sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Espírito de natal


É natal, ou noite de festa, como se diz no Sertão. Severino tem trinta e oito anos, dois filhos, trabalha numa repartição pública, mora em uma casa confortável, tem carro, não tem do que reclamar em seu padrão de vida. Porém, como em todo natal, Severino está triste, o motivo, jamais conseguiu resolver a grande dúvida de sua vida: afinal, Papai Noel existe?
Todos os anos a comemoração natalina na casa de Severino é igual, ele compra presentes para os filhos, sempre atendendo aos pedidos colocados dentro de meias e pendurados na lareira, isso mesmo, lareira, com chaminé e tudo, é bem verdade que poucas vezes foi utilizada, também com o calor que faz na Paraíba, estado em que a família mora. A árvore está perfeitamente enfeitada, com bolas, sinos, papais-noéis, guirlandas, tudo que se tem direito. Os presentes à festa usam gorros vermelhos, comem peru, panetone, cantam Jingle Bells, existe até uma máquina que fabrica neve de mentira. O dono da casa tenta se manter alegre, mas não consegue pensar noutra coisa senão em seu dilema.
Depois da meia-noite, aos poucos todos vão dormir, menos Severino que continua a contemplar sua árvore. Por volta de uma da manhã a campainha toca. “Quem será numa hora dessas?”. Bem devagar ele abre a porta, do lado de fora estava uma figura curiosa, um senhor gordo, com uma enorme barba branca, vestido com uma bermuda, uma camisa de meia e sandálias de dedo.
- Há, há, há - sorriu o estranho.
- Não entendi! - Espantou-se Severino.
- Você queria que eu chegasse fazendo, hô, hô, hô? Lamento, mas ninguém ri assim na vida real - Respondeu o velho.
- Quem é você?
- Ora, quem sou. Sou Papai Noel.
- Claro, e eu sou um dos duendes - Ironizou Severino.
- Não, você é um pouco mais alto do que eles. - Rebateu o velho, que continuava em pé do lado de fora da casa.
- Olha, já é tarde, eu preciso dormir, boa noite! - Disse Severino tentando encerrar a conversa.
- Sei que não é muito cedo, mas infelizmente eu não tenho mais o mesmo pique de antes, me perdoe. - Desculpou-se o barbudo.
- Está bem Papai Noel, por que você não deixa para me visitar num outro dia, quem sabe no ano que vem?
- Porque você precisa de mim hoje. Olha, poucas pessoas têm o privilégio de me verem pessoalmente, todos os anos eu escolho apenas duas pessoas, você é uma delas, parabéns.
- É mesmo? E quem foi a outra? - Novamente ironizou Severino.
- Uma pequena de treze anos. Criança esperta, mora lá na Coreia do Norte, adorei conhecê-la.
- Tchau. Vá com Deus! - Falou Severino já com um pouco de irritação.
- Por que você está tão descrente? Afinal, você é um dos poucos adultos que acreditam na minha existência.
- Como sabe disso?
- Sou Papai Noel, leio suas cartas. Papai Noel, ou você preferia que me apresentasse como Santa Claus?
- Olha, eu não sei o que você quer, mas não tenho tempo para ficar aqui fora, com licença - Disse Severino já fechando a porta.
- Você gostou do telescópio que ganhou quando tinha dez anos? - Perguntou o estranho.
A porta se fechou. O homem ficou parado no mesmo lugar em que estava antes. Alguns segundos depois, a porta se abriu. Severino olhou para o velho e perguntou.
- Quem lhe contou sobre o telescópio?
- Eu o dei pra você, ora bolas.
- Você não é Papai Noel. E se for o que aconteceu com a roupa vermelha? Você foi assaltado? - Perguntou Severino em tom de gozação.
- Não, claro que não. Aquelas roupas eu até que uso, mas apenas quando estou em lugares frios, convenhamos, aqui eu iria derreter com aquilo, este modelo é bem mais confortável.
- Ah é, eu tinha esquecido do calor. Mas e cadê seu trenó, as renas?
- Estacionei aí de frente, espero que não se incomode.
Severino olhou e viu uma carroça puxada por um jumento. Em cima da carroça havia um grande saco vermelho. Notando o espanto do anfitrião o velho se apressou em explicar.
- Ele é muito útil, as renas são boas, mas só trabalham pra valer mesmo no polo norte, é a história do clima de novo.
- Um jumento? Seu trenó é uma carroça puxada por um jumento?
- Qual o problema? Um desses carregou Jesus e a virgem Maria. Por que não pode conduzir Papai Noel? - Explicou o homem.
- Você é louco!
- E quem não é?
- O que tem no saco?
- Muitas coisas. Brinquedos, presentes, sonhos, fantasias. Muitos produtos, alguns com preço imensurável.
Severino correu para a carroça, abriu o saco, ficou espantado quando percebeu que o saco, embora aparentasse um grande volume, estava totalmente vazio. O estranho esclareceu:
- Apenas os donos dos sonhos podem vê-los, tocá-los ou senti-los. Para os demais eles são invisíveis ou mesmo inexistentes. No natal todos aqueles que têm a coragem de sonhar, de viajar, sem medo, pelo universo da própria mente recebem presentes, não o que pedem, mas o que verdadeiramente desejam. O problema é que a maioria não consegue ver tais maravilhas porque para enxergá-las é necessário que se feche os olhos, muitos ainda temem o escuro.
Ouvindo isso, Severino olhou para o céu, as estrelas pareciam brilhar mais intensamente, ele as contemplou por um breve instante, fechou os olhos e voou. Quando se voltou para o velho percebeu que ele havia sumido juntamente com a carroça, o jumento, o saco, tudo desapareceu. “Terá sido um sonho?” pensou. A resposta ele nunca teve, porém daquela noite em diante suas noites de natal passaram a ter menos glamour, entretanto muito mais magia, fantasia e realidade.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Imagem e imaginação


Quando fiz esta fotografia, em um anoitecer chuvoso na cidade de Campina Grande, de imediato pensei em colocá-la no blog. Vários textos me vieram a cabeça, alguns explicativos, outros bem mentirosos (melhor dizer: voltados para a ficção), entretanto, acredito que quaisquer palavras (inclusive estas) não serviriam para legendar a imagem ou, por outro lado, poderiam tirar o caráter emblemático existente no retrato.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Arte


Teatro:
Palco, luz, cena
Emoção, lágrima, vida
Talento, suor, lida
Alegria, verdade plena...

Pintura:
Tinta, cena, imagem
Vida, suor, momento
Lida, emoção, talento
Alegria, lábios reagem...

Dança:
Luz, cena, tablado
Vida, emoção, choro
Talento, corpos em coro
Alegria, sorriso gamado...

Literatura:
Cena, tinta, papel
Romance, vida, alegria
Talento, prosa, poesia
Prazer, sorriso fiel...

Música:
Cena, palco, luz
Vida, lágrima, emoção
Som, talento, transpiração
Alegria, sorrisos nus...

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

...apenas trabalho.


Lá estava eu, dirigindo no trânsito de Campina Grande. Ruas estreitas, motoristas apressados buzinando sem necessidade, motoqueiros ultrapassando pela direita (também já fiz isso, mas agora ando sobre quatro rodas). Guiando na companhia de Chico Buarque, meus polegares batem no volante tentando acompanhar o ritmo do Samba de Orly. Balbucio pequenos versos, sem me preocupar com afinação ou entonação. Sinal fechado. Paro atrás de um carro branco, automaticamente meus olhos lêem a filosofia de para-choque de caminhão escrita no vidro traseiro do Chevrolet: “não sinta inveja de mim, não sou rico, apenas trabalho.” A poesia musicada foge da minha cabeça, minha concentração é total na sabedoria da frase à minha frente.
Já havia lido a máxima em outros lugares, pregada nas paredes de muitas salas de estar, colocada sobre cofres em bodegas, escrita com pincel atômico nas portas dos banheiros públicos. Mas, desta vez foi diferente, a sentença me fez perder a atenção no tráfego ou em qualquer outra coisa, incluindo Chico Buarque que ficou falando sozinho, coitado.
A oração não é um lema contra a inveja, nem mesmo a condena em seus muitos aspectos, afinal ela não dizia: não sinta inveja de mim ou simplesmente: não sinta inveja, podendo até ser acrescida de: isso é feio, ofende. Em sua profundidade a frase não censura o pecado capital, repudia, apenas, que o sentimento seja contra um cidadão desafortunado. Meditei. Cheguei à conclusão de que, tomando por base o texto, alguém pode ser invejoso, desde que a pessoa foco desse desejo “pecaminoso” seja abastado financeiramente, não somente um mero e esforçado trabalhador. Isto é, o dito poderia ser re-escrito mais ou menos assim: De mim você não pode sentir inveja, não sou rico. Mas do Sílvio Santos pode.
Sou metido a escritor, gostaria que meus rabiscos (mesmo tortos) causassem alguma reflexão, positiva ou não, nos leitores. Acho que fiquei com inveja do autor da frase.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Bibliografia



Na minha infância, quando ainda era um menino de engenho, conheci a moreninha que mudou minha vida, Lucíola, fiquei doidinho. Foi na tarde da terceira feira de agosto que nós começamos na libertinagem. Perdemos a inocência em cinco minuto. Éramos a mão e a luva. Ela era minha estrela da tarde. Eu tinha com ela sonhos d’ouro. Eu a chamava de negrinha e ela me chamava de o anjo. Mas ela começou a descoberta do mundo, fez uma viagem para não mais voltar. Azedou meu riacho doce. Sem dúvida me foi armada uma tocaia grande. Lucíola era bonitinha, mas ordinária. Passei a viver em angústia.
Resolvi, então, ser padre, me tornei o seminarista. Um dia em uma casa de pensão encontrei uma senhora, Clara dos Anjos, diziam que ela era uma mulher obscura, um demônio familiar, para mim, porém, foi a ressurreição. Tivemos bonitas histórias da meia-noite. Os espectros do passado se tornaram fogo morto. Mas infelizmente nosso romance foi apenas um sonho de domingo.
Com isso, sai do seminário. O bispo, Dom Casmurro, não gostou da ideia, quis saber o porquê, fez várias perguntas, foi o santo inquérito, mas nada adiantou, estava decidido.
Voltei para o ateneu em que estudava antes. Algum tempo depois, junto com alguns amigos, éramos seis, formamos os pastores da noite, uma turma que gostava de curtir a vida noturna. Às vezes me lembrava de os dois amores que tive, mas minha vida agora era outra, minha mãe dizia que era a bagaceira. Nós adorávamos usar as máscaras de carnaval. Alguns hipócritas preconceituosos cochichavam quando nos viam “eles não usam black-tie”, mas nós não ligávamos e continuávamos com nossas sinfonias feitas com cavaquinho e saxofone.
Em uma noite na taverna conheci uma mulher casada, Marília de Dirceu, começamos a ter um caso, nossos encontros eram em o cortiço que havia no bairro e em um motel chamado tenda dos milagres. Acontece que Dirceu descobriu nosso romance. Na hora o que passou pela minha cabeça foi fugir da Via Láctea. O marido enfurecido me encontrou, tive que me defender. Marília se tornou a viuvinha e eu o prisioneiro.
Na cadeia conheci muita gente: Quincas Borba, um homem que se intitulava de o pagador de promessas, um lunático que dizia ser o homem que matou Getúlio Vargas e até uma drag queen que usava um indefectível vestido de noiva e que gritava ser a mulher que matou os peixes, não entendi nada.
A pior coisa na penitenciária era que lá eu não conseguia sentir duas coisas que aprendi a observar: o tempo e o vento. As primaveras que passei não tinham flores, só espinhos, mas não reclamava, sabia que estava passando por o castigo da soberba.
Certa vez, encontramos um colega de cela pendurado nas grades, se enforcou com um lençol, em sua camisa estava escrito “a morte e a morte de Quincas Berro D’água”, ele gostava desse apelido, alguém ao meu lado gritou: “o que é isso companheiro?”, aí eu disse: “isto é o triste fim de Policarpo Quaresma, espero que tenha melhor sorte em outra encarnação”.
Quando sai da prisão, tentando esquecer o passado, pensei em entrar para a legião estrangeira, mas tudo que via ou ouvia me trazia de volta as velhas memórias do cárcere. Bom, pelo menos consegui um emprego, entrei para uma equipe de vendas chamada de capitães da areia, andávamos pelo país do carnaval vendendo tudo que é bugiganga. Minha função era vender relíquias de uma casa velha, objetos que ninguém queria comprar. Não fiquei rico, mas vivi boas aventuras: descobri as mentiras que os homens contam, conheci os sertões e o grande Sertão: veredas, vi pessoas e suas vidas secas, passei por cidades mortas, me encontrei com cangaceiros, ouvi as vozes da América e a música do Brasil, consegui até, acreditem, ver o sorriso do lagarto. Numa dessas viagens, quando passávamos por uma cidade chamada Pedra Bonita, observei uma dupla de repentistas fazendo desafios, primeiro cantaram as memórias de um sargento de milícias, depois duelaram rimando com as memórias póstumas de Brás Cubas. Ali fiquei alguns minutos e conheci Helena, a filha do diretor do circo, que estava na cidade, ela era linda, tinha um brilho que eu jamais havia visto, parecia uma mulher vestida de sol. Nos conhecemos e iniciamos um romance. Sai das vendas e entrei para o circo, me tornei palhaço, meu nome era Caramuru.
O pai de Helena era um péssimo patrão, morava num grande trailer, enquanto os outros artistas se amontoavam em pequenas barracas. Parecia a divisão casa grande e senzala. Helena também sofria com as atitudes do pai, coitada, era uma pobre menina rica.
Em uma manhã fui informado que Helena tinha sido mandada pelo pai para uma cidade grande a fim de estudar. Novamente fui abandonado. Sai do circo e nas margens do rio piedra eu sentei e chorei. Descobri que há uma gota de sangue em cada poema e que amar, verbo intransitivo.
Depois de ter passado pelas torturas de um coração, hoje, sento na minha cadeira de balanço, fico lembrando minhas histórias sem data, e agora sei que querendo um lugar ao sol vivi o verso e reverso da moeda. Mas não perdi a esperança, afinal, não adianta chorar o leite derramado, sei que para todos existe a hora da estrela, a minha ainda vai chegar, nem que para isso eu tenha que ir viver aventuras em outro solo, sei lá, talvez em Budapeste.
Júlio César Rolim

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Ave Marias


Oito de dezembro, dia da Imaculada Conceição. Uma pequena capela erguida em homenagem à santa na década de 1930 por um padre italiano que veio para o Brasil fugido do regime fascista. A igrejinha possui duas torres, portas e janelas arredondadas, fica no topo de uma ladeira e de lá é possível ver toda a cidade de Nova Princesa, que aliás não é muito grande. Lá dentro, a via sacra toda retratada em telas que foram trazidas de Milão. As poucas imagens (uma de Jesus, uma de São Nicolau, uma de Santo Antão e uma de Nossa Senhora da Conceição, padroeira da cidade) são todas esculpidas em madeira. Em frente ao altar estão ajoelhadas três irmãs, todas com nome de Maria, mais uma homenagem prestada à mãe de Jesus.
A mais velha, Maria da Conceição, está bem em frente ao altar, com um terço na mão e outro no pescoço ela olha fixamente para a imagem de Nossa Senhora enquanto reza alguns mistérios. Cada vez que fala “Santa Maria...” se lembra de sua própria santidade. Conceição é casada com Paulino, mas ela prefere chamá-lo de Paulo por causa do apóstolo. Dizem as más línguas que ela, entoando ladainhas, na tentativa de purificar o companheiro, bate no pobre infeliz com um rosário de madeira que pertenceu a sua avó. Mas, talvez isso seja apenas lorota, fofoca inventada pelos desocupados da rua que ficam todas as tardes nas calçadas falando da vida alheia. Onde já se viu uma mulher sem pecado cometer uma atrocidade dessas. Deve ser fuxico! Embora, o seu Tico do Boteco, um senhor careca que cultiva um bigode desde a adolescência e é proprietário de um bar perto da casa do casal, diga que a beata já foi, de rosário em punho, retirar o marido do balcão do estabelecimento. Segundo o velho, ela, antes de entrar no “antro de perdição” se benzeu três vezes, Paulino baixou a cabeça e saiu com a esposa, nem se quer pagou a conta. Conceição antes de sair parou na porta, bateu a poeira das sandálias e foi embora. Bem, se isso for verdade talvez esteja certa, afinal ela vai pro céu e aqueles bêbados, coitados, vão arder no fogo do inferno. Pelo menos é o que diz todas as vezes que vai para a igreja e passa na calçada do bar. Conceição é uma sofredora, é intrigada dos vizinhos, das cunhadas, da sogra e de alguns outros parentes, mas a culpa sem dúvida é deles. O povo de Deus é sempre perseguido!
A segunda irmã é Maria de Lourdes, ajoelhada à direita de Conceição. Parece uma vitrine de loja de artigos religiosos. Está com um terço de madeira nas mãos, umas quatro ou cinco fitinhas nos pulsos, no pescoço possui outro terço, um crucifixo de ouro (que vale uma nota), um escapulário de Nossa Senhora do Carmo, uma medalha com a imagem do papa Bento XVI e o medalhão do Apostolado da Oração, veste uma camiseta com a estampa da Sagrada Família e usa brincos com inscrição IHS.
Lourdes é, como se diz no Sertão, uma moça velha, dessas que abominam sexo e casamento, coisas inventadas pelo diabo. Segundo os asilados, que gostam de se reunir no calçadão do centro da cidade, nos idos dos anos sessenta a jovem Lourdes, na época uma bela garota de sonsos olhos verdes, participou de algumas devassas festinhas empestadas de luxúria. Olhando esses mesmos olhos tão cheios de fé, fica a dúvida se as histórias são verídicas ou apenas fruto da mente pervertida de algumas pessoas. Cada vez que ela reza uma Salve a Rainha, principalmente naquela parte “...doce, sempre virgem Maria” se lembra da sua própria pureza. Quando não está rezando, Lourdes gosta de ficar conversando com as comadres na calçada, comentando quem vai e quem não vai para o céu. Na casa dela não tem televisão, considera o aparelho a forma mais rápida de levar a mensagem de satanás para o mundo. Mesmo assim, nossa fiel católica não dorme cedo, prefere ficar acordada olhando pelo vitrô da porta quem passa na rua e o que faz. Não faz isto por mal, é apenas para saber quem está no pecado, para então poder pedir a Deus por aquelas pobres almas perdidas.
A caçula é Maria das Graças, ou simplesmente Graça, como é chamada pelos mais íntimos. É a intelectual da família, formada em Filosofia, com mestrado em Ética e Moral e doutorado pela Pontifícia Universidade Gregoriana. Leciona em uma universidade próxima a Nova Princesa. Coordena um grupo de religiosos, fundado por ela mesma, chamado “Filhinhos do Coração de Maria”, a instituição que já está presente em mais de vinte municípios prega a conversão das pessoas aos ensinamentos do evangelho. Graça é idolatrada pelos membros da organização, os quais acreditam cegamente que ela fala com Nossa Senhora. Realmente em suas andanças, leva recados que a mãe do Salvador manda para as pessoas. Graça é uma espécie de pombo-correio divino, alguém com livre acesso no céu. Recentemente teve uma pequena desavença com um dos grupos de jovens da paróquia, o motivo é que ela considerou que o grupo estava se dedicando muito a coisas sem sentido como fazer campanhas beneficentes e assistencialistas e se esquecendo das boas e velhas orações. A líder deve estar com a razão, afinal, ela é quem é íntima do Todo-Poderoso e não aqueles moleques abusados. Para se ter uma ideia de como Graça tem influência com a comunidade celestial, várias vezes colocou pecadores para fora da fila da comunhão, certamente porque Deus deve ter lhe dito que aqueles ímpios não mereciam receber o Corpo de Cristo. Como boa seguidora que é, os arrancou da fila.
Graça faz suas orações, entre uma Ave-Maria e outra, murmura trechos de músicas sacras, cada vez que repete a frase “Ave Maria cheia de graça...” se lembra que também é uma mulher agraciada e bendita entre as demais.
As três terminam suas orações, levantam, olham para os lados e vão embora na certeza de que cumpriram suas obrigações cristãs. “Ave Maria...”

terça-feira, 13 de julho de 2010

Bandeiras




Assistir à copa do mundo em São José de Piranhas é muito mais emocionante. Todo jogo é dia de festa! Também pudera, Jatobá é a cidade mais festeira do Brasil. As pessoas se reúnem nas casas, calçadas, bares. Ao final da partida, tendo vitória brasileira, é formada uma carreata (carreata é modo de falar, porque tem carros, motos, bicicletas, pedestres), todos comemorando o resultado. Os torcedores-foliões, concluída a volta pelas principais ruas da cidade, continuam a festa, afinal, compra-se cerveja para os preparativos, os durantes e os posteriores. Apesar de todo esse clima festivo, a cidade não estava ornamentada para a competição, embora os moradores tenham paramentados suas residências. Nada de ruas pintadas, de bandeiras no alto da torre da “telpa”, de faixas verde e amarelo... Exceção feita a algumas bandeirolas (acho que juninas!) que enfeitavam a Praça da Alimentação, no centro da cidade, e duas Bandeiras Nacionais de cabeça pra baixo (?) hasteadas na mesma praça. Confesso que quando vi o símbolo da República colocada daquela forma, reprovei de imediato. Entretanto, passada a copa e aquele fatídico jogo em que a seleção brasileira jogou contra Felipe Melo, penso que, na verdade, aquilo foi um sinal, uma premonição futebolística, uma mensagem subliminar que queria nos dizer cada vez que passávamos pelo principal ponto de encontro de Jatobá: “Essa copa já era. O Brasil não passa das quartas.” Nunca acreditei em previsões de futuro, mas agora fico em dúvida, talvez o Lábaro tenha sido levantado com faixa “Ordem e Progresso” de ponta-cabeça em protesto à seleção que não traria o hexa, mesmo sabendo que as bandeiras foram afixadas antes no início do torneio mundial. É possível! Espero que em 2014 a bandeira esteja tremulando em todos os lugares do país do futebol, mas, desta vez, com vinte e seis estrelas em baixo e apenas uma sobre o lema na Flâmula.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Chuva


A chuva cai pra cima
pra cima de nossas cabeças
desprovidas de proteção, guarida.
Gotas brilhantes escorrem pelo rosto,
reluzindo os raios do sol
de um sol que teima em não aparecer.
Rostos opacos, trêmulos de angústia ou de frio.

Na solidão das multidões
a chuva se mistura com falta de calor
humano.
A água faz escorrer a maquiagem
mas não tira as máscaras das faces.
Na busca por abrigo
corpos separadamente juntos.


Júlio César Rolim

sábado, 29 de maio de 2010

Num bar de Campina



As pessoas na mesa ao lado discutem sobre os limites dos cartões de crédito. Se dizem controlados e admitem que precisam economizar, sei lá. Tento me concentrar em meu copo, não consigo. As falas, muito altas, como se fossem pra chamar a atenção, tiram o prazer da minha loira.
Os dois homens abastados dialogam sobre quem tem o maior limite de crédito. É coisa de muitos zeros, algo irreal para o meu orçamento e para o meu cartão que, no meu bolso, fica tímido diante do poder dos concorrentes. A conversa é de alto nível, ou melhor, de altas cifras e alto som. Todos escutam, as mesas se tornam platéia, teatro de arena, estrategicamente a dupla está no centro. Eu, bem próximo, sozinho com minha garrafa, penso se todos prestam atenção à conversa dos milionários. Devo ser curioso, um verdadeiro fuxiqueiro. Mas, a quem irei contar esta história?
Falam quantas operadoras de cartão cada um possui, o que elas oferecem, como administram. São conscientes, conseguem controlar os gastos, embora as esposas, filhos, gatos, cachorros, tenham as senhas, imitem assinaturas. Nada como a confiança! Coisa que qualquer pobre mortal precisa ralar, economizar, pra conseguir, os meus vizinhos colocam como limite mínimo para gastos mensais nas faturas.
Faço um esforço tremendo (mentirinha literária) pra não ouvir o bate-papo, mas os protagonistas fazem questão de serem escutados, não posso decepcioná-los. “Por mês, gasto num cartão dois mil, n’outro é mil e quinhentos. Passou disso, só compro no dinheiro. As operadoras me dão dezesseis, vinte mil de limite, mas aí é dinheiro demais.” Diz um dos caras, enquanto dá um gole num copo de cerveja (cerveja? pensei que rico só tomasse whisky (escrito assim mesmo, afinal, tem que ser escocês)).
Fico pensando o que dois homens tão endinheirados fazem num boteco destes. Bar pequeno, o dono, de camisa regata, e sua esposa, fazem todas as tarefas, cozinham, atendem, servem, não existem dez por cento, nem cinco. No ambiente o comerciante diz: “E aí moral, uma cervejinha gelada? Me dero um freezer, que boto as garrafa em pé, é bom demais, congela não, fica tudo no ponto.” Mesas na calçada. Copos americanos, nada de taças. Os transeuntes cumprimentam os consumidores. Boteco tranqüilo. Semana passada, perto daqui, teve tiro, nenhum freguês ferido, ainda bem. Sou cliente assíduo, nunca vi nada que não estivesse “sob controle” como dizem a polícia e o SAMU, que aparecem às vezes para atender aos chamados telefônicos.
Os caras ao lado, sempre bem postos, pernas cruzadas, coluna ereta, conversam sobre compras (das esposas) no shopping, automóveis, futebol, não sobre quem é o melhor jogador, mas, quanto cada empresa patrocinadora investe nos clubes.
As horas vão passando. O tom da conversa ao lado, que também já é minha, vai no mesmo ritmo. Em certo momento, um da dupla dinâmica (não sei se Batman ou Robin, já que os dois são Bruce Wayne) diz que vai embora. Pedem a conta. Eu fico triste, ao mesmo tempo em que agradeço a Deus. O dono do botequim questiona: “Vão não, ainda tem muita cerveja.” Não tem acordo. A conta vem: vinte reais. “De quê?” “Uma cerveja aqui é três reais?” “É um absurdo!” Os vizinhos clamam à matemática, que não os ajuda, para solucionar o impasse. Agora, falam baixo, quase sussurram, os demais fingem não ouvir, eu estou de orelhas em pé (não sou santo). Um puxa o celular, coisa moderna, eu só tinha visto na televisão, faz a conta das cervejas mais uma fava, discorda da máquina.O álcool começa a me deixar tonto, a confusão do lado me deixa nervoso, pensei em fazer uma caridade, não fiz. Levantei, disse ao botequineiro que pendurasse minha conta, fui embora fazendo questão de não dar ouvidos às lamúrias da mesa do lado.
Júlio César Rolim

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Errante solitário


O homem saiu de casa. É manhã de segunda-feira, não vai trabalhar, quer apenas andar. Logo na porta de casa se encontra com a moradora do lado que, regando algumas flores, cumprimenta o vizinho.
- Bom dia! Está fazendo uma bela manhã.
- É. – responde ele secamente.
Foi andando, pensativo, cabisbaixo, as únicas coisas que enxergava eram o chão e seus sapatos, que, aliás, precisavam de graxa.
Um pouco mais adiante cruzou com um amigo o qual não via há quase um ano
- E aí cara? Que prazer encontrar contigo! – falou o amigo abrindo os braços.
- O prazer é meu. – respondeu sem parar, ou mesmo levantar a cabeça.
O amigo ficou parado, com os braços ainda abertos, parecendo o Cristo Redentor, sem entende direito o que acabara de ocorrer.
O homem seguiu sua jornada solitária. Passou por um parquinho em que dezenas de crianças brincavam, corriam, gritavam. Ali próximo, várias mães, babás e alguns pais observavam os pequerruchos e suas peripécias. Uma menina de oito ou nove anos vem correndo olhando para trás, esbarra no homem e cai sentada no chão. Com os olhos cheios de medo e lágrimas a pequena diz:
- Desculpe senhor.
Indiferente à queda ou ao pedido de desculpas o andante não responde, parecia estar em estado de hipnose. Segue seu caminho, talvez sem ao menos saber para onde ir.
Após o parquinho, havia uma praça, com flores, grandes árvores, bancos de madeira e até um coreto no canteiro central, construído nos moldes da arquitetura do inicio do século XX. Lá se reúne uma turma de saudosistas senhores, que há algumas décadas, formaram uma banda musical, hoje em dia, todas as sextas-feiras, eles estão tocando na praça. Mas é segunda, o coreto está vazio.
Um pequeno grupo começa a se formar embaixo de uma árvore. Um palhaço grita: “Venham ver o maior espetáculo da terra.” O humorista faz truques de mágica, acrobacias, arranca aplausos e alguns trocados da plateia. Ao ver aquela figura melancólica que vai passando indiferente ao show, o comediante brinca:
- Senhoras e senhores, aquele ali também já foi palhaço, mas deixou de pintar a cara. Vejam bem a sua tromba de defunto, seus olhos de finado. Para que vocês não morram em vida é bom pintar a cara de vez em quando, rir da vida e dos viventes. E para que este palhaço não morra de fome é bom que aumentem o meu cachê.
Dito isto, uma chuva de moedas é jogada ao artista que continua seu trabalho. O homem nem se quer ouviu quando foi a deixa para o pedido de dinheiro.
Um pé, depois o outro, passo a passo, o homem vai andando. No seu horizonte não existem palhaços, amigos, conhecidos ou estranhos, apenas seus pensamentos. O que será que ele pensa? Mais adiante, quatro pessoas jogam dominó na praça. Ele vai passando quando alguém no jogo o vê.
- Ei! Levanta a cabeça. Ei, tudo em ordem? – grita um dos jogadores acenando com a mão.
- Presta atenção no jogo, é a sua vez. – fala outro jogador em tom de reprovação.
O homem não percebe o chamado, ou se percebeu, não deu importância. Prossegue, aparentemente sem muito objetivo. Pessoas passam, vão e vem, ele olha algumas, rostos desconhecidos ou não, não importa. “Bons dias”, “ois”, “olás”, nada faz com que o homem erga a cabeça.
Depois de uma boa andada, ele para, próximo a uma feira popular. Pessoas comprando, vendendo, gritando, rindo, sendo pessoas. Finalmente o homem levanta a cabeça, olha ao redor, se senta no meio-fio e percebe: está só.


Júlio César Rolim

domingo, 9 de maio de 2010

O Alanismo



Estive em São José de Piranhas, a linda e festiva Jatobá, terra das cervejas mais geladas da Paraíba e das mulheres mais bonitas do Brasil. Revi parentes, amigos e amigos-parentes. Na quinta-feira, véspera de Micaranhas (carnaval fora-de-época mais tradicional do Sertão) a folia já havia começado, na Praça Getúlio Vargas o vai-e-vem de pessoas é intenso. Conversas, risadas, abraços, beijos (com e sem compromisso). Não sou de ferro, entrei no clima (não consigo fugir dos clichês). Inicialmente tomei uma (uma?) cerveja no Coreto’s Bar, com um suculento muncunzá (salgado, graças a Deus!). Em Campina Grande ainda não me acostumei com a falta de sal e de cor dessa iguaria também consumida na Borborema, sempre penso: “Preciso levar os campinenses pra provar o muncunzá de Zé do Peixe ou de Ideval Braz”.
Bem, lá estava eu sentado, na companhia de meu amigo Laerte, jogando conversa fora e cerveja pra dentro. Marciana ligou diretamente de marte pra lembrar a Laerte que estava na hora de ir pra casa. Lá foi ele, atendendo ao pedido da esposa, o amor é lindo (outro clichê).
Dei umas voltas e parei no bar de Galeguinho na Praça da Alimentação. Lá encontrei Petrônio e Regineide, que são a prova viva de que os brutos também amam. No decorrer do papo, aparecem Zena, maior repórter das terras piranhenses, Isaac, homem eclético, capaz de explicar dos métodos de elaboração da estatística educacional na rede municipal de ensino, até como preparar um tucunaré na beira de um açude, e Alan de Antônio Leite, autor dos Meus Ensaios, crônicas rebuscadas que são colocadas por baixo das portas na calada da noite, Alan, como vários iluminados, não dorme!
Todos os assuntos são tratados, em mesa de bar é sempre assim. Entre um tema e outro, os assistentes de Galeguinho vão trazendo loiras geladas, às vezes errando a marca, mas nunca a temperatura. O destaque da noite são os momentos filosóficos de Alan, contando suas facetas ao longo da vida, já foi ator, professor de karatê, consertador de rádio, escritor, ciclista e agora guru.
- A Bíblia? Já li mais de cinquenta vezes, e nada tem a ver com nada. Tem gente por aí que leu menos que eu e sai dizendo que entendeu tudo, conversa. – fala convicto enquanto come um pedaço de carne de porco, tudo bem, pecado é o que sai da boca do homem!
“O diabo é igual ao papa-figo.” Esclarece. Fiquei curioso, tentando compreender a comparação. Antes que eu perguntasse, Alan agarra o copo e diz: “A mesma coisa, nenhum dos dois existe! Quer ver uma coisa? Me diga porque o diabo só ataca pobre? Você já viu alguém dizer que um rico tá com o cão nos couros? Tem não.” Quando eu era pequeno morria de medo do papa-figo, algumas vezes me escondi embaixo da cama, lá era seguro. Do diabo nunca tive muito temor, mas agora fico mais tranquilo em saber que nenhum dos dois é real.
Petrônio vai interpelando Alan, nenhuma pergunta fica sem resposta. Isaac se mantém na oposição, discordando das pregações, entretanto, isso não incomoda Alan que tenta converter o companheiro de mesa. No seu discurso etílico o mestre não conhece limite de temáticas, relata suas aventuras sobre duas rodas (bicicleta), acompanhado de seu fiel escudeiro Arão Miguel, nas estradas, veredas e caminhos de Jatobá. Descreve as belezas do município e os benefícios de praticar esporte regularmente. Explica doutrinariamente o conceito de latrocínio, discorre sobre política, futebol, literatura, tira-gosto... Ao longo da conversa, vamos nos convencendo da verdade existente em suas nas palavras. Petrônio, espirituoso como sempre, nomeia a nova doutrina que se inicia. Salve o Alanismo!
Júlio César Rolim

domingo, 18 de abril de 2010

Enlace à antiga



Antigamente a mulher não era vista como uma pessoa, mas apenas como um mero objeto, uma máquina pra lavar, passar, cozinhar... Não havia a figura da mulher companheira que dividia e compartilhava as alegrias e atribulações do marido. A mulher não trabalhava, não estudava... Sentir prazer? Isto é que não existia mesmo. Mas graças a Deus, e às deusas humanas, esta realidade foi modificada.
Foi naquele tempo que se deu o casamento de João de Zé de Nêgo com Chica de Mané Macambira. Mané e Zé eram vizinhos de terra no sítio Caboclo Brabo, mais ou menos perto de onde Judas perdeu as botas. Trabalhavam na mesma lida rural, brocar, limpar, plantar, colher, criar umas duas ou três magras cabeças de gado, aguentar o sol escaldante do Sertão, mas sem baixar a cabeça, sempre com o sorriso nos lábios agradecendo a Deus pela dádiva de poder ter uma terra própria para trabalhar. Zé de Nêgo casado com Mundinha de Bastião das Faca, nome dado pela sua profissão de fazedor de peixeiras, conta-se, as mais amoladas da região. Casaram-se de encomenda, acordo feito entre os pais, compadres, para que os filhos unissem as famílias. Da mesma forma, Mané Macambira havia trocado alianças com Zefinha de Zé da Bodega, o qual, comentam as más línguas, não era lá muito macho, tinha um andar meio torto, umas quebradas de munheca, mas mesmo com esses trejeitos, casou e foi pai de família. É verdade que cada filho tinha uma aparência diferente, nenhum parecia com o pai, a esposa sempre encontrava um parente para os infantes terem uns traços. Bem, isso não é de nossa conta. O fato é que o casório de Mané também foi traçado pelas famílias amigas.
Então, nada mais normal que Zé de Nêgo e Mané Macambira, amigos e vizinhos, combinassem o enlace matrimonial entre seus filhos. E assim se deu, João e Chica contraíram núpcias, juraram amor e fidelidade até que a morte viesse a separá-los, aquela coisa toda: na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, etc, etc. Contudo, entre os noivos, amor era uma palavra que não existia, mas e daí? Quem foi que disse que para casar era preciso amar? Bastava que os pais fossem amigos, compadres, isto era mais do que suficiente.
Os cônjuges se respeitavam mutuamente, cada um era sabedor de suas funções e obrigações. O Homem trabalhava na roça para trazer o sustento para casa. A mulher cozinhava, lavava, e, é claro, servia de objeto para proporcionar prazer ao marido. Ela não tinha o direito à satisfação sexual, simplesmente quando o marido estava com vontade de descarregar suas energias lúbricas, procurava pela devotada mulher que se deitava, levantava o vestido, abria as pernas e esperava que o esposo se saciasse.
Certo dia João chegou em casa mais tarde que o de costume, aparentemente muito cansado, tinha sido um dia difícil, colocou fogo numa broca, as labaredas ultrapassaram os aceiros, atingiu um campo de pasto vizinho, foi uma correria, uma luta contra um inimigo quente, forte. Todavia depois de muito esforço as chamas foram controladas. João jantou, e foi direto se deitar, nem mesmo ouviu o seu programa preferido no rádio, como fazia em sua rotina diária.
Chica viu aquela cena, resolveu perguntar se naquela noite haveria mais algum trabalho além de lavar a louça do jantar.
- O senhor meu marido vai me usar hoje? – quis saber ela.
- Não. – respondeu ele sem nem mesmo olhar para esposa.
- Oba! Então eu vou lavar só os pé.
Júlio César Rolim

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Você veja

Oh, minha amada loura
És por demais formosa
Minha musa inspiradora
És também a mais gostosa

Tu alivias meu cansaço
Amenizas minha dor
Tendo-te nos braços
Apreciando teu sabor

Quando te vejo aproximando
De branco bem vestida
Meu coração fica saltando
Alegras minha vida

És deveras estonteante
Doce loura amada
Boa a todo instante

E melhor sendo gelada.

Júlio César Rolim

sábado, 3 de abril de 2010

Grama



Nas minhas viagens pelo mundo real, tive a oportunidade de me deparar com a tradicional advertência para não pisar na grama. O único problema era: que grama? A foto ao lado foi tirada em Brasília - DF, no Centro de Convenções Ulysses Guimarães.
O retrato suscita a dúvida: não havia grama, ou mesmo capim, ou as pessoas simplesmente ignoraram o aviso, preferindo pegar um atalho, deixando a placa órfã de seu objetivo? A beleza verde deu lugar ao marron empoeirado, pelo simples fato de que é menos cansativo e mais rápido pisotear o gramado que dar uma pequena volta no canteiro.

Imenso




Certa vez, uma mãe estava na praia com seu filho de três anos. Os dois sentados à sombra, brincavam com a areia e contemplavam a beleza do Atlântico, que quebrava suas ondas no litoral paraibano (lindo como sempre). Em um momento poético a mãe diz à criança:

- Mamãe ama você do tamanho do mar.

O pequeno olha para a imensidão azul, vira para a mãe e, passando as mãos no rosto dela, fala:

- E eu amo você do tamanho de papai!

sexta-feira, 26 de março de 2010

Poesia sem título

Ao campeão o troféu
À noite o luar
Ao apaixonado o olhar
Ao noivo o mel

À virgem o sexo
Ao pedinte a dádiva
À certeza a dúvida
À dúvida o nexo

Ao rei a república
À cela o condenado
Ao puro o pecado
Ao santo a súplica

Ao conflito a paz
Ao amor o momento
À dor o alento
Ao defunto o “aqui jaz”

Ao texto o ator
Ao ator o aplauso
Ao velho o causo
À língua o sabor

Ao jardim a flor
À flor o nariz
Aos autos o juiz
Ao sol o pôr

Ao não o sim
A César o seu
A você o eu

Ao início o fim.

Júlio César Rolim

sábado, 20 de março de 2010

Amor



Jantar romântico, luz de velas, casal apaixonado. Comemoração de bodas, de papel ou de plástico, talvez de mulambo. Vinho português, tinto seco, preferem ao branco. Pratos granfinos, muito em valor, pouco em quantidade. Restaurante em que se faz necessária a reserva com alguns dias de antecedência. Bodas escondidas, romance secreto. Combinaram que hoje revelariam ao mundo o seu amor.
No ambiente se sentam frente a frente. Por enquanto não houve beijos, carícias. Nem mesmo um sutil pegar de mãos, ainda se excedem na discrição. Apenas olhares, paqueras contidas.
Não é a primeira vez que saem a sós para jantares, almoços, bebedeiras. Mas hoje havia um diferencial, o fim da timidez, o momento da revelação.
O encontro foi idealizado por Virgínia, ela sempre toma todas as iniciativas. Foi sugestão sua o lugar, o horário, o cardápio, e que estava na hora de mostrarem a todos o seu romance. Não era justo um amor tão sublime, uma paixão tão avassaladora, serem mantidos em total sigilo, restritos ao isolamento de quatro paredes, ao aconchego de lençóis cheirosos, amarrotados.
Virgínia chega primeiro, mulher de decisão. É recebida pelo mètre, e conduzida à sua mesa. Sonha nas cenas que provavelmente ocorrerão dentre em pouco. Há quanto tempo deseja divulgar seu amor. Gritar a quem quiser ouvir, e a quem não quiser também, que não tem o que esconder. Pede o menu. Passa os olhos pelas letras, mas seu olhar é distante, olha com saudade para o futuro. Vinho.
- Uma taça?
- Duas, por favor.
- E para o jantar?
- Por enquanto só o vinho.
Não queria escolher o prato. Ela sempre escolhia tudo. Queria se tornar mais democrática em seu relacionamento.
Divaga em pensamentos, agora incentivados pelo vinho. Recorda-se de quando se conheceram, em uma clínica pediátrica, cada qual com uma criança a tira-colo.
- Filho?
- Não. Sobrinho. E essa menininha é sua?
- Minha? É. Minha afilhada.
É pragmática demais pra acreditar em amor à primeira vista, ou ao primeiro diálogo. Mas sabia que algo havia acontecido, como se uma força magnética puxasse aquelas duas pessoas uma para a outra. Encontraram-se outras vezes, não por acaso, em princípio junto com amigos, familiares. João, na época, seu noivo, bom sujeito, fiel, pelo menos até onde ela sabia. Alto, corpo não muito atlético, olhos verdes escondidos por óculos redondos, bom coração, excelente cérebro, intelectual, como diziam os companheiros. Funcionário público de um desses tribunais que existem por aí. Bom salário. Três anos de noivado, queria casar. Ela sempre hesitava, não tinha certeza se era isso que realmente desejava. Ele nunca desconfiou que a noiva sentisse atração por outra pessoa. Atração que se transformou em paixão, mútua, correspondida em proporções de contos de fadas. Não teve coragem de acabar o noivado. Mulher de decisão, cheia de indecisões. Viveu a vida dupla por seis meses. Finalmente, há três semanas, devolveu a aliança. João chorou, implorou, ficou perplexo, se culpou, ameaçou se jogar do viaduto. Não adiantou. E ele não se jogou.
A paquera fica cada vez mais explícita, à medida que as taças são esvaziadas. Já conversam de forma natural e espontânea, não se importam com as pessoas, que, na verdade, parecem não se importar com o casal. Reminiscências amorosas, brindes. Sobre a mesa as mãos vão se juntando, suavemente, como dois adolescentes que se enamoram em sala de aula.
Silêncio. Até a orquestra ao fundo, em sinal de reverência, sossega a melodia. Olhos nos olhos. Não há mais ninguém no restaurante. Lábios nos lábios. Beijo demorado, apaixonado, lascivo. O sinal da independência.
- Amo você. - Diz Clarice.
Júlio César Rolim

Alguém


Anos atrás alguém apareceu aqui, anunciando amor amplo aos antrópicos. Abençoava, apregoava, anunciava a alegria além, arranjou alguns alunos, apóstolos. Aconteciam atos abismadores: aleijados andavam, abióticos alevantavam-se, admoestou abusos, até água alterou.
Aos aliados anunciava abecedário à aliança altíssima almejada, ab-rogou alguns absurdos antigos, alegando aquilo abominável àqueles aspirantes à ascensão. Aclamou à ação, à ajuda aos anônimos. Assim andou acompanhado aumentando aqueles adeptos, abrindo alas aos assuntos avantajados.
Amiúde aprendia-se, assimilava-se as alusões anexas à andança aventureira àquele andarilho altivo.
As autoridades aborrecidas ajustaram acordo ao apóstolo algoz, ambicioso aceitou aliar-se. A advertência acordada, aliás ademais atroz, aludia a apreço.
Adentrou a aldeia, ali alguns alevantaram arbustos ante a alteza, assentou-se ajuntado aos abandonados ao azar. À assembleia apostólica abordou assuntos altruístas aconselhando à assistência, a abraçar adversários. Alevantou aos ares alimento abençoando, após, apresentou àqueles acompanhantes.
Ainda assim aprisionaram aquele alegre andante. Aprontaram a audiência, abades apareceram. As acusações alegadas: audácia, algazarra, atos amorais, advertiram a abjurar aqueles alardes. Aplicaram-no à apreciação àqueles assistidores, aos alaridos audíveis autuaram-no.
Algures aquele apóstolo afoito, assustado acovardou-se, afirmando ausente aos acontecimentos alegados.
Após açoites, atrocidades, afixaram ao alto aquele amante abnegado, agoniantemente amoleceu, a alma afastou-se.
Afora aquilo apareceu apoteótico, aleluia, aos apóstolos, aos amigos, amigas, ascendeu ao altar altíssimo, auréola acima. Atualmente ainda ajuda aos adeptos.

Amém!


Júlio César Rolim

Estática

Nas ruas os paralelepípedos passam silenciosos por nós,
correm, apressados.
As árvores também nos olham,
mas na sua velocidade não têm tempo de nos cumprimentar.
Uma praça passa, outra se aproxima.
Não as olhamos, timidez.
Como sempre, estamos parados.

Júlio César Rolim