sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

Alguém


Anos atrás alguém apareceu aqui, anunciando amor amplo aos antrópicos. Abençoava, apregoava, anunciava a alegria além. Arranjou alguns alunos, apóstolos. Aconteciam atos abismadores: aleijados andavam, abióticos alevantavam-se, admoestou abusos, até água alterou.
 Aos aliados anunciava abecedário à aliança altíssima almejada, ab-rogou alguns absurdos antigos, alegando aquilo abominável àqueles aspirantes à ascensão. Aclamou à ação, à ajuda aos anônimos. Assim andou acompanhado aumentando aqueles adeptos, abrindo alas aos assuntos avantajados.
Amiúde aprendia-se, assimilava-se as alusões anexas à andança aventureira àquele andarilho altivo.
As autoridades aborrecidas ajustaram acordo ao apóstolo algoz, ambicioso, aceitou aliar-se. A advertência acordada, aliás ademais atroz, aludia a apreço.
Adentrou a aldeia, ali alguns alevantaram arbustos ante a alteza. Assentou-se ajuntado aos abandonados ao azar. À assembleia apostólica abordou assuntos altruístas aconselhando à assistência, a abraçar adversários. Alevantou aos ares alimento abençoando, após, apresentou àqueles acompanhantes.
Ainda assim aprisionaram aquele alegre andante. Aprontaram a audiência, abades apareceram. As acusações alegadas: audácia, algazarra, atos amorais. Advertiram a abjurar aqueles alardes. Aplicaram-no à apreciação àqueles assistidores, aos alaridos audíveis autuaram-no.
Alhures aquele apóstolo afoito, assustado acovardou-se, afirmando ausente aos acontecimentos alegados.
Após açoites, atrocidades, afixaram ao alto aquele amante abnegado, agoniantemente amoleceu, a alma afastou-se.
Afora aquilo apareceu apoteótico, aleluia, aos apóstolos, aos amigos, amigas, ascendeu ao altar altíssimo, auréola acima. Atualmente ainda ajuda aos adeptos.
Amém!

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Quinze minutos


Era um dia como outro qualquer. Afonso acordou atrasado, na verdade, foram apenas alguns minutos, talvez quinze ou vinte a mais do que ele costuma se levantar diariamente para ir trabalhar no escritório de contabilidade Matias Ltda, no centro da cidade. Saltou da cama como um louco, bateu a cabeça na cabeceira, mas na pressa não teve tempo de dizer “ai”. Correu para o banheiro, não tomou o banho tranquilo e demorado como de costume, a urgência não permitiu.
Precisamente às oito e quinze chegou ao escritório, quinze minutos atrasado, pensou: “Será que vou perder o emprego?”. Entrou, lá já estavam todos trabalhando, alguns nos birôs, outros andando, havia um silêncio amedrontador, maldita tecnologia!  Nem mesmo podia-se ouvir o som das batidas da máquina de datilografia, todos usavam computadores. 
Afonso passou alguns instantes parado, observando. Com dificuldade conseguiu dizer: “Bom dia!”. Os colegas se entreolharam, mas não responderam, com exceção de Dionísio que timidamente soltou: “Bom!”. Se sentiu pequeno, humilhado, pensou em dar meia volta e ir para casa, se conteve. Lentamente, cabisbaixo foi até sua mesa, sentou-se, e começou a ver algumas correspondências. Temerosamente ergueu a cabeça e viu que Fábio e Estela conversavam com Dionísio, pela forma com que gesticulavam, julgou que estavam repreendendo o companheiro. “Meu Deus, foram apenas quinze minutos!”, resmungou entre os dentes.
Durante todo o restante do dia foi aquele clima frio. Gelo quebrado só para alguns pedidos meramente profissionais feitos por Dionísio. A cada minuto Afonso se sentia mais acuado, “Droga, se tivesse sido meia hora.” Pensava o contador. Nem mesmo para almoçar o convidaram, teve que ir sozinho, e pior, ficou só na mesa do restaurante, coisa que não costumava acontecer. Não tocou na comida, deu apenas alguns goles em uma coca-cola que acabou esquentando.
Na volta para o trabalho, pensou sobre sua vida. Morando sozinho em um apartamento de dois cômodos, sem vida social, ligado vinte e quatro horas no trabalho, sem amizades verdadeiras, poucas namoradas ao longo dos anos e “todas feias” como costumava descrevê-las. A última terminou o romance uma semana e meia após começar, “não me suportou.”
Por volta das três horas da tarde, não aguentou, olhou para Narciso e segurando-o pelo braço indagou: “O que houve?”, soltando-se, o rapaz respondeu friamente: “Nada.” Logo saiu brincando com os demais.
“Quinze minutos”, voltou a pensar, era um homem metódico, não suportava a ideia de atraso, certamente os outros igualmente achavam o mesmo. O tempo foi passando e finalmente, para Afonso foi uma eternidade, chegou às dezessete horas. “Graças a Deus! Vou embora.” Falou para si já levantando. Quando estava pronto para ir, Estela se aproximou, com um sorriso venenoso disse, jogando uma pilha de papéis sobre a mesa, “O Doutor Matias mandou dizer que você aprontasse todos estes documentos ainda hoje.” Com esforço, quase sobrenatural, Afonso rebateu: “Por que não me entregou antes? Está no final do expediente.” Estela, articulando as palavras numa maldade sensual, falou: “Você conhece o Dr. Matias, ele disse que tinha de ser hoje.” Afonso ficou sentado imóvel em sua cadeira. Antes de todos saírem Narciso disse a Afonso para não esquecer de fechar tudo quando fosse embora. Sozinho no prédio bradou: “Foram apenas quinze minutos!”
Olhou a sua volta, ninguém. Virou-se, viu uma corda, deu um leve sorriso e se levantou. Pegou a amarra, azul daquelas usadas para laçar grandes touros “Como veio parar aqui?” Um desejo demoníaco ou divino tomava conta de sua alma. Riu novamente. Subiu na mesa, amarrou a corda no teto, fez um laço no pescoço e saltou da mesa. Antes de morrer ouviu alguns sussurros e teve um último pensamento: “Só quinze minutos.” Debateu-se em vão, esmoreceu enquanto uma lágrima banhava sua face. A porta se abre, seus colegas, com bolo e velinhas, gritam em coro: “Feliz aniversário...”

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

A bela

Na verdade, eu não confio em nenhum de vocês. Mesmo assim, vou falar de mim. Talvez vocês saiam por aí tecendo comentário a meu respeito. Certamente irão aumentar o que eu disse, omitir o que não os interessa. Acrescentarão algumas vírgulas, substituirão interrogações por ferozes pontos de exclamação. Se alguém gostar de mim, banhará minhas frases com açúcar, ou adoçante, as mais frescas. Mas, quem não gosta, ah, quem não gosta! Esses colocarão mais amargor nas minhas palavras do que a minha língua é capaz de sentir.
Em primeiro lugar, não sei vocês, mas, eu sou e sempre fui linda. Está certo que depois que parei de fumar perdi uma das armas do meu charme. Afinal, cigarro pode até fazer mal ao pulmão, mas, faz um bem incrível à aparência. Fumar é charmoso demais! Admitam. Sentar à mesa de um restaurante, entre taças de vinho branco, seco, por favor, porque doce ou suave só parece refrigerante. Passar a perna, exibir aquela sandália da última coleção, de preferência vermelha, que compramos pensando na inveja que vamos causar nas amigas, nada no mundo é mais invejosa do que amiga. E acender um cigarro. Olhar as pessoas enquanto sopro nicotina. Alguns fazem careta por causa da fumaça, povo mal-amado! Mas, aí, para satisfazer um bando de puritanos que na infância não deve ter aproveitado bem a fase oral - adoro Freud! – praticamente criminalizaram o fumo. Todo lugar é cheio de placa “proibido fumar”. Por isso parei. Não suporto a ideia de ter que me levantar do meu lugar para poder exercer a minha liberdade tabagista. Mas, quer saber? Hoje vou fumar. Não estou nem aí se vão chamar a polícia. Qualquer dia desses vão proibir comer chocolate em público, alegando que causa diabetes, engorda, dá espinha. Ora espinha. Se tudo que dizem que provoca espinhas realmente fizer aparecer erupções no rosto, eu fui a causa de muita marca na cara dos meus colegas de colégio. Eu adorava ser a fonte de inspiração em suas diversões solitárias. Há alguém que não goste? 
Sexta à noite, eu, antes de sair, acendia o primeiro cigarro e fumava em frente ao espelho. Instantes eternos de contemplação narcisista. Hoje, mesmo sem cigarro, caiu na farra, aproveito a vida pra caralho! Ah, desculpem, falei um palavrão, mulher não fala palavrão. Que se foda! E que se foda você, que acha que não vou falar “nome feio” porque dói nos seus ouvidos. Não sinto dor nenhuma nisso. Porra! Ninguém está preocupado com que os outros gostam ou se sentem bem.
Embora, haja uma censura pessoal de cada um, poucas pessoas admitem do que realmente gostam. Eu, além de fumar, de sair à noite, amo encher a cara. É bom encher a cara! O povo diz “Meu Deus, uma mulher bêbada!” Como se o fato de ter uma buceta me diminuísse frente às rolas que existem por aí. Faço o que gosto e o que quero. Por que não faria? Por ser mulher? Uma coisa podem ter certeza, não serei uma velha ressentida por não ter vivido. Lamentando um passado que não tive, sentada numa cadeira de balanço, com mãos trêmulas tentando ocupá-las com alguma coisa. Meus olhos cinza do tempo, escondidos por óculos fora de moda, lançando da janela olhares gélidos de cobiça enrustida sobre as molecas que vem da escola, e sobem a blusa para mostrar a barriga aos meninos e aos homens, olhos de inveja e raiva, resmungando que “no meu tempo não era assim”. Pelo contrário, serei uma senhora bela, ativa, mesmo que por isso me tachem de velha ridícula, ostentarei esse título com todo prazer e orgulho. Farei festas da velharada em meu apartamento, músicas de hoje, que serão de ontem, reminiscências que molham nossos olhos, afloram as memórias mais escondidas, já posso até imaginar alguns mentindo para tentar consolar suas vidas sem emoção, sem vida. Comigo não, vivo e pronto. Faço o que gosto, quando quero. Por exemplo, vou revelar um segredo, alguns amigos dizem que sou louca. Mas, e daí? Não vivo pra eles, nem pra vocês. Eu adoro sabão. Sabão de verdade. Não que eu seja a pessoa mais asseada do mundo. Longe disso. É que eu gosto de comer sabão. Sabonete também pode ser, mas, tem química demais, não me agrada muito. Prefiro o sabor, e cheiro, mais rústicos. Não resisto a uma barra de sabão neutro, glicerinado. Adoro. Seguro entre os dedos, apertando com força, e lambo, me delicio com aquilo. Pastilha de sanitário? Meu Deus! Me sento de frente ao espelho do banheiro, enquanto chupo uma daquelas pastilhas, as minhas preferidas são as vermelhas. No supermercado as pessoas deliram com as prateleiras de chocolate, eu prefiro as de detergente. Talvez seja por isso que sou tão gostosa. Semana passada me peguei sentada no chão da cozinha, piso de cerâmica, recostada nas portas brancas do armário projetado, uma caixa de sabão em pó e uma colher de chá, melhor que doce de leite.
Dizem que beleza não é tudo, que existem outras coisas mais importantes na vida, que é melhor ter caráter, inteligência, bondade, que o que realmente importa é a beleza interior... Conversa de gente feia. Que fica tentando convencer os outros que, mesmo não sendo bonita, pode ser feliz. Não existe felicidade na feiura. Interior só se for designe de interiores. Outra coisa, nem perco tempo em sair com gente feia, feiura pega. Meus namorados, todos lindos, até porque cheguei à conclusão de que feios podem se apaixonar pelos bonitos, porém, ninguém bonito se atrai pela feiura. Só os feios se encantam pelos sem beleza. Sou bela! Bem-sucedida, quase rica! Às vezes, como toda mulher, no meu caso, muito raramente, minha autoestima vai lá pra baixo. Nos dias que me deparo comigo feia, sofrida, simplesmente me intrigo do espelho, não olho pra ele, é como dizem: o que os olhos não veem o coração não sente. Mas, não vou me martirizar e chorar pelos cantos, vou ao salão e de lá para o shopping. Quem tem cartão de crédito só não é linda se não quiser.
Há anos tive um namorado, não era lá muito bonito, um metro e setenta, magro, mas com uma barriguinha saliente, barba rala, que ele preferia não tirar, óculos redondos, que escondiam um par de olhos de caixão, cabelos poucos e lisos, ombros retos em tábua, dentes brancos, perfeitos, sobretudo nas poucas vezes em que ria deslumbrando enquanto me contava coisas das estrelas do céu, do mar e do cinema. Mãos macias, quase femininas, que demonstravam toda sua masculinidade quando me pegava com uma força inexistente em outros momentos. Não quis que ele entrasse comigo na minha formatura, seu rosto era desproporcional à minha face angelical, meu álbum não merecia um golpe desses. Expliquei a situação, ele disse que entendia, mas, não foi ao baile. Nem apareceu mais em minha sala. Casou com Sara, tão feia quanto ele. Não recebi convite para a cerimônia, mas fui, de táxi. Fiquei na frente da capela de Nossa Senhora das Graças. Vi a noiva chegar, 32 minutos atrasada, véu e grinalda, nas mãos margaridas e violetas naturais. Ele de paletó branco, gravata combinando com o buquê. Brega! Disseram que ela casou grávida, não acho, aquela barriguinha devia ser só falta de exercício. Na saída, arroz, sorrisos, latas amarradas no para-choque do chevette. “Felizes para sempre!” Mentira, claro que é mentira! Nunca mais os vi. Ainda bem. Como eu disse, não confio em vocês, só estou contando minha história porque não tenho ninguém que me ouça.

terça-feira, 21 de agosto de 2018

O amante


Há alguns meses, preocupado com o avanço da idade, o aumento do colesterol e o recorrente tratamento de tio, resolvi voltar a vida de atleta amador. Pensei em jogar futebol, mas, a bola já me driblava quando eu tinha 18 anos. Jiu-jitsu seria uma opção, está na moda, porém, tive medo de quebrar os dentes, adoro meus dentes, mesmo preferindo ficar sério nas fotos. Musculação talvez fosse a solução, ficar forte, saudável. Aguentei dois dias e meio de malhação. Percebi: academia é uma coisa que se paga pra sentir dor e fazer careta. Praticar tênis, esporte charmoso, elegante, muito completo para vários grupos musculares, descobri que não tinha vocação quando pesquisei os preços das raquetes. Fui a uma quadra de basquete, já fui um bom armador, campeão estudantil. Alguns garotos batendo bola, sento na pequena arquibancada, tímido, fico cachorro paquerando com as carnes do açougue. Começaram a formar os times, eu lá querendo me oferecer, mas, contendo meus impulsos adolescentes. Um moleque vem em minha direção, bola laranja nas mãos, camisa dos Cavs, “cadê a do Bulls ou Lakers?”.
- O senhor quer jogar? A gente precisa completar o time. Garanto que ninguém vai machucar.
Pensei em mandar aquele magrelo pra alguns lugares, perguntar se mãe dele estava bem, essas coisas que dizemos quando o sangue esquenta. Olhei praquele rapaz, levantei, senti meu joelho estalar, fiquei bem de frente a ele e disse:
- Não obrigado. Tô só olhando. - Sai vitorioso, descompletei a pelada!
Mesmo assim, não desisti do meu objetivo de voltar às atividades físicas. Então me veio a luz: correr. Bom, completo, barato, não precisa de time e ainda posso praticar apreciando as paisagens naturais e humanas. Decidido. Comprei tênis, fone de ouvido, playlist só com rock'n'roll (penso ser um bom incentivo), fiz consulta (no google, claro)... Tudo pronto, três dias por semana para não forçar muito. Comecei numa quarta-feira à tarde. Pelas contas, “corri” uns quatro quilômetros, me senti um maratonista: “se continuar assim, no final do ano vou pra São Silvestre”.
Exausto, mas, satisfeito; ofegante, porém, erguido; estava forte, mais magro, atleta, confiante. Desfilei até o carro sorrindo para todos que cruzaram comigo, um riso vencedor. Merecia um prêmio. Por que não?
No caminho de casa parei no bar de Damião, boteco organizado, sem moído ou burocracia, a gente pode pedir bebida gritando e o dono do bar vem pessoalmente dizer que tem “fava, tripa, peixe desossado, fígado acebolado, galinha com cuscuz, carne de sol, bode guisado com macaxeira, pururuca, porco com toicin, tudo no preço”. Abanco-me numa mesa na calçada, peço uma cerveja, ela vem gelada, noiva. Eu nubente, me esbaldo na loira e no meu sucesso esportivo. Peço outra. Perdi tantas calorias e líquidos nos quase dez quilômetros corridos, não fará mal só mais uma garrafa. Quando estou na metade da terceira cerveja, chega no bar uma ex-aluna minha.
- Oi professor! Não sabia que você tomava uma.
- Às vezes, só um copinho no final de semana.
- Tô na casa de uma amiga aqui perto, vim pegar uma batata frita.
Ela entra no botequim, volta dois minutos depois, pergunta já puxando a cadeira.
- Posso sentar enquanto espero?
- Claro. Quer beber? Damião, mais uma e um copo.
- Professor, soube que me separei?
- Não. – Na verdade eu nem sabia se era casada.
- Separei. Meu marido botou na cabeça que tenho um amante. Ficava me perseguindo. Aguentei não. Sou nova e bonita. Você acha que preciso ficar presa a um homem desconfiado? Mandei embora. O pior, o infeliz não aceita. Você acha? Vive atrás de mim. Quero mais não. Mas, não desiste, fica vigiando. Diz que vai matar eu e meu amante.
Comecei a esquecer a corrida de mais de duas léguas. Sabe aquela sensação de estar no lugar certo, mas, na hora errada? Ela continuou o relato trágico do fim de seu casamento, sempre reforçando o quanto o ex era brabo, cismado. Não aparenta temor, conta sua história com orgulho, totalmente a vontade na mesa, pede a próxima cerveja.
- Professor, ele disse que se me pegar com meu amante... Olha, tenho outro não. Viu? Mas, disse, disse sim, se pega com o macho, ele diz, mata os dois. As meninas, minhas amigas, falaram que ele já passou aí nessa rua uma duzentas vezes, me procurando, caçando meu amante. Mata os dois. – Concluiu numa gargalhada afogada no lúpulo.
- Você não tem medo? – perguntei num misto de curiosidade e sondagem da periculosidade do homem.
- Medo? Se tiver num vivo, né? O caba num me deixa em paz. Encasquetou que vai descobrir o nome e a cara do sujeito. Inclusive, tenho certeza, se chegar aqui, vai achar que o meu amante é você.
Dei um sorriso, nem conseguiu ser amarelo de tão desbotado. Pensei na possibilidade de morrer sem dever, sem conhecer o matador. Será que perceberia ele chegar? Tiro, facada, talvez um golpe com uma das garrafas na mesa. Tudo isso por causa de uma corrida quinze quilômetros. Deveria ter feito jiu-jitsu ou karatê.
A batata chegou, depois de muitas horas. A moça pagou, agradeceu pelas cervejas e disse o quanto seria bom beber comigo outra vez. Saiu, porção grande nas mãos coberta com papel alumínio. Terminei a última garrafa, não podia desperdiçar. Paguei a conta, fui embora cansado. Resultado: nunca mais corri!

quinta-feira, 9 de agosto de 2018

Até que a morte os separe


Suzana, a noiva, entra gigante na igreja, morena clara com perigosos olhos cor de mel, alta, dona de grande beleza e elegância. Desfila como se estivesse numa passarela. Todos a observam, algumas com olhos de inveja, outros de desejo, há também olhares curiosos, mas, todos bem atentos. Entre um passo e outro da nubente, as moças nas laterais da igreja cochicham que ela está linda, como é bonito seu vestido, tentam descobrir quem fez seu penteado. Depois de quatro anos, sete meses e dois dias de namoro e mais três meses e vinte e quatro dias de noivado, casa-se com Alfredo que espera ansioso no altar.
O templo está bem ornamentado com flores brancas e vermelhas, sem os costumeiros exageros destas ocasiões, com exceção do detalhe do pequeno buquê colocado nas mãos de uma imagem de Nossa Senhora do Bom Parto. Não há um só banco vazio, todos estão lotados, vieram muitos convidados, nem todos claro, porque sempre existem aqueles que só vão à festa para comer e beber, às vezes se esquecem até de desejar parabéns aos noivos, mas, tudo bem, em contrapartida à ausência deles vieram os onipresentes penetras. A mãe da noiva, Dona Amélia, senhora enxuta, viúva, o marido se enforcou ao descobrir o envolvimento da esposa com um pastor evangélico que visitava a família na promessa de orações. Usa um belo vestido pérola, sentada na primeira fileira de bancos, nitidamente alegre com o casamento da filha, afinal, nos dias de hoje encontrar um homem decente para ser companheiro é uma missão difícil, e Alfredo sempre foi um rapaz íntegro, trabalhador e honesto, não é dos mais bonitos, mas isso é apenas um detalhe.
O celebrante é o Padre Antônio, um jovem sacerdote recentemente ordenado, com aproximadamente 35 anos de idade, amigo de infância do noivo. Alfredo fez questão que realizasse o matrimônio. Os dois eram colegas de brincadeiras quando crianças e de grandes farras na juventude, adoravam sair, ir a festas e sempre tinham muitas namoradas, até que Tony, como era chamado pelos amigos, resolveu entrar para o seminário, foi um verdadeiro choque para o público feminino da cidade, que uma parte usufruía do corpo atlético do jovem e outra tinha essa vontade. Apesar de a juventude bem vivida ao lado de belas garotas, nunca houve nem um boato que o Padre Antônio tivesse tido algum caso amoroso depois de ter se ordenado, ou mesmo nos tempos de seminarista, sua vocação o fez suportar o constante assédio das mulheres.
Sem a presença do amigo, Alfredo reduziu as aventuras. Anos depois, conheceu Suzana em um barzinho da cidade, conversaram, marcaram outros encontros, com o convívio acabaram se apaixonando, namorando e agora casando.
A morena percorre o tapete vermelho no corredor da igreja. Ela sorri, parece uma criança indo a um parque de diversões. Durante a rápida caminhada relembra momentos do seu romance, como a primeira vez em que transaram e o rapaz ficou chateado porque a garota não era mais virgem, e quando mostrou os pentelhos pintados de loiro e lhe disse que os tingiu para lhe fazer uma surpresa, ele adorou. Neste momento, estão vermelhos.
Um dos convidados é Túlio, primo da noiva, ela sempre afirmou ser seu confidente e por isso costuma se trancar horas a fio na companhia do moço. Quando passa por perto do moço seus olhares se cruzam e uma cena vem à cabeça dele. Os dois estão sozinhos na casa dos pais de Suzana, resolvem tomar uma garrafa de vinho, a primeira puxa a segunda, na metade da terceira decidem dançar, Túlio começa a passar as mãos pelas costas da prima que pede suspirando para parar, tem namorado. Os toques passam para o pescoço, os carinhos são retribuídos, as mãos “bobas” do sedutor descem até a bunda da companheira, em resposta, a moça morde a orelha do sedutor, os dois se abraçam com força e se beijam ardentemente. Acaricia os cabelos do primo enquanto ele sutilmente começa a baixar as alças do vestido dela, com um movimento rápido levanta a blusa do rapaz e arranha suas costas, unhas e sangue em harmonia. Após tirar o vestido de sua prima-amante, Túlio a pega no colo e a leva para a cama, a mesma em que o casal Alfredo e Suzana costumavam passar suas noites de amor, puxa a calcinha dela com os dentes e beija cada centímetro do seu corpo, demorando-se principalmente nos seus grandes seios, a cada beijo, um gemido, língua e mão se alternam entre os peitos. Os dois transam loucamente por quase toda a noite. Quando terminam, Túlio, sentado pelado e exibido sobre o criado mudo, acende um cigarro e diz: “Você deveria pintar de loiro.”
Suzana continua sua caminhada em direção ao altar, Alfredo, de olhos fixos e praiados, a espera, aqueles poucos metros pareceram quilômetros, mas, finalmente a noiva chega ao seu objetivo, é recebida por uma mão estendida e gelada.
Padre Antônio inicia a celebração do sacramento matrimonial, muito bem presidida, a voz grossa do vigário chega a quase hipnotizar os presentes, dona Amélia fica tão empolgada com o timbre vocal do sacerdote, não se controla, morde os lábios e contrai as pernas.
O casamento chega ao ápice, o celebrante pergunta a Suzana se ela aceita Alfredo como seu esposo jurando amá-lo e respeitá-lo até que a morte os separe. A moça olha levemente para trás, vê Túlio, ele a encara como que se dissesse telepaticamente: “Não se preocupe, vamos continuar.” Volta o olhar para o padre, sorriso voluptuoso, responde: “Aceito”. Padre Antônio se dirige ao noivo, pergunta se jura amar e respeitar até que a morte os separe. Alfredo fita o amigo, de olhos afogados, diz ofegante “Não” e beija o padre.

sexta-feira, 27 de julho de 2018

Num bar de Campina

As pessoas na mesa ao lado discutem sobre os limites dos cartões de crédito. Se dizem controlados e admitem que precisam economizar, sei lá. Tento me concentrar em meu copo, não consigo. As falas, muito altas, como se fossem pra chamar a atenção, tiram o prazer da minha loira.
Os dois homens abastados dialogam sobre quem tem o maior limite de crédito. É coisa de muitos zeros, algo irreal para o meu orçamento e para o meu cartão que, no meu bolso, fica tímido diante do poder dos concorrentes. A conversa é de alto nível, ou melhor, de altas cifras e alto som. Todos escutam, as mesas se tornam plateia, teatro de arena, estrategicamente a dupla está no centro. Eu, bem próximo, sozinho com minha garrafa, penso se todos prestam atenção à conversa dos milionários. Devo ser curioso, um verdadeiro fuxiqueiro. Mas, a quem irei contar esta história?
Falam quantas operadoras de cartão cada um possui, o que elas oferecem, como administram. São conscientes, conseguem controlar os gastos. Mesmo assim o que qualquer mero mortal precisa ralar, economizar, para conseguir, os meus vizinhos colocam como limite mínimo para gastos mensais em cada fatura.
Faço um esforço tremendo (mentirinha literária) para não ouvir o bate-papo, mas, os protagonistas fazem questão de serem escutados, não posso decepcioná-los. “Por mês, gasto num cartão dez a doze mil, n’outro é só cinco paus. Passou disso, só compro no dinheiro.” Diz um dos caras, enquanto dá um gole num copo de cerveja (cerveja? pensei que rico só tomasse whisky - escrito assim mesmo, afinal, tem que ser escocês).
Fico pensando o que dois homens tão endinheirados fazem num boteco destes. Bar pequeno, o dono, de camisa regata, e sua esposa, fazem todas as tarefas: cozinham, atendem, servem, não existem dez por cento, nem cinco. No ambiente o comerciante diz: “E aí moral, uma cervejinha gelada? Me dero um freezer, que boto as garrafa em pé, é bom demais, congela não, fica tudo no ponto.” Mesas na calçada. Copos americanos, nada de taças. Os transeuntes cumprimentam os consumidores. Boteco tranqüilo. Semana passada, perto daqui, teve tiro, nenhum freguês ferido, ainda bem. Sou cliente assíduo, nunca vi nada que não estivesse “sob controle” como dizem a polícia e o SAMU, que aparecem às vezes para atender aos chamados telefônicos.
Os caras ao lado, sempre bem-postos, pernas cruzadas, coluna ereta, conversam sobre compras no shopping (das esposas), automóveis, futebol, não sobre quem é o melhor jogador, mas, quanto cada empresa patrocinadora investe nos clubes.
                            As horas vão passando. O tom da conversa ao lado, que também já é minha, vai no mesmo ritmo. Em certo momento, um da dupla dinâmica (não sei se Batman ou Robin, já que os dois são Bruce Wayne) diz que vai embora. Pedem a conta. Eu fico triste, ao mesmo tempo em que agradeço a Deus. O dono do botequim questiona: “Vão não, ainda tem muita cerveja.” Não tem acordo. A conta vem: quarenta e oito reais. “De quê?” “Uma cerveja aqui é seis reais?” “É um absurdo!” Os vizinhos, para solucionar o impasse, clamam à matemática, que não os ajuda. Agora, falam baixo, quase sussurram, os demais fingem não ouvir, eu estou de orelhas em pé (não sou santo). Um puxa o celular, coisa moderna, eu só tinha visto na televisão. Faz a conta das cervejas mais uma fava, discorda da máquina. O álcool começa a me deixar tonto, a confusão do lado me deixa nervoso. Pensei em fazer uma caridade, não fiz. Levantei, disse ao botequineiro que pendurasse minha conta, fui embora fazendo questão de não dar ouvidos às lamúrias da mesa do lado.

terça-feira, 17 de julho de 2018

A faca


Sobre a cama está a faca. Lâmina suja de sangue. Um vermelho sem vida. Seu cabo de madeira envernizada está estranhamente limpo. Madeira rígida, fria, insensível à lâmina ou ao que corta seu gume. A luz ainda consegue encontrar uma brecha no rubro para refletir no metal polido, o que deixa a cena ainda mais antagônica. Lençóis brancos de seda confortam a faca, que, de forma injusta e mal-agradecida, mancha de encarnado seu alvor. Cama redonda, na verdade, meio oval, mas no anúncio dizia: “redonda”. Macia, confortável, testemunha muda de paixões, amores, orgias, decepções. Silenciosa, silenciosa mesmo, sem qualquer ringido, mesmo quando dos mais circenses atos lascivos. A faca destoa do ambiente ao seu redor. Quarto espelhado, iluminado, luzes de várias cores, climatizado. Quadros nas paredes, pinturas que retratam preliminares e finalmentes. Geladeira recheada: cerveja, vinho, chocolate, amendoim.

Voltas antes do relógio: homem com a faca em punho olha seu próprio reflexo no aço. Sentado num canto do quarto de frente à porta do banheiro entreaberta. Sorriso satânico solidificado em sua face. Ouve-se o som da água caindo. O homem se levanta vai até o frigobar, é primeira vez que faz isso, desde que chegou há algumas horas. Observa, olhos buscando algo, um prêmio ou consolo. Pega uma garrafa de vinho. Muda de ideia. “Cerveja é mais barato!” Senta-se na cama abrindo a lata. Goles saboreados e saborosos. Criança, solta uma sonora gargalhada em êxtase de prazer.
A faca fora deixada sobre a cama de propósito. Não foi esquecimento, negligência, talvez tenha sido burrice. As cobertas foram esticadas, e a arma branca colocada delicadamente lá.
Pensativo o homem liga o chuveiro olhando para o chão, água vermelha descendo pelo ralo. Mistura estranha. A faca está em sua mão esquerda, toma cuidado para não a molhar. Não quer extinguir marcas. Sai do banheiro, sem desligar o registro. Vai até um canto e senta recostado na parede.
Faca é um objeto com várias serventias: culinárias, utilitárias, agrícolas... Mas não foi usada de nenhuma dessas formas hoje, nem nunca houvera, era uma faca virgem, comprada há pouco tempo em um supermercado. O homem pagou no cartão de crédito e pediu pra embrulhar pra presente. Algumas pessoas dão presentes, mas, elas que fazem uso da lembrança. Neste caso, aconteceu isso.
A camareira entra na suíte. Quase cai pra traz ao ver a faca, sangue, mas, tudo no seu mais perfeito lugar, menos a faca, não era dali. Grito de pavor. Sai correndo. Poucos minutos depois volta com auxílio. A faca continua, parece não se incomodar com os presentes.
O homem toma outra cerveja, duas é um número par, não tomará três. Vai até o banheiro, cantando uma música horrível, desliga o chuveiro. Pega algumas coisas que julga serem suas, coloca-as na mala do carro. Detêm-se alguns minutos na porta da suíte e chorando vai embora.
A polícia faz perguntas. Ao porteiro, à camareira, ao gerente, menos à faca, talvez a única que soubesse as respostas. Não existem câmeras de segurança, é falta de ética, não há testemunhas. Mas, existe uma faca com sangue. DNA. Alguém identifica o carro, mais que isso, descreve o motorista, é categórico:
- Ele tava sozinho.
- Sozinho?
Dias depois os agentes encontram o suspeito. Averiguação.
O laudo do exame de DNA é conclusivo: o sangue é do homem. Ele é liberado. Antes de sair diz ao delegado:
- Minha noiva sumiu!

sexta-feira, 29 de junho de 2018

Errante solitário


O homem saiu de casa, manhã de segunda-feira, não vai trabalhar, não naquele dia, quer apenas andar. Logo na porta de casa encontra a moradora do lado regando algumas flores, brancas, vermelhas, violetas, não importa a cor ou sua suposta beleza, todas têm espinhos. Não gosta de flores, não pode se agradar de uma coisa que serve para declarações de amor e desejos de pêsames. A mulher cantarola uma canção, pra ele não interessa qual, não via motivos pra cantar. Não a olhou, mas percebeu que sorria. Nunca a cumprimentou. Por que ela insiste em falar com todas as pessoas que passam na rua?
- Bom dia! Está fazendo uma bela manhã. – Disse ela
- É. – responde secamente.
Seguiu se afastando, por um tempo ainda ouvia o barulho da água banhando as flores. Caminhou, pensativo, cabisbaixo, as únicas coisas que enxergava eram o chão irregular, sujo e seus sapatos, que, aliás, precisavam de graxa. Pensou em parar num mercado e procurar um daqueles garotos com caixas de madeira, pedir para dar uma lustrada nos seus pés. Depois pagaria com uma nota graúda e deixaria o troco, sairia sorrindo enquanto o moleque pulava de alegria. Mas ponderou, estava precisando do dinheiro talvez até mais do que qualquer engraxate. Não poliu os sapatos, nem lavou a alma.
Um pouco mais adiante, sei lá, devia ter andando uns dois ou três quarteirões, cruzou com um amigo que não encontrava há quase um ano. Um bom amigo, se viam pouco, mas isso não importa, o vai e vem da vida faz com que as pessoas também vão e venham.
- E aí cara? Que prazer encontrar contigo. – falou o colega ao preparar um abraço.
- O prazer é meu. – respondeu, sem parar ou levantar a cabeça. Pra quê? Para ver que o amigo não entendeu nada, que ficou congelado, de braços abertos, Cristo Redentor?
Continuou sua jornada solitária. Passou por um parquinho, desses que montam nos lugares públicos, com brinquedos de madeira, escorregos, balanços, gangorras, escadinhas, grama, bolas... Dezenas de crianças brincavam, corriam, gritavam, e gritavam muito. Ali próximo várias mães, babás e alguns pais observavam os pequerruchos e suas peripécias. Uma menina de oito ou nove anos veio em carreira olhando para trás, seus cabelos cacheados soltos ao vento parecem impulsionar sua velocidade. Esbarra no homem, cai sentada no chão, assustada. Com os olhos arregalados em lágrimas e brilhando de medo a pequena diz:
- Desculpe, senhor.
Não é sentimental. A queda ou o pedido de perdão foram indiferentes. Não precisou responder. Uma jovem mulher, veio correndo, pegou a menina no colo e o fitou como se ele a tivesse derrubado, olhar de reprovação, penalização. Não se sentiu culpado, mas teve pena de si. Avançou em seu caminho, sem ao menos saber para onde ir.
Após o parquinho, havia uma praça, com flores (elas de novo) grandes árvores com casinhas de pombos, bancos de madeira onde sentam senhores com saquinhos de pipoca para alimentar as aves. No canteiro central um coreto, construído nos moldes da arquitetura do inicio do século XX. Lá se reúne um grupo de saudosistas senhores, que há décadas formou uma banda musical. Hoje em dia, todas as sextas-feiras eles estão tocando na praça. Cada um traz seu instrumento, alguns reluzindo como se novos fossem. Há um senhor que nos anos sessenta tocava trombone de vara, mas um câncer na garganta o afastou dos sopros musicais, porém, a doença não o impediu de musicar. Vem todas as semanas, não falta mesmo que chova, traz um reco-reco e fica fazendo zuada, tem até quem o aplauda. Toda sexta se encontram, mas é segunda, o coreto está vazio.
Um pequeno grupo começa a se formar sob a sombra de uma mangueira. Um palhaço grita: “Senhoras e senhores, distinta e educada platéia, meu cordial bom dia! Venham ver o maior espetáculo da terra, o incrível circo mambembe, saltimbanco, imaginativo de um homem só.” O humorista faz falsos truques de mágica, tira um coelho de pelúcia de uma cartola, acrobacias, malabarismo com três bolinhas coloridas, azul, vermelha e amarela. Faz números que ele classifica como perigosos, equilibrando-se sobre uma corda estirada no chão, finge que está a metros de altura, anuncia um domador de animais em que, pateticamente, transforma-se, ele grita num megafone: “Senhoras e senhores, com vocês o maior domador que qualquer picadeiro já viu, ele já enfrentou as mais terríveis feras: leões africanos, ursos americanos; já esteve cara-a-cara com as mais inacreditáveis criaturas: o monstro Lago Ness e o Jacaré do Açude Velho; domou as mais traiçoeiras criaturas: a naja indiana e os políticos brasileiros. Peço, então, silêncio na platéia porque apresentarei a vocês a insana criatura que será domesticada...” com um rufar de tambores tira um tigre de brinquedo de dentro de alforje. Ele arranca aplausos e alguns trocados do público. Ao ver aquela figura melancólica que vai passando indiferente ao show, o comediante brinca:
- Senhoras e senhores, aquele ali também já foi palhaço, mas deixou de pintar a cara. Vejam bem a sua tromba de defunto, seus olhos de finado! Para que vocês não morram em vida é bom usar tinta no rosto de vez em quando, usar nariz vermelho, rir da vida e dos viventes. E para que este palhaço não morra de fome é bom que aumentem o meu cachê.
Dito isso, uma chuva de palmas e moedas cai sobre o artista que curva seu corpo em sinal de reverência e agradecimento. O homem nem se quer captou que foi a deixa para o pedido de dinheiro.
Um pé, depois o outro, passo a passo, foi andando. No seu horizonte não existem palhaços, amigos, conhecidos ou estranhos, apenas seus pensamentos. O que ele pensa?
 Mais à frente, um grupo joga dominó num calçadão. O barulho das pedras sobre a mesa o incomoda. Eles riem alto, não tem como não ouvir. Tenta passar despercebido, mesmo assim, um deles o vê e, acenando, grita:

- Ei! Levanta a cabeça. Ei, tudo em ordem?
- Presta atenção no jogo, é a sua vez. – falou outro em tom de reprovação.
O homem não percebeu o chamado, ou se notou, não deu importância. Prosseguiu, sem muito objetivo. Pessoas passam, olha algumas, rostos desconhecidos ou não, não importa, são todos iguais. “Bons dias”, “ois”, “olás”, alguns esbarrões... muitas coisas. Pra ele: nada.
Depois de muito andar, parou próximo a uma feira popular. Várias bancas, todo tipo de mercadoria e de pessoas. Gente comprando, vendendo, gritando, rindo, discutindo, apenas olhando os outros ou os produtos... Genteando. Finalmente levanta a cabeça, olha ao redor, vê o movimento intenso. Senta-se no meio-fio e percebe: está só.

domingo, 10 de junho de 2018

Ruptura


- Acabou, Larissa.
Me disse Celestino, entre goles. Fiquei muda, não consegui entender aquilo. Busquei em mim um motivo para o rompimento, procurei na luz sem brilho daqueles olhos azuis uma fagulha que clareasse meus pensamentos. Tentei enxergar em sua voz alguma tonalidade de mentira. Não encontrei, falava sério. Mas, não podia ser. Como poderia terminar nossa história? Ele permaneceu ali, olhar fixo em mim, enquanto segurava seu copo de curaçau blue. Eu é que não consegui ficar inteira na sua frente.

Nos conhecemos em um parque de diversões, desses bem grandes, com muitos brinquedos e atrações. Rodas-gigantes, montanhas-russas, carrosséis, mágicos, palhaços. Eu estava com algumas colegas da faculdade, marcamos para fazer um trabalho de Direito Processual Civil, uma chatice, preferimos ir brincar. Ele sozinho, com as mãos nos bolsos, passeando entre as máquinas, encantado com o que via ao mesmo tempo distante de tudo aquilo. Vez por outra, chutava o vento. Achei engraçado. Não tive como não reparar nele. Amor à primeira vista. Sinceramente, nem acredito que exista esse tipo de coisa! Mostrei às meninas aquela interessante figura desinteressante. “É bonitinho”. Disse uma delas, já me puxando para o trem-fantasma. Claro que eu não queria ir. Fui.
Fila, todos olhando para frente, menos eu. Inutilmente tentava encontrar o jovem com camisa azul caixão-de-anjo. Que mau gosto pra se vestir!
Fantasmas, monstros, vampiros, várias imagens assustadoras, que em nada me assustavam.
Sai do brinquedo novamente procurando, naquele momento não entendi por que tanta obstinação.
- Vamos ao labirinto de espelhos! – Gritou Madalena empolgada como criança. Ali todos deveriam ser infantis. Apenas eu preocupada em permanecer adulta.
Espelhos, reflexos, várias de mim. Nosso grupo se dividiu tentando se perder. Quando finalmente me perdi, encontrei Celestino. Sem dúvida o sorriso mais cândido e puro, um pouco de céu, que já vi. Ficamos juntos no labirinto, caçando a saída, sem querer sair.
Comemos pipoca e algodão-doce. Esqueci completamente das companheiras. Gentil, me levou em casa. Esperei ser beijada, mas, não houve beijo, tímido. Achei aquela atitude, ou falta dela, fascinante.
Dois dias depois, ligou. Convite para ir ao cinema. Fiz charme, disse que estava indisposta. Celestino, compreensivo, aceitou. Tive que retornar a ligação.
Cheguei antes dele, ansiosa. Nos encontramos em frente à sala, próximo aos cartazes. Eu de vestido longo e salto quinze, ele de jeans e camiseta polo azul-marinho, estava lindo! Assistimos Trois Couleurs: Bleu. Não foi escolha minha.
Depois da sessão fomos a uma boate. Dançamos, bebemos, conversamos. Soube tudo de sua vida: onde morava, Rua das Violetas; em que trabalhava, oceanógrafo; o time que torcia, Cruzeiro; que adora o Super-Homem. Naquela mesma noite começamos nosso namoro. Amor, tesão, festas, viagens, sempre nós...
Minhas mãos, trêmulas, batiam na mesa do restaurante, remexendo explicações para um ponto final tão brusco, bruto, seco. Na tentativa de encontrar respostas me deparo com mais perguntas: Por que me convidou para esse jantar? Por que dessa forma tão cinza? Sinto algo surgir dentro de mim. Mas, não é vontade de chorar. Olho pra aquele rosto revoltada. Ele pega minha mão, me entrega um anel de safira, seus lábios docemente cínicos me dizem:
- Eu estava brincando!
Em uma mistura de raiva e alívio, meus olhos rachados o encaram enquanto me levanto e grito:
- Odeio azul!

domingo, 27 de maio de 2018

Amor


Jantar romântico, luz de velas, casal apaixonado. Comemoração de bodas, de papel ou de plástico, talvez de mulambo. Vinho português, tinto seco, preferem ao branco. Pratos granfinos, muito em valor, pouco em quantidade. Restaurante em que se faz necessária a reserva com alguns dias de antecedência. Bodas escondidas, romance secreto. Combinaram que hoje revelariam ao mundo o seu amor.
No ambiente se sentam frente a frente. Por enquanto não há beijos, carícias. Nem mesmo um sutil pegar de mãos, ainda se excedem na discrição. Apenas olhares, paqueras contidas.
Não é a primeira vez que saem a sós para jantares, almoços, bebedeiras. Mas hoje havia um diferencial, o fim da timidez, o momento da revelação.
O encontro foi idealizado por Virgínia, ela sempre toma todas as iniciativas. Foi sugestão sua o lugar, o horário, o cardápio, e que estava na hora de mostrarem a todos o seu romance. Não era justo um amor tão sublime, uma paixão tão avassaladora, serem mantidos em total sigilo, restritos ao isolamento de quatro paredes, ao aconchego de lençóis cheirosos, amarrotados.
Virgínia chega primeiro, mulher de decisão. É recebida pelo mètre, e conduzida à sua mesa. Sonha nas cenas que provavelmente ocorrerão dentre em pouco. Há quanto tempo deseja divulgar seu amor. Gritar a quem quiser ouvir, e a quem não quiser também, que não tem o que esconder. Pede o menu. Passa os olhos pelas letras, mas seu olhar é distante, olha com saudade para o futuro. Vinho.
- Uma taça?
- Duas, por favor.
- E para o jantar?
- Por enquanto só o vinho.
Não queria escolher o prato. Ela sempre escolhia tudo. Desejava se tornar mais democrática no relacionamento.
Divaga em pensamentos, agora incentivados pelo vinho. Recorda-se de quando se conheceram, em uma clínica pediátrica, cada qual com uma criança a tira-colo.
- Filho?
- Não. Sobrinho. E essa menininha é sua?
- Minha? É. Minha afilhada.
É pragmática demais pra acreditar em amor à primeira vista, ou ao primeiro diálogo. Mas sabia que algo havia acontecido, como se uma força magnética puxasse aquelas duas pessoas uma para a outra. Encontraram-se outras vezes, não por acaso, em princípio junto com amigos, familiares.
João, na época noivo de Virgínia, um bom sujeito, fiel, pelo menos até onde ela sabia. Alto, corpo não muito atlético, olhos verdes escondidos por óculos redondos, bom coração, excelente cérebro, intelectual, como diziam os companheiros. Funcionário público de um desses tribunais que existem por aí. Bom salário. Três anos de noivado, queria casar. Ela sempre hesitava, não tinha certeza se era isso que realmente desejava. Ele nunca desconfiou que a noiva sentisse atração por outra pessoa. Atração que se transformou em paixão, mútua, correspondida em proporções de contos de fadas. Não teve coragem de acabar o noivado. Mulher de decisão, cheia de indecisões. Viveu a vida dupla por seis meses. Finalmente, há três semanas, devolveu a aliança. João chorou, implorou, ficou perplexo, culpou-se, ameaçou se jogar do viaduto. Não adiantou. E ele não se jogou.
A paquera fica cada vez mais explícita, à medida que as taças são esvaziadas. Já conversam de forma natural e espontânea, não se importam com as pessoas, que, na verdade, parecem não se importar com o casal. Reminiscências amorosas, brindes. Sobre a mesa as mãos vão se juntando, suavemente, como dois adolescentes que se enamoram em sala de aula.
Silêncio. Até a orquestra ao fundo, em sinal de reverência, sossega a melodia. Olhos nos olhos. Não há mais ninguém no restaurante. Lábios nos lábios. Beijo demorado, apaixonado, lascivo. O sinal da independência.
- Amo você. - Diz Clarice.

domingo, 13 de maio de 2018

Narciso


Calça preta, camiseta no mesmo tom, apenas detalhes discretos dourados (mas, sem brilho), sapatênis azuis, relógio grande forjado em titânio. Em pé em frente ao espelho, minutos, sentiu-se bonito, lindo, como nunca havia se visto. Até seus finos braços, que sempre fez questão de esconder, pareciam musculosos. Pronto pra seduzir, irresistível. Olhou o reflexo, desejou a si mesmo. “Eu me pegava”, sussurrou sensualizando para sua imagem. Borrifou, plasticamente em movimentos largos, perfume com nome de carro, olhos nos olhos, sempre.
Quase não sai de casa. Como se deixar? Mas, tinha que ir, estava determinado: o dia do caçador! Virou-se decidido. Jogou as chaves do carro para o alto em sinal de segurança, as agarrou de volta como um punhal. Partiu! Som ligado no carro, olhos vez por outra no retrovisor, não para ver o que havia atrás, olhares! Mãos no volante batucando no ritmo da música, arrisca versos desafinados como se estivesse no chuveiro.
Chega ao destino. Bar amplo com vários ambientes. Festa dos anos 70, local ideal para paquerar, namorar, conquistar... Antes de descer do veículo olhou-se mais uma vez, imaginou as várias possibilidades de como terminaria a noite, mas, em todas, tinha uma certeza, seria uma noite inesquecível na cama com alguém deslumbrante.
Entrou, dono de si e de tudo. Parou, todas as luzes se voltaram para ele. Deslizou entre mesas. Era capaz de sentir os olhares de desejo ou inveja o fitarem. Todas as mulheres, alguns rapazes, cobiçaram o recém-chegado. Encontrou a metade de seus amigos na festa, juntou-se aos dois.
Viu uma morena, sorriso de anjo, olhos do demônio, vestido que mostrava os joelhos, tornozelos grossos, sandálias vermelhas, gestos sutis, aliança na mão direita, acompanhada de três amigas. Aproximou-se com seus amigos. “Ainda sobra uma, dou de conta!” Disse ao colega que sorriu engolindo o veneno.
Entre uma música e um petisco, uma dança e uma dose, um dos amigos beija uma das moças, o outro parece estar perto disso. Ele investe na morena que mostra o dedo anelar. O tempo passa, o sorriso angelical se despede sem aceitar companhia. Os dois companheiros saem junto com as outras moças, as três.
Muda o foco. Uma loira (pintada), baixinha, cintura fina, seios proporcionais, bunda empinada, calça jeans, blusa vinho, casaco e botas pretas, segura, taça na mão, drink vermelho, olhar inquieto, movimentos confiantes. Sozinha ao lado de um balcão, conversa com a moça que prepara as bebidas.
Ele senta ao lado, pede a carta, coça o queixo como se entendesse algo que ali estava escrito.
- Inferno! – sugeriu a loira.
- É bom?
- É como eu! Mas, serve pra você.
Deixa dada. Sabia que apenas sua forma de sentar ao lado daquela mulher seria suficiente, palavras não eram mais necessárias, mesmo assim preferiu abrir a boca:
- Vamos juntos ao inferno?
- Meu fogo é outro! – Disse a moça piscando para a bartender.
Uma ruiva, outra morena, duas negras, loiras não (ficou traumatizado). Todas passaram tão perto. “Mas, foi porque eu não quis” disse se despedindo do segurança barbudo de quase dois metros de altura.
Foi embora na companhia do sol. Som mais alto que antes, batidas na direção, gritos fora do tom, uma certeza: Não havia ninguém pra ele naquela noite. Entrou em casa, acendeu todas as luzes (pra quê?), deixou pedaços de roupa e de si no caminho da sala ao quarto. Deitou a se possuir, lambuzou-se dele mesmo e dormiu saciado.

quinta-feira, 19 de abril de 2018

Acrofobia

Anteu Ramos da Rocha nunca teve medo de altura. Na verdade, tinha paixão por ela. Subir ao máximo possível, desafiar o vento, a poderosa gravidade, o limite dos nervos. Já havia escalado montanhas para contemplar o pôr-do-sol, subido em torres de telefonia na espera da alvorada, driblado guardas para alcançar o topo de monumentos e conseguir capturar o melhor motivo fotográfico. Não existiam obstáculos que o desencorajassem a estar mais perto das nuvens e de seus devaneios. A segurança não era um critério a ser levado em consideração. Pra quê? “Com emoção é mais gostoso”.
Mesmo que não conseguisse amigos, com tempo, coragem ou loucura, para segui-lo no seu ímpeto, Anteu não desistia de atingir o alto. Sua própria companhia lhe bastava, podia quase voar. Seu problema começou exatamente neste “quase”. Apenas escalar não o satisfazia mais, usar pernas e braços não era suficiente, desejava bater asas, um Ícaro em orgasmo aéreo. Observar o sol que girava ao seu redor, perdeu a graça. Olhar para baixo e ter a certeza de que todos, para vê-lo, precisavam elevar os olhos, deixou de despertar interesse. Sentia-se pequeno, menor que os urubus do céu, que se alimentam do podre, mas planam no azul arrotando filé-mignon. Invejava os sinuosos morcegos, as moscas sem preconceito, os cínicos carcarás...
Com o passar do tempo e o aumento da infelicidade, deixou em páginas viradas suas aventuras. Porém, morando num grande centro urbano, era impossível fugir da altura. Apesar de que estar no alto não o alegrasse como outrora, ao olhar por uma janela, parar numa varanda, sentia uma vontade imensa de pular, na esperança de que asas brotassem de suas costas. Isto o encantava e amedrontava. Contudo, não saltava.
Católico, sempre ia à igreja, geralmente sozinho, em horários em que mais ninguém estivesse no templo. Não gostava da missa, ritual demais, mas frequentava, por imposição da esposa, quase todo domingo. Em suas orações clamava a Deus que o libertasse do chão. Brigava com o Todo-poderoso de forma tão veemente e teatral que se alguém o visse, julgaria que se tratava de um louco em desvario. Suplicava que lhe fosse concedido o dom do voo. Jamais pedia qualquer coisa para outras pessoas, cada um deles já tinha seus anseios: comida, dinheiro, sexo, sangue. Ele queria somente ser alado. Trocaria as pernas por penas.
Tarde de terça-feira, igreja de Nossa Senhora da Anunciação. Orou com fé, lubrificou os olhos com esperança. Subiu a escadaria da torre sineira, 171 degraus. Sem qualquer cerimônia realizou um sonho de infância: badalou o sino com força, quase violência. O tinir se misturava à sua gargalhada circense e aos gritos insanos de prazer. Curiosos, sem entender o que acontecia, juntaram no largo da igreja. O padre veio em flecha da casa paroquial, cerca de cem metros ou dois passos. Ao chegar à pequena praça encontrou pessoas com queixos ao chão e olhos para cima. Com receio do que veria, ergueu a cabeça em câmera lenta. Em pé na janela do campanário, com a corda do sino entre as mãos, um homem magro, barba cheia, gravata vermelha e camisa azul com mangas dobradas na altura do cotovelo, hipnotizado.
Um menino gritou “pula”, a jovem ruiva rezava o terço, um senhor de bengala procurava alguém para apostar “cem reais como não se joga”, a moradora de rua bradou “Jesus te ama” e o artista do semáforo ficou com ciúme.
O sacerdote entrou no templo e subiu apressado as escadas. Acrofóbico, venceu a si mesmo e ficou ao lado do suicida.
- O que faz aqui, meu filho?
- Vou voar padre! Já pedi a Deus. O melhor lugar para ser atendido é aqui.
- Entre comigo. Homens não voam!
Anteu encarou o padre com singeleza e afeto, olhou a pequena multidão, plateia, acenou para eles, encerrou o toque do sino, sorriu infantil e perguntou:
- O senhor tem fé?
- Claro, meu filho. Deus é bom!
- Que Ele o ajude! – Disse ao empurrar o vigário.
Segundos eternos de queda. Viu o religioso se espatifar na calçada de mosaicos que formavam imagens de santos martirizados. Anteu sentou, contemplou sangue e lágrimas lá embaixo, entre anjos pensou: “homens não voam!”

quinta-feira, 29 de março de 2018

Uma virgem deflorada

Cá estou eu novamente nesta rodoviária fedorenta, suja, feia, cara de saudade, cheiro de despedida, barulho de lágrimas, sabor de partidas. Luzes brancas ou amarelas, sem muito brilho ou força, denotam ainda mais clima de depressão. Não consigo sentir nela nenhum gosto de chegada ou de retorno. Abraços? Só de adeus. Só eu não parto, nem daqui, nem de mim. Não posso! Na verdade, não quero. Mesmo desejando que isso acontecesse. Talvez quando eu me aposentar. Engraçado, antes eu dizia “quando eu arrumar um emprego”. Eu não trabalho na rodoviária. Sou consultora financeira e dou aula em duas faculdades particulares. Não tenho tempo pra nada, a não ser vir à rodoviária, quase todos os dias. Detesto este lugar! Mas, não consigo viver sem ele. Talvez porque os únicos amigos que tenho atualmente também frequentem o mesmo terminal. Não são muitos. Um bêbado, que todas as vezes mostra um sorriso ao me ver, sorrir de olhos cheios. Diz que sou bonita, entre um gole e outro, elogia meus cabelos, cor de ouro, e meus olhos, cor de terra. Fala que casaria comigo. Claro que eu, mesmo que fosse solteira, não casaria com ele. Meu marido não fede a cachaça, cheira a perfume francês, usa o mesmo desde os tempos da universidade, quando nos conhecemos, forte, muito forte, insuportável, mal consigo respirar com aquele odor permanente em sua pele, em suas roupas, no meu nariz. Mesmo na hora do sexo, que acontece toda sexta-feira, quando ele chega do trabalho, é “a comemoração pelo final de semana”, diz ele. Se eu estiver menstruada, ele entende, afinal, sempre terá uma sexta-feira, mesmo que treze. Nas sextas não venho à rodoviária. Meu marido, que só toma vinho, e aos sábados, pontualmente da hora do almoço ao entardecer, de duas a quatro taças, jamais ficou de porre. Eu já. Queria ficar hoje. Ele gosta que o tratem por Dr. João Carlos de Melo Porto, coitado do porteiro do prédio, que é gago, demora uma eternidade pra conseguir atracar no Porto. Já o bêbado, gosta que o chamem de Galego Filó, e ele nem é loiro. Aqui eu leio os jornais, de qualquer dia, não importa, as notícias são sempre as mesmas, mudam apenas os personagens. Mas, não compro os diários, leio nas bancas, às vezes segurando, em outras, apenas os vendo girar naqueles suportes de plástico transparente em que são colocados. Eu gosto, o movimento, mesmo que do vento, faz com que as manchetes fiquem mais agitadas, quentes, reais, se o jornal for sensacionalista melhor ainda. Leio tudo, até os classificados. Vejo do caderno de política às colunas sociais. Só não gosto da seção policial. Mas ontem, uma notícia me chamou a atenção. A manchete dizia “Mulher mata marido por falta de sexo”. Li três vezes. Não sei como ela teve coragem. Sempre me sinto tão covarde. Fiquei íntima de uma prostituta velha, velha é exagero, tem 52 anos, mas, parece ter 80. Tantas rugas, marcas, cicatrizes no corpo e no espírito. A coitada faz tempo que não consegue um cliente, ninguém mais quer. Ela me disse que agora se tornou mercadoria vencida. Seu último cliente foi o Galego, que quis um boquete, faz umas duas semanas, e deixou fiado. Ela sustenta, a custa de esmolas e não mais sexo, três filhos e deixou outros tantos espalhados pela vida e pelas ruas. Uma noite dessas com os olhos afogados de dor e sal, me disse: “há um pedaço de mim espalhado por cada canto desta cidade.” Ela é a única pessoa que me entende. Acho que é única que sabe o que se passa num coração feminino. Ela, de vestido cintilante curto, bolsa vermelha com alças de metal dourado, sapato salto alto. Dia desses quebrou, andou mancando, dei um dos meus, tenho poucos, toda mulher tem pouco sapato, mas dei um. Doze centímetros, amarelo, lindo, perfeito, só usei uma vez, meu marido disse que era coisa de puta, agora é. Seu cabelo maltratado e mal pintado reflete sua vida que tenta maquiar. Pobre mulher. Podia ter escolhido outra vida. Podia? Quando a vejo, não sei por que, me recordo dos meus tempos de colégio. Na quinta série havia um menino, o mais estudioso da turma, só tirava dez, quando, por um deslize, vinha uma prova com nove, era uma semana de choro. O futuro gênio. Talvez um desembargador, médico renomado, cientista que possivelmente criaria o futuro. Soube que ele engravidou uma menina aos dezessete anos, abandonou os estudos no último ano do ensino médio. Foi trabalhar de peão numa fábrica de cimento. Hoje ele vende coco. Trabalha na praia, sorrindo, e pelo que ouvi falar ganha mais dinheiro que eu, apesar do meu doutorado em comércio internacional. Tinha outro, Paulo César, magrelo, esquelético, sardento, joelhos ossudos que dava pra perceber mesmo sob as calças, orelhas de abano que ornamentavam a cabeça grande e os cabelos assanhados, dentes imensos, que quando sorriam apresentavam rugas na face, não pela idade, mas pelo excesso de pele sem preenchimento no rosto, lábios carnudos, porém sempre rachados, às vezes sangrado, que o menino cabisbaixo, escondia com a mão esquerda, enquanto a outra usava a caneta. Era apaixonado por mim. Eu tinha era vergonha daquele sentimento, pena talvez. As meninas me perturbavam por causa disso, eu preferia evitá-lo. Sentar perto dele na sala? Nem pensar. Fomos colegas três ou quatro anos, não lembro direito. Ele chegou a me pedir em namoro através de uma amiga, fingi que não recebi o recado. Eu era tão bonita! Sempre fui. Raquel, minha vizinha de infância, mal-amada! Me disse que ele hoje trabalha como modelo fotográfico, cai mais dinheiro no seu bolso do que todas as folhas no outono. Tudo graças à sua beleza. Um deus nórdico. Com sardas e tudo! Semana passada o Galego me deu flores. Não era um buquê, apenas um molho de rosas e violetas, umas duas tulipas brancas, todas já murchas. Roubou dos jardins das casas próximas à rodoviária. Ele me entregou com olhos de álcool e desejo, as mãos trêmulas não escondiam os arranhões causados pelos espinhos. Havia sangue também em sua perna, foi mordido por um vira-lata, fiquei feliz por não ter sido um pit bull. O cachorro guarda um convento carmelita que fica a uns dois quarteirões daqui. Muros altos, amarelos, escondem as freiras e um jardim lindo, flores de todas as cores, belas. É sempre assim, as mais lindas e puras flores estão escondidas atrás de muralhas. Só não sabem eles que todo muro é transponível. João Carlos já me mandou flores, entregues por um motoboy, cartão impresso: “com amor”, assinatura com a caligrafia da secretária. Guardei num jarro de cristal que tinha ganhado no último dia das mães, queria jogá-lo janela abaixo, quem sabe caísse na cabeça dele quando voltasse pra casa, em uma tarde-noite de sexta-feira. Toda rodoviária tem pelo menos um bar. O bar faz parte das viagens, sobretudo daqueles que permanecem no mesmo lugar. Sou amiga do dono de um boteco desses. Um libanês com cara de alemão e jeito de argentino. O botequim fica ao lado dos banheiros, um balcão grande separa o dono dos clientes, sobre o mármore branco e frio que lembra um túmulo, uma estufa com salgados, coxinhas e pastéis de ontem. Uma bacia verde cheia de cocadas e moscas fica ao lado dos copos americanos, emborcados sobre uma bandeja prata. Na parede prateleiras com todas as bebidas do mundo, tem até garrafa azul. Acho que quem beber aquilo deve ver o céu, com todas as estrelas e vários sóis. Seu Samir, sempre com uma rodilha no ombro, onde limpa as mãos e enxuga os copos, me diz que sou muito burocrática até pra pedir uma coxinha. Ele nunca sorrir, mas, me manda rir da vida. Ele diz: “Menina, a vida é um chocolate no calor, se você não comer, ele derrete.” Meu marido jamais me deixaria frequentar um ambiente como esse bar, contaminado de gente. Perigo. Vou sempre, ele nunca pergunta onde estive, diz que confia em mim. Um pouco de desconfiança seria tão excitante. Ciúme lascivo. Raiva luxuriosa. Um trincar de dentes que se converteria em mordidas de ódio e tesão. Pedaços de pele entre unhas, minhas unhas. Cabelos entre dedos, seus dedos. No domingo ou talvez na quarta, podia até ser na sexta. Parede azul claro, cama com edredom lilás, travesseiros no chão, roupas no teto, nós no inferno, queimando no fogo do pecado da carne. Um céu! Música, sem letra, só sussurros. Jogo de vai e vem. Molejo de quadril. Uma fome tão grande, que após saciada, só queremos dormir e sonhar. Mas, isso é sonho. Nem nas melhores sextas! Queria conversar com uma senhora que vejo sempre que venho ao terminal. Sentada no mesmo lugar. Canteiro central da avenida em frente à rodoviária, fumando um cigarro de palha, olhando para o mesmo lado, paisagem urbana mutável e sempre igual. Faça chuva ou sol, uma pequena sombra que a acolhe. Tirei uma foto sua. Nunca mostrei o retrato, não tenho coragem. Meu desejo é de fazer perguntas, mas tenho medo das respostas. Talvez ela seja igual a mim. Tão cheia de pensamentos. Inundada de todas que me compõem. Ela é muito eu para que eu me aproxime. Hoje vim de vermelho, cor do amor, da paixão, do coração. Ele é vivo, vibrante. Me lembra vinho, sexo... sangue, violência e um desbotado esquecimento. Ouvi sons de sirenes, ambulâncias, deve ter sido algum acidente, mortos talvez. Alguém passa correndo gritando que o caminhão do lixo atropelou um bêbado. O asfalto foi pintado de sangue e conhaque barato. Não me interessa. Hoje é sexta, estou esperando pelo Galego, nesta hora ele sempre está aqui, nunca falhou. Por que não chegou ainda? Talvez esteja catando flores. Vou trepar com ele, dentro do banheiro masculino, naquele fedor, cheiro de homem, se alguém ver será melhor, ficarei excitada com excitação de quem nos flagrar. Quero saborear seu hálito de cana, sentir o seu suor. Farei sexo pela primeira vez. Uma virgem deflorada.