas puxou um coro de vaias. Pimenta ficou estático ante aquela cena grotesca: um palhaço sendo vaiado, não fazendo rir, sendo motivo de risos. Lembrou-se do pai, do avô, sobretudo se lembrou das palavras do patrão. Não hesitou, sacou um revólver, apontou para a própria cabeça, apertou o gatilho. O barulho do disparo fez com que o circo ficasse em silêncio, olhos atônitos, a trapezista viu o sangue do alto, uma menininha derrubou seu saco de pipoca, o cachorro que joga futebol uivou... Mas, logo depois, todos os presentes soltaram uma grande, sonora e verdadeira gargalhada, finalizada com eufóricos aplausos e assobios.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

Suor e flores

De pé em frente ao espelho, corpo inteiro no reflexo. Olhos a se encarar, observa não o brilho castanho das íris, apenas as linhas de expressão, pés de galinha. Tenta esticar com a ajuda das mãos, vira para um lado e outro. Muda o foco para as pequenas cicatrizes da idade ao lado da boca. Faz ginástica facial. “Fico mais velha sorrindo!”. Vestida com uma calcinha lilás, aperta os seios desnudos enchendo as mãos, nota o quanto ainda são duros, tranquilamente pode dispensar sutiãs. Vira-se para olhar a bunda. Embora empinada, o que mais chama sua atenção são os buraquinhos que desarredondam o bumbum.
Divorciada, mãe de três filhos: um estuda no Canadá, através de um programa governamental canadense; outro preso acusado de estuprar a namorada de 14 anos; a mais jovem mora com o pai. Aos 52 anos vive na companhia de uma gata dengosa e de um pinscher nervoso, que cotidianamente aparece arranhado por unhas felinas.
Vai a academia três dias por semana, disciplinada segue ao máximo o programa do personal. Corre na esteira, faz musculação, mas não é daquelas aficionadas que se matam e se privam de alguns prazeres em busca do corpo ideal.
Engenheira civil, sócia de uma grande construtora, fiscaliza obras, muita responsabilidade, mulher de foco. Quando está no canteiro se impõe, mostra quem manda, exige o melhor de quem está no cimento, nas pedras, no ferro, no sol ou na sombra.
Manhã de quarta-feira, chega na construção de uma escola, obra já adiantada, acabamentos finais, foi, acompanhada de uma paisagista, verificar como anda a finalização da área reservada a um grande jardim, quase uma floresta, exigência do contratante: “a área verde deve ser a mais importante do colégio” disse num riso de mil dentes o dono da rede educacional que encomendou o serviço. Anda pelo espaço, grama, mudas, pequenas árvores trazidas para enfeitar a frente do futuro educandário. A visão da paisagista se enche de emoção ao ver o verde exuberante e harmonicamente distribuído. Já a engenheira procura defeitos, desde o alinhamento das alamedas até sintonia entre a grama e as luzes nos postes.
Mas, nesta quarta, algo em especial chama sua atenção, um rapaz que regava flores. Achou contrastante tanta força e delicadeza juntas em sintonia. Parou próximo ao jovem de cabelos curtos, quase raspados, e braços fortes, sua mão grossa segurava um regador azul, as rosas banhadas se deliciavam, não se sabe se saboreando a água ou desejando o moreno. Barba cheia, não grande, olhos firmes, não havia sonhos em seu olhar. Uniforme amarelo, igual a todos os outros trabalhadores no local, para ela, porém, aquele homem estava de vermelho, quase vinho, como seria bom um vinho! Aproximou-se, viu gotas de suor na testa do moço, imaginou como estaria seu peito suado.
- Bom dia!
- Opa! – respondeu o rapaz parando de regar.
- Como está o trabalho?
- Normal. Agora tô aqui com as flores, também cuido das palmeiras, das frutas... tá vendo aquelas árvores ali? Daqui a uns anos aqui vai tá cheio de manga, cajá, goiaba e até seriguela.
Ela nem ouviu direito o que foi dito, seus ouvidos estavam longe, seus olhos fixos nos atributos não profissionais do jardineiro. Cada movimento parecia de propósito, um simples curvar de braço apresentava um tônus exibicionista. O delicado gesto de ajeitar o pequeno botão meio caído, era cheio de uma masculinidade bruta, completa e antagônica, entre pétalas, espinhos e testosterona.
Daquele dia em diante, ia todas as manhãs àquela construção, mesmo que não precisasse de sua presença. De praxe, procurava o jardineiro, sempre suado, charmoso e atencioso. Conversava amenidades, sorria, passava a mão no cabelo colocando por trás da orelha, elogiava o jardim, perguntava das árvores... o rapaz, sempre cortês, derramava desejo pelo canto da boca, exalava tesão pelos poros, o ar se enchia da vontade mútua.
Todos os dias, antes de ir à obra, ela passava uma hora e meia na academia, três vezes por semana passou a ser pouco. Correndo na esteira, imaginava as cenas proibidas que queria ter logo mais: no canteiro de obras, ser jogada no gramado ou à sombra de uma planta qualquer, um pé de pau! Em todos os exercícios via o galante cultivador observando suas curvas, babando, parado em sua frente, cobiçando tudo que a malha mostra e principalmente o que esconde. Passou a fazer ciclismo e natação.
Em casa paquerando com o espelho, acaricia-se em cremes, hidratantes, não há mais estrias ou celulites, os seios, sempre duros, agora olham para cima, calcinha vermelho paixão, sua jovialidade não cabe no reflexo.
Sábado, dez horas, chega à escola, ao seu éden, na certeza de que convidará o moreno suado para um drink, uma dança na noite, ou, se sua ousadia e autoestima permitirem, um passeio pelas suas flores. Desfila confiante entre andaimes e assobios. Trocou a bota pelo salto, colocou seu sorriso mais brilhante, o rebolado mais rítmico, o espírito mais luxurioso... Para de frente ao jardineiro, ele congela, trêmulo, solta uma pazinha cheia de adubo. Grandes olhos negros a fitarem a loira pintada a sua frente. Ela sorri, ele entende o momento, mãos nervosas, voz gaga, quase inaudível, após uma respiração demorada, certo de que conquistará a mulher, xeque-mate, ele diz:
                           - A senhora quando era nova devia ser bonita!