O homem saiu de casa, manhã de segunda-feira, não vai
trabalhar, não naquele dia, quer apenas andar. Logo na porta de casa encontra a
moradora do lado regando algumas flores, brancas, vermelhas, violetas, não
importa a cor ou sua suposta beleza, todas têm espinhos. Não gosta de flores,
não pode se agradar de uma coisa que serve para declarações de amor e desejos
de pêsames. A mulher cantarola uma canção, pra ele não interessa qual, não via
motivos pra cantar. Não a olhou, mas percebeu que sorria. Nunca a cumprimentou.
Por que ela insiste em falar com todas as pessoas que passam na rua?
- Bom dia! Está fazendo uma bela manhã. – Disse ela
- É. – responde secamente.
Seguiu se afastando, por um tempo ainda ouvia o barulho da
água banhando as flores. Caminhou, pensativo, cabisbaixo, as únicas coisas que
enxergava eram o chão irregular, sujo e seus sapatos, que, aliás, precisavam de
graxa. Pensou em parar num mercado e procurar um daqueles garotos com caixas de
madeira, pedir para dar uma lustrada nos seus pés. Depois pagaria com uma nota
graúda e deixaria o troco, sairia sorrindo enquanto o moleque pulava de
alegria. Mas ponderou, estava precisando do dinheiro talvez até mais do que qualquer
engraxate. Não poliu os sapatos, nem lavou a alma.
Um pouco mais adiante, sei lá, devia ter andando uns dois ou
três quarteirões, cruzou com um amigo que não encontrava há quase um ano. Um
bom amigo, se viam pouco, mas isso não importa, o vai e vem da vida faz com que
as pessoas também vão e venham.
- E aí cara? Que prazer encontrar contigo. – falou o colega ao preparar um abraço.
- O prazer é meu. – respondeu, sem parar ou levantar a
cabeça. Pra quê? Para ver que o amigo não entendeu nada, que ficou congelado, de
braços abertos, Cristo Redentor?
Continuou sua jornada solitária. Passou por um parquinho,
desses que montam nos lugares públicos, com brinquedos de madeira, escorregos,
balanços, gangorras, escadinhas, grama, bolas... Dezenas de crianças brincavam,
corriam, gritavam, e gritavam muito. Ali próximo várias mães, babás e alguns
pais observavam os pequerruchos e suas peripécias. Uma menina de oito ou nove
anos veio em carreira olhando para trás, seus cabelos cacheados soltos ao vento
parecem impulsionar sua velocidade. Esbarra no homem, cai sentada no chão,
assustada. Com os olhos arregalados em lágrimas e brilhando de medo a pequena
diz:
- Desculpe, senhor.
Não é sentimental. A queda ou o pedido de perdão foram indiferentes.
Não precisou responder. Uma jovem mulher, veio correndo, pegou a menina no colo
e o fitou como se ele a tivesse derrubado, olhar de reprovação, penalização. Não
se sentiu culpado, mas teve pena de si. Avançou em seu caminho, sem ao menos
saber para onde ir.
Após o parquinho, havia uma praça, com flores (elas de novo) grandes
árvores com casinhas de pombos, bancos de madeira onde sentam senhores com
saquinhos de pipoca para alimentar as aves. No canteiro central um coreto,
construído nos moldes da arquitetura do inicio do século XX. Lá se reúne um
grupo de saudosistas senhores, que há décadas formou uma banda musical. Hoje em
dia, todas as sextas-feiras eles estão tocando na praça. Cada um traz seu
instrumento, alguns reluzindo como se novos fossem. Há um senhor que nos anos
sessenta tocava trombone de vara, mas um câncer na garganta o afastou dos sopros
musicais, porém, a doença não o impediu de musicar. Vem todas as semanas, não
falta mesmo que chova, traz um reco-reco e fica fazendo zuada, tem até quem o
aplauda. Toda sexta se encontram, mas é segunda, o coreto está vazio.
Um pequeno grupo começa a se formar sob a sombra de uma mangueira.
Um palhaço grita: “Senhoras e senhores, distinta e educada platéia, meu cordial
bom dia! Venham ver o maior espetáculo da terra, o incrível circo mambembe, saltimbanco,
imaginativo de um homem só.” O humorista faz falsos truques de mágica, tira um
coelho de pelúcia de uma cartola, acrobacias, malabarismo com três bolinhas
coloridas, azul, vermelha e amarela. Faz números que ele classifica como
perigosos, equilibrando-se sobre uma corda estirada no chão, finge que está a
metros de altura, anuncia um domador de animais em que, pateticamente,
transforma-se, ele grita num megafone: “Senhoras e senhores, com vocês o maior
domador que qualquer picadeiro já viu, ele já enfrentou as mais terríveis
feras: leões africanos, ursos americanos; já esteve cara-a-cara com as mais
inacreditáveis criaturas: o monstro Lago Ness e o Jacaré do Açude Velho; domou
as mais traiçoeiras criaturas: a naja indiana e os políticos brasileiros. Peço,
então, silêncio na platéia porque apresentarei a vocês a insana criatura que
será domesticada...” com um rufar de tambores tira um tigre de brinquedo de
dentro de alforje. Ele arranca aplausos e alguns trocados do público. Ao ver
aquela figura melancólica que vai passando indiferente ao show, o comediante
brinca:
- Senhoras e senhores, aquele ali também já foi palhaço, mas deixou de pintar a cara. Vejam bem a sua tromba de defunto, seus olhos de finado!
Para que vocês não morram em vida é bom usar tinta no rosto de vez em quando, usar
nariz vermelho, rir da vida e dos viventes. E para que este palhaço não morra
de fome é bom que aumentem o meu cachê.
Dito isso, uma chuva de palmas e moedas cai sobre o artista
que curva seu corpo em sinal de reverência e agradecimento. O homem nem se quer
captou que foi a deixa para o pedido de dinheiro.
Um pé, depois o outro, passo a passo, foi andando. No seu
horizonte não existem palhaços, amigos, conhecidos ou estranhos, apenas seus
pensamentos. O que ele pensa?
Mais à frente, um
grupo joga dominó num calçadão. O barulho das pedras sobre a mesa o incomoda. Eles
riem alto, não tem como não ouvir. Tenta passar despercebido, mesmo assim, um
deles o vê e, acenando, grita:
- Ei! Levanta a cabeça. Ei, tudo em ordem?
- Presta atenção no jogo, é a sua vez. – falou outro em tom
de reprovação.
O homem não percebeu o chamado, ou se notou, não deu importância.
Prosseguiu, sem muito objetivo. Pessoas passam, olha algumas, rostos
desconhecidos ou não, não importa, são todos iguais. “Bons dias”, “ois”,
“olás”, alguns esbarrões... muitas coisas. Pra ele: nada.
Depois de muito andar, parou próximo a uma feira popular. Várias
bancas, todo tipo de mercadoria e de pessoas. Gente comprando, vendendo,
gritando, rindo, discutindo, apenas olhando os outros ou os produtos... Genteando.
Finalmente levanta a cabeça, olha ao redor, vê o movimento intenso. Senta-se no
meio-fio e percebe: está só.