Acontece
que numa noite de setembro de um ano aí em que minha barba era rala, meus ossos
mais expostos e minha cabeça maior, após uma tradicional festa de rua, vem a
indefectível fome. Nesses eventos a cidade ficava cheia de barraquinhas, tinha
de tudo: tiro ao alvo, sorvete colorido que era mais bonito do que gostoso ou
gelado, drinks com nomes sensualmente sugestivos e propagandas melhores ainda, batata
frita, pipoca, copos de alumínio com seu ou nome ou da pessoa amada gravado...
No final da farra, dominado pela larica pós-festa, eu sempre procurava os
carrinhos de cachorro quente, quanto mais recheio melhor. Mas nessa madrugada,
passeando entre os canteiros da praça, a procura do sanduíche, me deparo com
uma barraca com uma faixa branca com letras vermelhas: ACARAJÉ.
Paralisei.
Pensei. Fiquei em dúvida: saciar a vontade de comer hot dog, meu lanche favorito,
ou arriscar matar minha curiosidade e me jogar na culinária da Bahia. Sempre
fui indeciso! Depois de várias luas de autoquestionamento, parti para o
quiosque da mulher de turbante branco.
-
Um acarajé.
-
Quente ou frio?
-
Quente. Claro. – Pensei que ela falava da temperatura.
Antes
de satisfazer o paladar, fartei os olhos. Momento histórico precisa ser
valorizado a cada instante. Em câmera lenta, suspensão, as pessoas ao redor
fora de foco na minha lente. Boca de jacaré, abocanho o alimento com um desejo animal.
Olhos fechados para não enganar a língua. Pausa... mordida... pausa... pupilas
da esquerda para direita e da direita para esquerda, uma lágrima, não sei se
foi a pimenta ou o desapontamento.
Não
gostei do acarajé, perdi o cachorro quente, mas realizar sonhos é sempre bom,
mesmo que o acordar seja ainda mais agradável que a fantasia. Fui para casa
feliz, apesar de triste. Eu, que sempre gostei da ficção, me deparei com uma
realidade decepcionante. Tudo bem, tive a experiência, valeu, decidi nunca mais
comer acarajé.
O
tempo passou, inúmeros calendários gastos. Anos depois fui morar em Campina
Grande. Numa manhã qualquer, não lembro o dia, mas vou dizer que foi quarta,
gosto da quarta, estava conversando com colegas de trabalho sobre comida, Bráulio
fala o quanto ama acarajé, segundo ele: a coisa mais saborosa do mundo. Não
resisti, retruquei de imediato, não podia ficar calado. Contei minha
experiência, falei mais com as mãos do que com a boca. Ele passou os dedos pelo
queijo repetidas vezes, franziu a testa e em pequenos movimentos do dedo
indicador disse:
-
Você comeu o acarajé de uma baiana? Baiana mesmo. Por aí tá cheio de baiana
nascida na Paraíba, em Pernambuco...
-
Não sei, não perguntei.
-
Você não pode falar que não gosta de acarajé até comer um feito por uma baiana
legítima.
Não
me convenceu, mesmo assim a pulga despertou por trás do abano protetor de meu
ouvido.
Certa
vez, após assistir a um show do Roupa Nova na praia de Cabo Branco, em João
Pessoa, saindo da orla na tentativa de pegar um táxi, entre barracas e mesas,
uma se destaca. Paro, penso, reflito, decido. Vou lá, olho pra a moça e
pergunto:
-
Você é baiana?
-
Do Pelourinho, meu rei.
-
Pois me dê um acarajé. – Peço já tomando conta de um tamborete branco de
plástico.
Desta
vez não houve imagem em quadro a quadro, suspense ou romantismo. Apenas comi na
tentativa de aproveitar o momento e o sabor. Tive a certeza de que acertei na
cozinheira. Vocês acham que gostei? Não. Detestei.
Voltei
pra Campina sedento para encontrar Bráulio e contar que finalmente estive
frente a frente com uma baiana verdadeira, provei seu acarajé e apenas
comprovei minha primeira impressão. Na primeira oportunidade relatei minha
experiência, convicto de minha verdade, meus braços gritavam. Ele balançou a
cabeça, olhou pro teto, cruzou as pernas confiante ao exclamar:
-
É porque você não comeu o acarajé de Lindete!
-
Quem?
-
É uma baiana. Nascida e criada em Salvador. Mora lá, mas vem todo São João para
Paraíba, passa os trinta dias no Parque do Povo. Quem prova o acarajé dela não
esquece. Passo o ano esperando junho só pra comer o melhor acarajé que existe.
Era
janeiro, faltavam cinco meses para as festas juninas, eu podia esperar.
Controlo minha ansiedade, a não ser quando ela me controla.
Fevereiro...
março... abril... maio... junho! Parque do Povo: Maior São João do Mundo. Fui
logo na abertura da festa, nem vi os fogos, rodei procurando Lindete, não a encontrei.
Gente demais, deve ter sido por isso ou por causa de minha miopia. Passei a ir
todas as noites, independente das atrações ou as músicas. Em vão, já estava pra
desistir. Quando numa tarde, após um jogo da seleção brasileira, era copa do
mundo, vencemos, olho para um vendedor de milho cozido, adoro milho, e vejo uma
placa sobre um pequeno quiosque “Acarajé da Lindete”, letras vermelhas de novo.
Não pensei duas vezes, na verdade nem pensei. Corri pra lá.
-
Quem é Lindete?
-
Sou eu. Mande as ordens!
-
Quero um acarajé, o melhor que você tiver. Sua especialidade.
Ele veio recheado, bonito, iluminado, cores em
harmonia, fumaça dançando forró. Fechei os olhos, abri as narinas. Finalmente
eu provaria o autêntico e legítimo acarajé. A cena cinematográfica voltou a
acontecer, a trilha sonora ficou suave, numa crescente, ópera, até o êxtase:
minha boca. Vocês acham que gostei? Não! Igual aos outros.
Não
demorou a rever Bráulio. Vitorioso, contei a ele que havia chegado à conclusão
final, provei a melhor versão do acarajé e reprovei. Encerrado, finalizado, não
há mais nada a fazer! Meu amigo coçou a cabeça, olhou pro céu e sentenciou:
-
Você só fala isso porque não comeu um acarajé na Bahia.
Pronto!
Lascou! Vou ter que ir a Bahia para comprovar o que já sei. Mas como essa
viagem não estava em meus planos, parei de pensar no assunto, até porque pra
mim estava resolvido, três testes são suficientes.
Acontece
que um tempo depois fui conhecer Salvador. Claro, acarajé não estava na minha
programação. Sexta-feira a noite fomos ao Rio Vermelho, bares, muita gente,
música, tudo muito bom. Mas lá estava ela: a barraca de acarajé! Várias.
Perguntei ao garçom se o acarajé dali era bom.
-
O melhor que há. E, aqui entre nós, naquela primeira barraca é feito o melhor
dos melhores. – disse o jovem abrindo uma cerveja.
Me
levantei, fui lá, cruzei quarenta e oito mesas, pedi desculpas três vezes por
esbarrar nas pessoas e uma por pisar no pé de um cara bem maior que eu. Relutei
uns minutos, tomei coragem, pedi. O acarajé veio que parecia um presente, este
momento foi mais teatro que cinema. Acalmei a alma. Preferi degustar na
tranquilidade de minha mesa. Fiz o caminho de volta e não me desculpei com
ninguém. Sentei, preparei o cenário, incluindo o guardanapo, a caneta e o copo
nos ângulos certos, deveria ter fotografado. Apoteose! Vocês acham que gostei?
Não! Sendo sincero foi o pior dos quatro.
As
consequências vieram algumas horas depois, além de não apreciar o sabor (de
novo e de novo e de novo), tive infecção intestinal, pensei que iria morrer. Longe
do lar, talvez nem fosse enterrado na minha Paraíba. Me tranquei num quarto de
hotel, ar condicionado desligado, paramentado com calça jeans, meias, camisa,
casaco com capuz para esquentar as orelhas, encolhido embaixo do edredom, tremendo
de frio, às vezes de medo. Quase fui internado e por pouco não perdi o voo de
volta pra casa. Em consequência disso tudo, continuo comendo cachorro quente.